Toda a falta que o teatro faz à sociedade, à luta e ao progresso

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Ariane Mnouschkine há dois anos, em Nova Iorque, nos bastidores de uma apresentação da peça Stephanie Berger

Deixem passar o espírito livre, anunciou-se. Ariane Mnouchkine esteve em Avignon para um encontro com "o seu" público sobre "o nosso" teatro. Mulher de convicções que os cabelos brancos não abalam, falou de como acredita em milagres. Leva aos ombros a utopia de 1968

Podia ser só um encontro entre o público e um dos seus artistas de eleição, mas a presença da encenadora Ariane Mnouchkine, de 72 anos, em Avignon, é mais do que isso. No campo de treinos do Lycée Saint-Joseph, sob um sol impiedoso, o que se viveu foi outra coisa: a partilha de uma vida em comum que há quase 50 anos tem o seu epicentro na Cartucherie de Vincennes, na região de Paris.

É lá que fica o mítico Théâtre du Soleil, companhia de teatro avant-guarde que desde sempre foi conduzida por esta encenadora, dramaturga e resistente que não se deixa abater nem pelas crises - "já foram tantas" -, nem pelos discursos utópicos dos políticos - "é preciso dizer-lhes as coisas" -, nem pelas condições de trabalho - "trabalhamos para merecer o que temos". Foi isso que veio dizer a Avignon, de onde há muito está ausente mas onde nem por isso deixa de ser desejada: "Não vamos aonde não nos querem", disse. "Mais oui, on la veut", disseram quase em coro os que assistiam, na sua maioria mulheres. E muitos jovens.

O encontro tinha um propósito claro: Ariane anda a reunir fundos para finalizar o processo de montagem e edição de um filme Les Naufragés du Fol Espoir, a partir de Júlio Verne, versão cinematográfica da peça épica, como são sempre as suas, que estreou o ano passado. Mas porque é de Mnouchkine que se fala, e mesmo não sendo um dos espectáculos deste ano, o encontro foi completamente apoiado e integrado na programação oficial de debates. Não podia ser de outra forma. Ariane diz que não está zangada com Avignon, não faz parte do seu feitio, mas do que pensa que deve ser o espírito de Avignon: "Sou fiel ao espírito de Vilar e Avignon: lugar de encontro, de mudanças, de história." E afastou-se do que ela chamou "o assassinato do carácter de Vilar", iniciado em 1968, quando o festival foi cancelado sob ataques de ceder a um teatro burguês e elitista. E afasta-se de todas as referências que um dia foram comuns, a mais próxima delas o Living Theatre, a companhia de teatro e performance norte-americana criada em 1947: "A maior parte foi manipulada por gente detestável." Ariane esteve na ocupação do Teatro Ódeon, em Paris, no Maio de 68, lutando por uma sociedade mais justa através do teatro, mas também esteve do lado que não se imaginava poder estar, em 2003, contra as greves dos trabalhadores intermitentes do espectáculo que pararam os festivais nesse Verão. Confessa que vai muito pouco ao teatro e que muitas vezes viu na coreógrafa Pina Baush a mais óbvia das cúmplices. Prefere ir ao cinema, e ver um jogo de futebol na televisão: "Quando as equipas são boas, o espectáculo é garantido."

Mulher de convicções

Mnouchkine é um símbolo de resistência dentro do teatro francês. Uma referência moral para muitos e um símbolo de liberdade para quase todos. Recusa ser produzida quando não confia nos co-produtores e demora o tempo que acha necessário para fazer um espectáculo: "Não consigo fazer várias coisas ao mesmo tempo." São peças que, normalmente, demoram a noite toda, envolvem mais de uma centena de elementos - "só a companhia permanente são 65, pagos modestamente" - e materializam as grandes e eternas dúvidas do homem: como pensar o mundo. Fez Shakespeare e Brecht, mas também adaptou escrituras sagradas, escreveu ficção científica, recriou mundos através da palavra, fez do corpo um mapa cujas fronteiras não acabam no teatro.

