O génio desconhecido e outros segredos de Tiradentes

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Um jovem desconhecido reza em frente ao altar principal da Igreja de Yaguarón; joão dirickson

José de Souza Cavadas: este nome não lhe diz nada? Ao mundo também não. Mas era português, e um génio do barroco. Eis um dos segredos guardados em Tiradentes, cidadezinha do interior do Brasil que uma mineira e um inglês ajudaram a renascer.

1. Preâmbulo, antes de chegar

Poucos lugares interiores parecem tão interiores como os caminhos de Minas Gerais quando a noite se fecha. A terra é vermelha do muito ferro que há por baixo, então tudo se torna um rasto vermelho à luz dos faróis: chão, árvores, placas de trânsito tão cobertas como se tivessem sido enterradas. Impossível ler direcções, distâncias, avisos. E ninguém, nenhum carro, nenhuma casa, por curvas sem fim.

O mundo pode, em suma, ter acabado.

"Aqui a gente anda com a cara e a coragem", diz o taxista Toninho, subindo a Serra do Rola-Moça. Conta a lenda que uma noiva rolou daqui abaixo, e isto deu mais que um poema, a começar por Mário de Andrade, nome grande do modernismo ("O casco pisara em falso. Dão noiva e cavalo um salto/ Precipitados no abismo. Nem o baque se escutou."). Ficou o nome, Rola-Moça.

Estamos nas entranhas do Brasil e é fim de Maio, ou seja Outono, o que por estas alturas quer dizer frio. Vencida a serra, onde uma boleia espera a repórter, serão mais três horas de caminho até Tiradentes.

No século XVIII, era no lombo dos burros que a Coroa Portuguesa fazia descer o ouro e os diamantes de Minas Gerais até ao Rio de Janeiro, pela Estrada Real. Num dos braços da estrada, a meio-caminho, estava uma pequena jóia barroca que então se chamava São José del-Rei e hoje se chama Tiradentes, em honra ao mártir da revolução contra o domínio colonial, a Inconfidência Mineira.

Quando essa revolução naufragou, os portugueses enforcaram, despedaçaram e exibiram os pedaços de um dos revolucionários, a título de exemplo. Tiradentes não seria o líder, mas era o mais humilde, dizem os mineiros até hoje.

E hoje Tiradentes, a cidade - junto à qual nasceu Tiradentes, o revolucionário - será talvez a mais chique das cidades históricas mineiras. Minúscula, em comparação com Diamantina e sobretudo Ouro Preto, mas requintada.

Obra de várias cabeças, com o impulso decisivo de um par: John e Anna Maria.

2. John e o renascimento

Em 1972, quando John aqui chegou a primeira vez, "era uma vila mágica aos pedaços", conta ele durante o café-da-manhã, na manhã incrivelmente azul do dia seguinte.

Estamos no Solar da Ponte, pousada que chegou a ser eleita uma das 101 melhores do mundo. O impulso de John e Anna Maria começou por aí. Uma pousada que deu a volta a Tiradentes, cidadezinha então decaída e erma. "Era difícil chegar cá", lembra John. "Era pobre e fora de mão, uma pequena comunidade agrícola sentada em torno destes monumentos maravilhosos."

Altares e talhas, órgãos e santos, fachadas e janelas, casarões, igrejas, chafarizes, aquedutos - o que sobrara da corrida ao ouro e ficara fora até da rota alternativa dos hippies que nos anos 60 iam para Ouro Preto.

Então como é que um engenheiro muito inglês - nascido, vejam bem, em Stratford-upon-Avon, terra de Shakespeare - vem ter a tal fim-de-mundo?

Se o leitor pensou em amor, pensou bem.

John andou em engenharias por Portugal e Espanha, o que deu para aprender algum português, e um dia em São Paulo conheceu Anna Maria, mineira de uma família tradicional de Ouro Preto, daquelas que passam receitas de geração em geração, até esta mesa de café-da-manhã, realmente artesanal.

Casaram-se em 1965, ficaram a morar em Inglaterra. Então no fim de 1972, em visita a Minas, ouviram duas versões sobre Tiradentes. "Um artista amigo disse que era tão decadente que não valia a pena. Mas outro disse que era maravilhoso e falou das igrejas."

Anna tinha um tio em São João-del-Rei, a 12 quilómetros daqui. A caminho de Ouro Preto pararam lá e acabaram por desviar à procura da tal cidadezinha abandonada. "Levámos horas para descobrir como chegar. E o que vimos foi um pedaço do século XVIII que tinha parado no XX. Muito pouca gente na rua, vacas nas praças, cavalos a pastar, aquela impressão das bandeiras das janelas fechadas e pessoas atrás olhando. E as igrejas tinham uma magnificência que contrastava. Fomos caminhando. Este lugar parado no tempo e no espaço era um enigma."

