Torne-se perito

"Ninguém vai dar conta de que acabaram os governos civis"

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Presidente da ANMP admite que competências podem ser distribuídas pelas áreas metropolitanas e comunidades intermunicipais

Um dos últimos actos oficiais do governador civil de Bragança, ao fim de seis anos de mandato, foi a entrega de duas novas fardas ao Menino Jesus da Cartolinha, em Miranda do Douro. A imagem do santo, um dos ícones de devoção religiosa que data do século XVIII, é, também, cartaz turístico da Sé Catedral de Miranda do Douro, onde existe um vasto guarda-roupa que vai sendo acrescentado com o escrúpulo de quem não despreza tradições.

Desta vez, foi Rui Pereira, o ex-ministro da Administração Interna quem assumiu a promessa de oferecer ao santo uma farda da PSP e outra da GNR, aquando da sua última visita ao concelho. Jorge Nunes, o governador civil, cumpriu-a antes de deixar funções. O acontecimento teve honra de notícia no site oficial do Governo Civil de Bragança, com a imagem do santo já devidamente fardado de guarda republicano.

Insólita, a notícia comporta o risco de remeter para o domínio da caricatura as actividades que ocupavam os governadores civis, que o Governo de maioria PSD/CDS-PP exonerou já. São duros os termos da resolução do Conselho de Ministros, publicada esta semana, que apeou, de uma vez, os 18 representantes do Governo nos distritos, conferindo, transitoriamente, as respectivas competências aos secretários. Pelo menos até 15 de Outubro, data na qual devem entrar em vigor as leis que vão permitir a transferência de competências dos governos civis para outras entidades da administração pública.

Considerando "as minguadas competências que os governos civis ainda exercem", o contexto de crise e a exigência de rigor na utilização dos dinheiros públicos, o Governo anuncia a decisão como "um exemplo que se impõe"."O exemplo de não pactuar com a perpetuação de estruturas inúteis, com o desperdício de recursos ou com a colocação de clientelas políticas", lê-se no diploma.

Os efeitos estão já à vista: além dos governadores civis, com eles caíram dezenas de adjuntos, chefes de gabinete e secretárias que integravam os gabinetes pessoais daqueles responsáveis. Um número apreciável de pessoal político, tendo em conta que, normalmente, cada governador civil dispunha de um chefe de gabinete e de dois ou três adjuntos - isto para não falar de casos em que chegou a haver um vice-presidente.

A decisão é recebida com aplauso pelo presidente da ANMP (Associação Nacional de Municípios Portugueses), o social-democrata Fernando Ruas. "Tal como estavam, os governos civis são estruturas descabidas", disse ao PÚBLICO, revelando que, não raras vezes, era apanhado de surpresa pela visita de ministros a Viseu (o concelho que governa), fazendo chegar o seu protesto aos governadores civis. "Não se vire para mim, que eu também não sabia", respondiam-lhe.

"O governador civil era um cargo muito caro para representação do Governo", acrescenta. Ruas garante desconhecer ainda se algumas das competências transitarão (como aconteceu já no passado) para as câmaras municipais, mas abre o leque. "Podem ser distribuídas entre áreas metropolitanas consolidadas, comunidades intermunicipais e mesmo serviços do SEF (Serviços de Estrangeiros e Fronteiras), sem se dar conta de que desapareceram os governos civis", defende.

Ajuramentações e passaportes

Até Outubro, sobram agora as dúvidas sobre quais as entidades administrativas a que os cidadãos terão de recorrer para obter licenças para peditórios distritais e atestados de indústria, ou a quem devem comunicar a instalação de dispositivos ou de centrais de alarme, pedir autorização para sorteios ou jogos de fortuna e azar ou pareceres prévios para abrir um estabelecimento de restauração que tenha salas de dança.

Uma leitura mais atenta dos diplomas dá para reflectir. Quando os peditórios são concelhios, as licenças competem às câmaras, mas quando são distritais são passadas pelos governos civis; a instalação de uma sirene exterior tem de ser comunicada à autoridade da força policial da área, mas se for um alarme ligado a uma central pública tem de ser registada no governo civil; há ainda três governos civis onde se realizam juntas médicas para funcionários da ADSE, o que exige a afectação de funcionários que preparam todos os procedimentos administrativos para esse efeito. Em todos os restantes, já não existem.

Há outros casos com contornos, no mínimo, anacrónicos. Um dos serviços prestados nos governos civis são as ajuramentações. É lá que os fiscais com que nos cruzamos, por exemplo, nos transportes colectivos de passageiros se obrigam ainda, por juramento, a cumprir as funções que vão exercer: a fiscalização dos bilhetes.

Reservas no PS

Recebida com reservas por alguns sectores do PS, a extinção do cargo de governador civil só poderá materializar-se através de uma revisão constitucional. Isso mesmo, aliás, ficou explícito no preâmbulo da resolução do Conselho de Ministros. Até lá, há questões que suscitam interrogações, como é o caso da concessão de passaportes. Todavia, o último executivo de Sócrates lançou medidas que abrem já a porta a soluções.

Uma portaria dos ministérios da Administração Interna e da Justiça, de 15 de Julho de 2010, autorizava a recolha de dados para a emissão do passaporte electrónico pelos serviços do Instituto de Registos e Notariado nas lojas do cidadão que não dispusessem de gabinetes do Governo Civil. No fundo, trata-se de aproveitar a capacidade instalada para a emissão do cartão do cidadão, "criando sinergias", ainda que "sem alterar as competências legalmente estabelecidas" - ou seja, o carimbo final continuava a caber aos governos civis.

Outro dos perigos de vazio relaciona-se com o dispositivo da protecção civil. O teste poderá acontecer já este Verão com os previsíveis fogos florestais, mas o ministro da Admnistração Interna, Miguel Macedo, desdramatizou as críticas. "Do ponto de vista do dispositivo, há um coordenador distrital, que não é o governador civil", reagiu.

Mas há quem advirta para o problema político: não se sabe quem assumirá a coordenação política de todas as entidades (polícias, bombeiros, emergência médica e outras) que integram a protecção civil.

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