Marina descobriu a sua casa de bonecas

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O actor Willem Dafoe e Marina durante um ensaio ANTOHNY CROOK / CORTESIA MANCHESTER INTERNATIONAL FESTIVAL
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O actor Willem Dafoe e Marina durante um ensaio ANTOHNY CROOK / CORTESIA MANCHESTER INTERNATIONAL FESTIVAL

Não é de uma biografia posta em palco que se trata. Não foi isso que interessou. O que ela queria, e pediu ao encenador Robert Wilson para fazer, foi um modo de olhar para a sua própria vida. Descobrimos Marina, antes mesmo de lhe sabermos o apelido, Abramovic - uma das mais influentes artistas do nosso tempo.

Um dia, alguém escreveu: "Querida Marina, passei no outro dia, por acaso, na tua casa, mas descobri que já lá não estavas." Não é hoje possível descobrir quem escreveu as primeiras duas linhas desta carta. Marina Abramovic, a mulher a quem a carta se dirigia, apagou todas as referências pessoais e coligiu as cartas que recebeu num livro intitulado 100 Letters (1965-1979). Mas é possível partir desta frase - desta dúvida - para entrar em The Life and Death of Marina Abramovic, que, no sábado, 9, estreou no Manchester International Festival, naquela cidade inglesa.

A primeira imagem não é como imaginou, essa será a última, mas o modo como The Life and Death of Marina Abramovic começa fica-nos para o resto do espectáculo. E depois disso.

Três cães farejam um palco banhado a vermelho, com alguns ossos espalhados. É o primeiro sinal de que o que se vai fazer não é senão um enunciado simbólico de alguns dos trabalhos da artista sérvia. Como se fossem aliterações dos seus trabalhos, descrições, por outros, do que fica na memória. E, logo a abrir, Balkan Baroque (1997), ossos de vaca que lava obsessivamente por entre as imagens do pai e da mãe.

No centro, três camas-caixão onde três mulheres com braços levados ao peito, vestem de negro e usam uma máscara de branco intenso. Olhos fechados e lábios vermelhos, um ritual de adoração daqueles corpos que, no fim, naquela que seria a primeira imagem, vestem de branco, ficam suspensos, braços erguidos, como se ascendessem.

A cortina desce e o que se segue é tão simples e desarmante quanto complexo e intuitivo. 1948, recusa-se a andar; 1951, vê o pai dormir com pistola; 1953, primeiro ataque de ciúmes; 1957, sonha com saltar da janela; 1962, primeira exposição; 1964, primeiro beijo; 1965, pai dá-lhe uma pistola e ensina-a a jogar com facas; 1969, não se lembra.

São descrições telegráficas, seleccionadas por ela ao longo dos anos, retiradas dos diários que foi guardando. São memórias que lhe pertencem, ditas pelo corpo do actor Willem Dafoe, burlesco animado, voz afectada, gestos cerrados, cabelo cor-de-fogo, narrador omnipresente, actor de uma história que não viveu.

Marina Abramovic não está ali. Ali só Marina, a rapariga que queria ter um nariz igual ao de Brigitte Bardot e por isso achou que devia cortá-lo na esquina afiada da cama dos pais. Ali, só Marina, a que acha que "o teatro é uma mentira", "uma profunda falsidade": "para se ser um performer é preciso odiar o teatro", disse ela numa entrevista ao curador Hans-Ulrich Obrist. Mas foi no palco que encontrou "a forma perfeita para encenar a sua dor: encenar a sua vida".

Um palco, vazio, onde, ao longo de quase três horas, vários corpos, tão metafóricos e ilusórios quanto projecções e fantasmas de coisas que achávamos representar uma implicação permanente com o corpo e o momento presente, agem em nome de uma figura que nos habituámos a ter como corpo que se queria evadir. E ali a ser fixado. Mas é outro o objectivo: "A performance é sobre estar no presente, é sobre como construir um luminoso estado de pertença", disse.

A vida não cabe toda aqui

O espectáculo, mais um passo num processo de revisitação da vida e do trabalho da artista sérvia nascida em 1946 foi concebido como uma remistura de aspectos privados e públicos da vida da "avó da performance art", como lhe chama o programa. Faz parte de um processo iniciado em 1989, como resposta à dor da separação de Ulay, o artista e performer alemão com quem trabalhou entre 1975 e 1988.

Assinado por Robert Wilson, visionário encenador e mestre, como o define o crítico John O"Mahony, "um pintor que chegou ao teatro", é uma elegia e não é uma autobiografia. É um desejo antigo, de vinte anos, feito agora em jeito de evento único que se repetirá mais cinco vezes e, no próximo ano, no Teatro Real, em Madrid. É um estranho e fascinante exercício de reescrita biográfica da vida de alguém que se chama Marina, de apelido Abramovic.

De uma enigmática linearidade, onde até as canções de Antony surgem como hipótese de elaboração narrativa da vida que nunca soube ter, estabelece como princípio fundamental a criação, em palco, de uma vida que, se se percebe que não cabe toda ali, opta também por um estranho processo de apagamento. A começar pela própria biografada.

Escrevemos isto e pensamos na relação que Marina Abramovic tem com o poder, a sua vida e o seu trabalho. "Uma performance é como uma peça musical, uma ópera ou um concerto de piano; claro que vai ser sempre diferente com cada novo intérprete, uma vez desaparecida a voz original."