Souberam do solar, semi-reconstruído em cima de uma ruína, acabaram por comprá-lo a um francês. E aqui estamos, 40 anos depois, a comer bolo de gengibre, enquanto numa salinha do pátio um grupo de filósofos discute A Preguiça, na biblioteca os clássicos brasileiros se cruzam com estudos de impacto ambiental, e nesta parede se acha uma reprodução do documento de 1718 com a fundação da cidade.

Entretanto, um comboio a vapor apita lá fora. É o trenzinho Maria Fumaça que vai e vem de São João, para encantar visitantes. Eis do que Tiradentes agora vive: turismo.

O pioneiro John sai a mostrar o jardim que já foi quintal de uma D. Ernestina e onde também há uma locomotiva a vapor, mas imobilizada. "Iam desmanchá-la e eu cheguei na horinha. Começou a ser usada nas fazendas quando a escravidão acabou." 1888, tão tarde assim.

Do jardim saímos para o Largo das Mercês, na traseira da casa, e fica à vista o deslumbre da serra de São José, tão verde contra o azul de Maio. "A subida à serra é absolutamente mágica. Trilhas que o padre Toledo trilhava, um dos Inconfidentes que sofreu processo com o Tiradentes. Ele morava aqui."

John vai apontando: ali eram as irmãs das Mercês, acolá Nhô Gomes... E dá meia-volta para entrar na igreja, uma das suas favoritas. "Olhe a simplicidade e a proporção! Não diz nada do que tem lá dentro. Ela mais convida que domina o Largo. Agora imagine o nosso espanto quando entrámos na cidade e vimos esta igreja..." Com uma Nossa Senhora de vestido cintado que não cessa de maravilhar John. "Tem o corpo de uma mulher bonita debaixo da roupa e a dignidade e a graça de Nossa Senhora."

Fala um anglicano que não deixou de o ser. "Mas eu respeito todas as religiões. Quem tem a sorte de acreditar em alguma coisa deve ser respeitado." Na sacristia há um Cristo à espera de uma procissão. "Tudo isto está vivo", remata John. "As procissões estão cheias de gente."

Ainda que "boa parte da população tenha vendido as casas" do centro histórico a paulistas e cariocas, que agora fazem de Tiradentes casa de férias. E para onde foi a população original? "Para o bairro do Cascalho e para o Alto das Abelhas." A uns passos daqui.

Contornamos Tiradentes pela estradinha rente à serra, até chegarmos a um planalto de onde se avista o miolo do casario, Igreja Matriz em destaque, branca e amarela. É aí que John encontra um amigo, Altino Caldeira, arquitecto especialista em património, que trouxe alguns dos seus alunos da PUC (Pontífica Universidade Católica) em visita de estudo a Tiradentes "para eles enxergarem as coisas". Entre a história do ouro e a história da Inconfidência Mineira, é "a história toda do Brasil" que aqui se conta, entusiasma-se John.

Nas costas temos uma grande cruz onde estão todos os objectos envolvidos na crucificação de Cristo. Pela frente, os telhados, que tanto podem ser de duas como de quatro águas, explica Altino, sendo que uma água é a inclinação por onde escorre a chuva. Fora essa variação, as casas tendem todas a ter janelas de guilhotina e gelosias com treliça, um entrançado de madeira herdeiro da tradição islâmica.

"Veja como as igrejas ficam no alto para dominar a paisagem", aponta o arquitecto. "Ouro Preto é mais concentrado, Tiradentes mais esparso. Também Ouro Preto virou capital [de Minas Gerais] e Tiradentes parou em 1830, 1840."

Despedindo-se de Altino, John desce a caminho da praça, contando pelo caminho como as crianças frequentavam as matanças de animais e até hoje frequentam os enterros. "Aqui ninguém morre despercebido."

Na Rua Direita, entre vários restaurantes, há antiquários de nome inglês, peças de estanho, bordados, cachaças e doces.

Passamos Nossa Senhora do Rosário, onde os santos são pretos, feitos pelos escravos que traziam ouro às escondidas nas unhas e no cabelo para decorar o altar. O chão está cheio de pétalas. Terá havido um casamento.

Por trás, fica o largo da casa do padre Toledo, com uma estátua de Tiradentes e folhas de ipê roxo no chão.

E daqui sai a rua que leva à Matriz.

