Atribulações do governo municipal

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As assembleias municipais tornaram-se órgão secundário; e as câmaras órgãos de carimbo das decisões dos seus presidentes

No fim de semana passado, um político e um académico - respetivamente António Costa, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, e António Cândido de Oliveira, professor da Universidade do Minho - vieram questionar de novo o sistema de governo municipal vigente entre nós. Vale a pena revisitar a questão.

A Constituição de 1976 regulou diretamente a forma de governo municipal (bem como das demais autarquias territoriais, aliás em termos distintos). Há dois órgãos colegiais eleitos, a assembleia municipal e a câmara municipal. A primeira é de composição mista, incluindo os presidentes das juntas de freguesia do município e um número superior de deputados eleitos por voto de lista proporcional. A segunda, apesar de órgão executivo, também é eleita por voto proporcional. O presidente da câmara municipal é automaticamente o primeiro nome da lista mais votada para a câmara municipal. Nem a câmara municipal pode ser destituída pela assembleia municipal nem o presidente daquela pode ser demitido pela câmara municipal.

Há neste sistema várias "anomalias". Primeiro, há a inclusão dos presidentes das juntas de freguesia na assembleia representativa de outra autarquia, o que, além do mais, distorce a proporcionalidade da representação política da assembleia municipal. Depois, há a eleição direta de um órgão executivo colegial, que é supostamente responsável perante a assembleia municipal, que porém a não pode destituir. Terceiro, o órgão executivo é eleito por via proporcional, incluindo portanto vereadores da oposição ao lado dos da maioria governante.

A lei e a prática vieram acrescentar a autonomização do presidente da câmara municipal como principal órgão do governo municipal - apesar de ele nem sequer constar do elenco constitucional dos órgãos municipais -, mercê da sua eleição "direta", da sua inamovibilidade e dos muitos poderes que lhe foram sendo conferidos. As assembleias municipais tornaram-se um órgão secundário; as próprias câmaras municipais passaram a ser, em geral, órgãos de carimbo das decisões dos seus presidentes. Excetuam-se os poucos casos em que estes não dispõem de maioria na câmara municipal ou nas respetivas assembleias municipais. As eleições municipais transformaram-se na eleição dos presidentes dos executivos municipais; ganhar as eleições municipais a nível nacional passou a ser equivalente a ganhar o maior número de presidentes de câmaras municipais.

Apesar da eleição conjunta da câmara municipal e do seu presidente e apesar da "promiscuidade" política do governo e da oposição na câmara municipal, criou-se um presidencialismo municipal apócrifo, à revelia das Constituição e sem a genuína separação de poderes que só a eleição separada assegura.

Desde há muito que se debate a reforma deste complicado e ineficiente sistema, incluindo desde logo a redução da composição dos órgãos municipais, em geral muito numerosos, e o afastamento dos presidentes das juntas de freguesia das assembleias municipais. Mas a principal mudança proposta visa suprimir a eleição direta das câmaras municipais, passando elas as ser compostas por iniciativa da força política ganhadora das eleições para a assembleia municipal, à semelhança da constituição do Governo a nível da República, com simultâneo reforço dos poderes deliberativos e de escrutínio político das assembleias municipais, que passariam ser o único órgão diretamente eleito. Foi nesta linha que tanto o presidente do executivo municipal de Lisboa como o especialista da Universidade de Braga vieram publicamente pronunciar-se, embora em termos não exatamente coincidentes.

Recorde-se que a revisão de 1997 impôs uma reforma tendencialmente nesse sentido, eliminando a eleição direta da câmara municipal e abrindo caminho a executivos municipais homogéneos constituídos pela força política vencedora das eleições para a assembleia municipal. Mas, passada quase década e meia, o novo sistema nunca foi legislativamente implementado, embora tenha havido entretanto um acordo político entre o PS e o PSD, que o segundo não respeitou, porém.

Deve dizer-se que a fórmula constitucional de 1997 mantém uma das pechas do sistema vigente, que é a eleição "direta" do presidente do executivo municipal, sendo ele necessariamente o primeiro nome da lista vencedora para a assembleia municipal, não podendo ser afastado mesmo que não consiga formar um executivo maioritário. Além disso, essa solução mantém e agrava a pessoalização presidencialista das eleições municipais, com perigo para a separação de poderes e para a função de escrutínio político do parlamento municipal, nos casos, que serão a regra, em que o candidato vencedor detenha maioria absoluta.

Por isso, a solução mais lógica - excluindo uma opção genuinamente presidencialista, com eleição direta separada do presidente do executivo municipal - seria a adoção de um sistema de tipo parlamentar, em que o governo municipal seria constituído com base nas eleições para o parlamento municipal e na sua composição, cabendo ao cabeça da lista mais votada o direito de submeter à assembleia a constituição do executivo. Porém, se não "passar" na assembleia municipal, deve haver a possibilidade de um governo alternativo com apoio maioritário. Uma solução poderia passar por admitir - tal como propõe o professor Cândido de Oliveira - uma "moção de rejeição construtiva" para rejeitar o executivo proposto, com aceitação automática do nome indicado para presidente na referida moção.

Seja como for, o atual sistema padece de complexidade e de ineficiência insustentáveis, sendo, além do mais, desnecessariamente oneroso. É tempo de o substituir, a bem da eficiência e da qualidade da democracia local entre nós. Professor universitário. Deputado ao Parlamento Europeu pelo Partido Socialista (vital.moreira@ci.uc.pt); a pedido do autor, este artigo respeita as normas do Acordo Ortográfico

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