Fomos a Alte chamar as rapinas da noite mas não as ouvimos

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Bufo-real fotografado em cativeiro, no Parque Natural do Douro Internacional PAULO RICCA

Um passeio nocturno pela Via Algarviana, a auto-estrada da natureza, pode ser uma alternativa estimulante à rotina de férias e mar

Chega uma altura em que as férias, por muito que aguardadas, podem acabar por saturar, pela rotina instalada, por todas as manhãs e tardes se fazer as mesmas coisas, encher o saco da mesma forma, sair à mesma hora, fazer os mesmos caminhos, jantar nos mesmos locais, e até ver as mesmas pessoas. O que rapidamente pode tornar-se um tédio. Mas se falarmos na maior ave de rapina nocturna que se conhece, um devorador implacável, e que vive nas costas da praia? Isso não será aliciante?

O que será insatisfatório é que não se procurem alternativas, que se comecem a explorar os centros comerciais, a queimar o orçamento em compras (quantas vezes por impulso e inúteis), a fazer quilómetros intermináveis de carro, a aguardar em filas de trânsito à torreira do Sol. E isto quando a oferta de alternativas no Algarve começa a ser maior e mais interessante, já não se limitando a barraquinhas de feirantes e mini-festivais de folclore.

Há uma fileira cultural rica e actualizada à espera dos visitantes, a maior parte promovida pelos municípios. E também foram essas autarquias que se associaram para construir a maior auto-estrada natural do Algarve, selvagem, onde nunca será imposta uma portagem. Mas embora ilustre, é (quase) desconhecida. Eis-nos assim na Via Algarviana, uma faixa serpenteante, por montes e vales, com 300 quilómetros de extensão, cruzando ribeiros, pelo Barrocal e pelas serras, Caldeirão e Monchique, de Alcoutim a Sagres.

Por ali há biodiversidade, por ali há acidentes morfológicos, mas não urbanísticos, por ali há a fauna e a flora naturais, autóctones, não há as palmeiras da beira-mar. Por ali há vida, há sossego e muita paz de espírito.

Pela noite dentro

Guiado pela Almargem, associação ambientalista e gestora da Via Algarviana sediada em Loulé. O PÚBLICO meteu-se pelo Barrocal, juntamente com 50 caminhantes do Instituto de Solidariedade e Cooperação Universitária (da Universidade do Algarve), que tenta angariar fundos para uma acção de cooperação solidária - Nô Djunta Mon - em São Tomé e Príncipe. Foi de noite, pois, que um passeio diurno, nesta altura do ano, seria ali obra de insanidade e convite à insolação.

A Via Algarviana (VA) tem 14 sectores e pode ser feita em 15 dias, com escalas em estabelecimentos hoteleiros preparados para o efeito, e abastecimento líquido e restauração ao longo de todas eles. Não fomos tão longe. No sector 7, entre Salir e Alte (percurso superior a 16 km), a Almargem atalhou caminho e seguiu de Benafim, rumo a Alte, encurtando o percurso para 7km. Para principiantes, não convém abusar.

Os trilhos estão marcados, com sinais pintados em pedras e postes, com a subtileza e os cuidados de quem pretende não ferir o ambiente. Mas levar uma carta do percurso é medida tida como sensata. Quem quiser pode avançar pela VA por conta e risco próprios. Desaconselha-se quem o queira fazer de dia, neste estio. Em outras alturas do ano, tudo bem, mas agora é mais avisado fazê-lo de madrugada, ou após o pôr do Sol. E mesmo assim é melhor contactar previamente a gestora do projecto, no endereço www.almargem.org.

Pelas 22h00 começou a caminhada, entre os muros do casario apertado de Benafim, mas assim que deixámos o perímetro urbano, subimos e descemos suaves encostas, começámos a sentir o ar da terra, expelindo a sua quentura, o suor das entranhas. Há cheiros de terra e vegetação, e à medida que os sentidos se vão apurando, aquela mesma terra começa a ter outros contornos, iluminada por uma lua cheia, a mais potente lanterna que poderíamos utilizar. Os nossos olhos já se habituaram. A luz artificial deixou de ser necessária.

Música para corujas

João Ministro já pertenceu à direcção da Almargem, é ornitólogo, e dispôs-se a animar o passeio com uma tentativa de chamamento a alguns convidados-surpresa. Do cimo do monte avista-se Faro, numa extensão territorial muito mais vasta do que se pensaria, as luzes do aeroporto, aviões em rota de descida, e corre um vento quente, de norte para sul, que aflora levemente a vegetação rasteira do Barrocal.

Notam-se algumas alfarrobeiras, oliveiras, figueiras, azinheiras, as riquezas da região, mais do passado e talvez do futuro.

De novo, o vento traz-nos os odores. Detemo-nos numa vereda, onde João Ministro faz um pequeno briefing. "Vou tentar fazer aqui algo que poderá não resultar, pois está algum vento, que empurra o som e não o propaga, mas mesmo assim vou tentar chamar com música - isto é, sons de ave - algumas aves de rapina nocturnas que aqui têm habitat." São sete as espécies destas aves nocturnas, entre corujas e mochos, a maior de todas é o bufo-real (Bubo bubo), que pode medir até 70 cm de altura, mas 1,70 m de envergadura de asas. "É a maior de todas, um superpredador, também chamado mocho-real. Pode apanhar ratos, coelhos, raposas, ginetas, até águias. É uma ave muito secretiva, de grande território. Está no topo da cadeia alimentar, pelo que não tem predador", diz João Ministro. É uma ave protegida legalmente, e em 2006 o instituto de Conservação da Natureza estimava que existissem em Portugal cerca de 500 casais.

Com o auxílio de um aparelho MP3 e uma coluna de som, Ministro pediu silêncio e fez emitir a música de chamamento, os sons de canto do bufo-real, um piar grave, ao nível da envergadura do bicho. Repetiu-o outras vezes, e depois os do mocho galego, bem mais pequenino. Também nada. Nada que estranhasse. "Isto não é uma ciência certa, fizemos algum barulho pelo caminho, está vento, e o território do bufo é muito grande. Mas sabemos que os há por aqui, e por vezes quando menos esperamos, eles aproximam-se para ver o que se passa. Vocês podem experimentar isto, há CD à venda com cantos de todas as aves do mundo."

Frustração? Um pouquinho, mas nada que detivesse a caminhada, sobre terra batida, agora sempre a descer, mesmo que Alte, já à vista, fique também ela no alto.

A surpresa

A ribeira homónima já corre ao lado, e desembocamos nas Fontes, local surpreendentemente aprazível, pela água, pelos relvados, pelo enquadramento e cuidados postos. Demorámos uma hora e 45 minutos. E sem stresses. Bom para as pernas, o coração, e o espírito. De súbito, um piar não passa despercebido. Um mocho galego, na certa, dissimulado no alto de uma árvore. Foi de gargalhada. E não mais piou, calou-se ante tanta assistência, quando raramente alguém se dispõe a ouvir o seu canto.

Na estrada alcatroada de regresso a Banafim, um raposinho, furtivo, é alcançado pelo foco luminoso do automóvel, atravessando-a, com relativa calma. Caminhava para as garras do bufo? O silêncio da rapina poderia querer dizer muita coisa...

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