Durante a subida, John vai lembrando que ele e Anna Maria tiveram "o 10.º telefone de Tiradentes e o 6.º carro", e como tantas destas portadas agora meticulosamente coloridas estavam podres.

A Matriz fica ao cimo de umas escadas e é antecedida por um terraço com uma vista arrebatadora para a serra. "Esta serra tem dois biliões de anos", diz John. "Conta a história do planeta, se a soubermos ler. Também é uma reserva de libélulas e alberga três ecossistemas."

E quando voltamos costas à serra encaramos finalmente a fachada de Aleijadinho, o mais celebrado génio escultor mineiro na transição do barroco para o rococó.

"Está com a alma devidamente preparada?", pergunta John. Porque vamos entrar, olhos postos num altar que é dos mais ricos em ouro do Brasil. "O Richard Burton disse que era uma igreja jesuítica de mau gosto..." Comentário que há-de estar algures num dos livros que Burton (1821-1890) dedicou ao Brasil.

"Raimundinho!", exclama John. É o zelador da igreja, mocetão do Corpo de Bombeiros, sempre em busca de humidades e outras maleitas da igreja antes que seja demasiado tarde.

Dois dedos de conversa e John já vai, que tem um encontro marcado, mas Raimundo continua, seja a falar do turismo, que "tem aumentado muito", seja a distinguir anjos de "puti": "Quando não tem asas não é anjo."

Há mais de 20 anos que zela pela Matriz, e antes disso já via quem dava a volta a Tiradentes. "Tínhamos aqui o Yves Alves. Foi uma pessoa muito importante. Fazia tudo para jogar Tiradentes nos media." Tinha poder para isso. Era um chefão da Globo. Hoje dá nome a um centro cultural.

"99 por cento da cidade vive do turismo", arrisca Raimundinho. Há mais de 150 hotéis ou pousadas e entre 60 a 80 restaurantes. E é uma cidade só com seis mil habitantes!"

O lado bom é não haver desemprego. "Todos trabalham. Só mesmo quem não quer." E o lado ruim? "Onde se misturam várias pessoas sempre há pequenos problemas. Crime não tem, mas droga infelizmente tem, cocaína, maconha..."

De repente vem um clarão de luz, porque o sol deve ter descoberto, e tudo na igreja fica como que maior.

Descendo agora a ladeira em direcção à serra, e voltando à direita, acharemos o belo Chafariz, que foi lavadouro e bebedouro. Por trás fica o bosque da Mãe d"Água, com um trilho deslumbrante ao longo de um aqueduto de pedra feito pelos escravos. É um caminho verde, com um rumor fresco de água, grandes pedras cheias de musgo e até uma citação de Bocage no meio do nada: "Oh das musas fautor / De flora aluno." Homenagem a José Mariano da Conceição Velloso (1741-1811) que foi frade e um dos primeiros botânicos do Brasil, além de primo de Tiradentes.

Foi isto bem antes do fim da escravatura, o que quer dizer que os tataravós de Sergio Farnese eram então escravos. Quem é Farnese? O anfitrião da livraria Itatiaia, na Rua Direita, onde por exemplo podem ser encontrados os livros de Burton sobre o Brasil, por entre uma vasta colecção de viagens.

Aos 54 anos, Sergio está grisalho e é branco-branco de pele, mas o avô era um negro de Tiradentes. "Os pais dele eram filhos de escravos. Tiradentes chegou a ter 10 mil escravos." E antes dos anos 70, como estava a cidade? "A cair aos pedaços, até tenho aqui uma fotografia", confirma ele, começando a procurar. "Quando acabou o ciclo do ouro, Tiradentes entrou em decadência." Assim estava quando Sérgio era adolescente, nos anos 60. "As pessoas saíram das casas para elas não lhes caírem em cima. A própria casa do meu avô foi vendida totalmente precária. As pessoas queriam vender para ficarem livres. Não tinham condições de recuperar. Não havia turismo aqui. Quando fizeram aquele hotel do Solar da Ponte, a gente só tinha a Pensão Laurito. Eles [John e Anna Maria] deram um impulso ao turismo. Quando eu era criança, ouvia falar do Solar, que vinham pessoas sofisticadas. O Roberto Marinho [presidente do Globo] vinha e ficava no Solar da Ponte. Isto para nós, interioranos... O Solar começou a chamar a atenção para a cidade. E John fundou a Associação dos Amigos de Tiradentes, que foi muito actuante até aos anos 90."

O sol está a pôr-se mas Sergio não tem hora de fechar. Fica aberto até haver gente.

3. Anna Maria e o génio barroco

Noite escura.