Ouvimos data após data, vemos imagem após imagem - a lua que se transforma em bandeira comunista, o esqueleto que ela faz respirar, as corridas contra a parede, feitas ao fundo, a cobra que segurou como se por ela impusesse uma imagem de deusa, o cavalo que montou para homenagear o pai, a estrela que marcou no corpo, a arma que alguém lhe apontou na cabeça. Imagens, ideias, fragmentos que Robert Wilson, mais interessado nela do que no seu trabalho, vai desfiando como se conhecêssemos tudo o que havia para saber desta mulher que nunca escondeu nada, mas precisássemos ver que, afinal, havia um lugar de onde tudo partia: a cozinha onde chegou uma máquina de lavar roupa que era a única na rua e que ela achava a coisa mais fascinante do seu mundo. E entrou dentro dela, prendeu o braço e a mãe esbofeteou-a antes de a levar ao hospital.

The Life and Death of Marina Abramovic é como o poema sofista que gosta de citar: "A vida é um sonho, do qual se acorda quando se morre."

Programar a morte é uma ideia antiga. E está inscrita no seu manifesto: "Para um artista, não é apenas importante como vive a sua vida, mas como morre; um artista deverá deixar instruções sobre o funeral, de modo a que tudo seja feito conforme desejou; o funeral é a última obra de arte do artista antes de partir." E disse a Obrist: "Todos devem usar cores vivas. Verde, verde-claro, amarelo, vermelho, laranja, somente cores felizes." São essas as cores com que Wilson vai preenchendo o cenário, os figurinos, os rostos dos actores. E Marina a fazer de mãe, os outros a fazerem de Marina, e nós a descobrirmos uma Marina que não sabíamos que existia. Resume-se numa palavra: poder.

Let"s have it all

O projecto The Biography tornou-se "o veículo essencial para um controlo biográfico e um modo de auto-instituir poder", escreveu a ensaísta Jovana Stokic, no catálogo do MoMA, que, em 2010, apresentou uma retrospectiva da artista. "A separação entre arte e vida no conjunto do trabalho de Abramovic tornou-se um dos mais discutidos problemas na abordagem, pela história da arte, do discurso dos artistas. Não é suficiente acompanhar as suas várias afirmações sobre as interconexões entre a sua vida e a sua arte, porque os mecanismos que as integram são altamente complexos", salienta a ensaísta. "Apesar de não ser nominalmente feminista, ela é a única com o real poder para iniciar o processo. Ao objectificar-se, diz-nos como a devemos tratar", continua Stokic. E se o poder é um pilar importante no trabalho de Abramovic, aqui não é de modo diferente.

"Fui, durante aqueles anos, uma dupla assinatura, um só nome. Era tamanha a dor, mental e fisicamente, que não podia voltar ao meu próprio trabalho. A única solução que via era se criasse uma espécie de distância sobre mim mesma, encenando a minha própria vida", disse em entrevista ao diário britânico The Guardian em 2004. "Até esse momento, queria que o público me visse apenas de uma forma, muito radical, sem maquilhagem, forte, espiritual. Depois de ter passado pela experiência, e por toda a dor da separação, houve um momento em que comecei a encenar a minha vida, e a divertir-me com isso. Disse apenas, por que não? Let"s have it all", contou, um ano depois, à revista Vogue.

Robert Wilson, para espanto da própria - e, acrescentamos, também nosso -, foca-se menos nas várias performances que Abramovic foi fazendo, e que a impuseram como artista seminal da história da arte da segunda metade do século XX, e mais nos ecos que elas podem ser do que foi a sua vida pessoal, em particular a infância e a adolescência. As frases ditas vão ficando soltas, encontrando depois o seu lugar, ou o seu correspondente, seja no plano visual e cenográfico, seja no próprio texto, permanentemente baralhando datas, lugares, acções.

O espectáculo é uma descida psicológica ao inferno de maus tratos e de ausência de afecto que a artista conta ter vivido, fruto de uma educação por uns pais que foram militantes resistentes comunistas e que dormiam, cada um, com uma pistola na mesa de cabeceira. E conta-se como, numa das primeiras apresentações que fez, uma vizinha ligou à mãe a contar que ela estava nua numa galeria. E, quando chegou a casa, a mãe bateu-lhe e foi a última vez que se apresentou em Belgrado. De tudo isso se fala, de pouco mais. Perfil de alguém que disse não saber ser actriz: "Tinha vergonha de estar em palco enquanto actriz e, para mim, foi um grande desafio fazer algo do qual me envergonho."

2001, pai morre desapontado com a falência do comunismo. 2006, mãe morre, finalmente.

O espectáculo contém uma dimensão narrativa que, se não é sempre linear, está, pelo menos, interessado em sequenciar, mesmo se especulando, modos de funcionamento e de acção da artista. Marina, no livro de conversas com Hans-Ulrich Obrist (Conservations Series, 2010), conta que ficou surpreendida com a opção de Wilson. Precisamente porque Abramovic surge aqui como objecto de trabalho e, ao mesmo tempo, como agente activo nesse processo de construção ficcional. Se é verdade que escreveu um manifesto (e que é lido, gritado, ditado na peça, cacofónica e fragmentadamente) onde dizia que "o artista deve ter autocontrolo total sobre a sua vida", também definiu que "não deve ter autocontrolo total sobre o seu trabalho".

A liberdade dada a Robert Wilson foi, ao que parece, total. Só assim poderia funcionar, disse a Obrist: "Eu não quero ser responsável." "Quando se está em controlo, não se permite que as coisas aconteçam realmente. Não nos permitimos ver o nosso próprio trabalho sob outro ponto de vista, o que é francamente limitativo. Está relacionado com o ego."

E, no entanto, porque descobriu recentemente que "deixar de ter controlo é a chave para que o trabalho possa continuar a existir de diferentes formas", não se fala nem de outra coisa nem de outra pessoa. A própria escreveu no programa: "Eu sou o material."

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