Uma língua deve ter falantes. O "acordês" não tem falantes

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Resposta a um artigo de Jorge Miranda sobre o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

No PÚBLICO da passada quarta-feira, 13 de Julho, Jorge Miranda escreve a propósito do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90). Algumas das suas declarações partem de pressupostos incorrectos, que gostaria de tentar esclarecer.

O mais evidente, e incómodo, é o que insiste na teoria do "conservadorismo". Começa a tornar-se uma estratégia recorrente: quem é contra o AO leva com o rótulo do "conservadorismo". Por exclusão de partes, os "outros", os defensores do acordo, são os iluminados, sempre de olhos postos no futuro.

Pessoalmente, dispenso o epíteto. Espero que Jorge Miranda possa conceder, a todos quantos, de boa-fé, estão contra o AO90 uma verdade simples: ninguém defende uma ortografia de cristal, parada no tempo. Pelo contrário, move-nos a convicção de que a língua é um organismo vivo, em constante mutação.

O que realmente distingue "antiacordistas" e "acordistas" é outra coisa: os primeiros não acreditam que essa evolução deva ser imposta por decreto.

Por maioria de razões - segundo pressuposto incorrecto - Jorge Miranda terá também dificuldade em encontrar alguém que, num debate sério e informado, defenda que "deva ser o português europeu a determinar a língua escrita".

Na verdade, pior do que o "conservadorismo" de quem se limita a exigir que uma língua siga o seu caminho é a incrível presunção de quem julga poder ditar, de antemão, os caminhos que a língua deve seguir. De quem julga que a ortografia brasileira, fruto de séculos de convívio com alemães, italianos, japoneses, espanhóis e tupinambás, pode agora enxertar-se sem problemas na prosódia, na síntaxe e no vocabulário corrente do português europeu, que percorre há séculos um caminho diferente.

É o resultado desse enxerto que Jorge Miranda tenta baptizar, chamando-lhe "português internacional". Creio que já vai tarde. Esse remendo, esse milho híbrido que não é de ninguém, já tem nome: chama-se "acordês" e não merece outro nome, porque não é realmente uma língua.

Uma língua deve ter falantes. O "acordês" não tem falantes. Quando lemos "acordês", o nosso cérebro põe em prática o mesmo mecanismo que usa para resolver gralhas e faz-nos pronunciar as palavras correctamente.

Não é líquido que este mecanismo funcione para sempre. Sem a protecção das consoantes "mudas", as vogais que as antecedem ficam expostas à erosão da oralidade. A prazo, a perseguição da miragem fonética acabará por reclamar novas vítimas.

Mas voltemos a Jorge Miranda: "Não pretendo que o acordo seja perfeito. Contudo, o que está em causa situa-se muito para além de qualquer deficiência ou erro que contenha." Esta frase denuncia a consciência pesada dos "acordistas", que sabem ter em mãos um mau instrumento linguístico. Em sua defesa, rapidamente resvalam para os "fins que justificam os meios" e para a noção de "mal necessário". Eis outro pressuposto incorrecto: este "mal" não é realmente necessário.

Ninguém precisa de duplas grafias, homofonias e homografias que não existiam antes do AO90. Ninguém pediu a eliminação de consoantes que não são verdadeiramente mudas no português europeu. Ninguém precisa de facultatividades e regras absurdas do género "se não diz, não escreva" - que fazem com que a ortografia, pura e simplesmente, perca o seu orthos.

Na verdade, enquanto conjunto normativo, o AO90 fica a anos-luz da coerência e da coesão da norma de 1945, dita "conservadora". Outra coisa não seria de esperar: quando políticos decidem que a ortografia é demasiado importante para ser deixada ao cuidado de linguistas, abre-se a porta para o desastre.

Mas, mesmo do ponto de vista político, o AO90 não está acima de "qualquer deficiência ou erro". Imagine-se, como exercício meramente académico, que o acordo tem falhas grosseiras. Erros ortográficos. Erros técnicos. Artigos que contrariam convenções internacionais que Portugal também subscreveu. Imagine-se também que o seu articulado prevê a criação de um vocabulário ortográfico comum a todos os países. Imagine-se ainda que o AO90 prevê o lançamento desse vocabulário comum antes da sua entrada em vigor. E imagine-se agora que o Brasil, interpretando por sua conta as regras do AO90, fez o seu próprio vocabulário e sugeriu que cada país fizesse o mesmo. Finalmente, imagine-se que tudo isto é verdade. Haverá um limite para a tolerância de Jorge Miranda?

Por fim, Jorge Miranda deveria ainda reconhecer que o seu "português internacional" já existe. Chama-se, simplesmente, "língua portuguesa". É um património cultural, único, universal e riquíssimo. À escala planetária, a sua riqueza deve-se, precisamente, à sua diversidade, às suas variantes e à sua capacidade para estabelecer pontes. A sua força provém do facto de 230 milhões de falantes, em todo o mundo, decidirem, todos os dias, que querem continuar a chamar "português" ao idioma que falam. Duzentos e trinta milhões de falantes, em todo o mundo, gostam dessa diferença, que os identifica, ao mesmo tempo que os une. Aprender, saber mais sobre as variantes utilizadas noutros continentes é, geralmente, saber mais sobre nós próprios. Portugueses, brasileiros, angolanos e outros falantes fazem-no com genuíno prazer, de sorriso nos lábios.

Neste contexto, em que ninguém quer impor nada a ninguém, não se percebe a preocupação de Jorge Miranda com os números. Que importa a quantidade de falantes que possa ter esta ou aquela variante ortográfica? E muito menos se percebe a necessidade de terraplanar uma dessas variantes, mutilando o "todo" que constitui a língua portuguesa. Subscritor da Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o AO90

P.S. - Uma pequena correcção histórica: antes da nossa reforma ortográfica de 1911 "que provocou o corte com o Brasil", já a Academia Brasileira de Letras, em 1907, apresentara um projecto de reforma, afastando a ortografia brasileira da sua base etimológica.

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