Transporta, desde há quase 50 anos, um exemplo maior do que, com o Maio de 68, o teatro quis para a França: "Uma convicção comum de que o teatro é preciso para a luta, a sociedade e o progresso." É ainda mais preciso hoje, acredita, "para acabar com esta melancolia desencantada na qual os franceses parecem estar agora". "E para ajudar a Europa", conclui.

Ariane é uma mulher de convicções. De convicções políticas que, quase sempre, se confundem com convicções teatrais. Quando há semanas esteve nas manifestações de Paris, reivindicando melhores condições sociais, levou uma das suas muitas marionetas. Esse gesto opõe-se "aos sistemas de som que agora competem para ver quem é o melhor". "Falta cultura nas nossas reivindicações. É preciso sermos insolentes e resistir." Mesmo que ache que "as coisas estão a mudar" e que "a inspiração se alastra exponencialmente", "é preciso lutar".

Quando fala de milagres na política, fala, quase sempre, a partir de uma utopia teatral: "Esperamos todos um milagre em 2012", diz, a respeito das eleições para a Presidência, onde apoiará, "e porque não o haveria de fazer", Ségolène Royal, que "todos abandonaram agora". O milagre de 2012 é a edição do filme, "feito porque vocês assim quiseram", os mesmos a quem ela pede que ajudem a mudar o rosto no Eliseu. "Não temos direito a trabalhar senão para isso, até lá." O teatro "honra aqueles que nos honram a nós com a sua cumplicidade, o público, vocês".

O pão e o sal

A mesma força que a levou para as ruas, fá-la cumprir todas as tarefas no seu teatro, desde "ser quem tem a decisão final" à que corta bilhetes "porque gosto de olhar nos olhos quem me é próximo, o público". O teatro é, para ela, uma missão e um compromisso com o outro: "Tem uma função biológica que é mostrar, e lembrar, que o diabo anda à solta, mas que há forças positivas que nos permitem afugentá-lo." "Somos dotados de curiosidade, de inteligência e de amor" e é isso que faz mover o teatro, ou a relação entre os artistas e o público. "O nosso papel é encontrar essas forças e transmiti-las", porque "há um princípio de partilha, um desejo de conhecimento, uma exigência e um conhecimento que são comuns".

"Vivemos juntos, por vezes, há 40, 42 anos", conta sobre espectadores que lhe vêm falar de memórias da primeira vez que foram ao teatro. "Ao nosso teatro", vai sublinhando. "E quando nos elogiam, só podemos agradecer. São carícias que não se confundem com galanteria. É disso que devemos desconfiar, não do apreço, que é sincero. Acho que com o tempo aprendi a distinguir um do outro." Mas os elogios não lhe servem para muito: "Basta um ensaio correr mal, uma apresentação não correr como previsto, e a cabeça pesa, baixa, queremos esconder-nos no mais escuro dos cantos do teatro." E aí o que faz? "Começa-se outra vez. É o trabalho que torna as coisas reais."

O Théâtre du Soleil é um teatro de colectivo cujos trabalhos resultam de intensas sessões de ensaios, oito horas, por vezes, "muitas vezes adiando a estreia". "É um trabalho incomensurável", "de confiança no colectivo" e de "aproximação ao outro". "Muitas vezes é preciso experimentar. E são aqueles que mais firmemente dizem que não são os que têm mais medo". E mais: "É preciso ter a coragem de ir, mesmo quando não se sabe. Deixar que o processo filtre o que é mais importante. Às vezes há demasiados fios soltos, mas é preciso encontrar a meada que nos permite começar. É preciso regressar à infância, ser-se modesto. Jogamos com os corpos, não com as ideias. As ideias trá-las o público". Sempre o público, primeiro crítico, primeiro cúmplice. "São o pão e o sal de cada companhia."

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