Agora estamos na biblioteca pessoal de quem leu muito, sublinhou, e aos livros volta diariamente. Estantes de metal, feias e sólidas, com lombadas em segunda e terceira fila, e pilhas na horizontal por cima da vertical.

Lá em baixo, castiçais de prata convivem com arte contemporânea, a lareira está acesa, tudo reluz. Uma bela casa no Outono. E neste sótão, estantes a toda a volta e três mesas de trabalho, as três de Anna Maria, embrulhada num xaile vermelho.

Anna Maria Lopes Parsons. Uma beldade de perfil e chapéu na fotografia que ela mostra, quando a repórter pede para ver uma fotografia antiga. Agora está com 75 anos, menos seis que John.

Desengane-se o leitor se pensa que vamos falar de Tiradentes. Esta é a casa que John e Anna Maria construíram em Tiradentes, num lugar bem mais retirado que o Solar da Ponte, e aqui vivem há 40 anos. Mas o maior segredo deste sótão começa em Canidelo, concelho de Vila Nova de Gaia.

"Em 1716 nasce em Canidelo uma criança, filha de Francisca Gonçalves e José de Souza..." Os olhos de Anna Maria brilham do outro lado da mesa, um foco de luz entre nós. "Essa criança chamava-se José de Souza Cavadas e em 1748 vem para o Brasil..."

A repórter não faz ideia do que se vai seguir, e portanto, à cautela, tenta apresentar já Anna Maria aos leitores. "Sou mineira de Ouro Preto, nascida em Belo Horizonte por acaso..." Belo Horizonte-São Paulo-Rio de Janeiro-Europa, assim se fez um percurso académico desta perita em arte mineira do século XVIII. Não o Aleijadinho, que "esse campo já estava muito explorado".

E foi como académica que Anna Maria um dia se viu no Paraguai, país fronteiriço com o qual o Brasil travou uma longa e sangrenta guerra entre 1864 e 1870.

"O Paraguai é uma questão não-resolvida para o Brasil desde o século XIX. Um país pequeno, que o Brasil, com a arrogância que ainda nos caracteriza e diante de um passado que é duvidoso, não contempla, e que foi a última ditadura da América Latina." Acontece que no fim dos anos 80, quando cai essa ditadura, liderada por Alfredo Stroessner, o Governo paraguaio toma a iniciativa de propor intercâmbios a universidades brasileiras. Anna Maria estava na Universidade Federal de Ouro Preto e o reitor deu-lhe carta branca para averiguar o que se poderia fazer. Então ela telefonou à ministra paraguaia da Educação. "Disse-lhe: "Não conheço o seu país, mas devia conhecer porque o meu pai nasceu na margem de cá do rio Paraná"." De um lado Paraguai, do outro Brasil.

Ou seja, o Paraguai era uma questão pessoal para Anna Maria. "A família do meu pai educou-se porque eram plantadores de mate em terras que seriam do Paraguai se o Brasil não tivesse feitos todas aquelas trampas. Quando vêm para o Rio de Janeiro, para o meu pai e os meus tios serem educados, a minha avó traz quatro paraguaias para o serviço da casa. E eu era fascinada por essas mulheres. Entrava na cozinha da minha avó, nas férias, e escutava aquela língua indígena."

A casa da avó era em Santa Teresa, bairro carioca de colinas e ladeiras. "Eu vinha de um universo mineiro, católico, barroco e ia para o Rio, para uma casa onde havia gente que falava outra língua e a minha avó me dizia: "Isto também é o Brasil." Aprendi espanhol com menos de quatro anos."

Até hoje sabe o nome das quatro paraguaias. "Nacha, Paca, Josefa e a outra era... Bernarda. Elas cozinhavam coisas que eu jamais comia no meu universo mineiro, grandes comidas com mandiocas incríveis, um peixe chamado Pacu, da região equatoriana. Comparando com as minhas primas, que só conheciam as coisas de Minas, eu achava isso de um cosmopolitanismo insuperável."

Era esta a mineira a quem calhou a carta branca do reitor. "Então nas minhas férias fiz a mala e fui para o Paraguai. Tive uma experiência muito interessante com a ministra da Educação e Cultura, uma mulher extremamente culta. Passei três dias andando por Assunção, que é pequenina e linda, com exemplares muito bons da arquitectura do século XIX e uma presença do XVIII, o Paraguai colonial."

Propôs um curso de educação patrimonial. Nisto estava quando num fim-de-semana a levam a passear a 47 quilómetros de Assunção, até à cidadezinha de Yaguarón.

E de um momento para o outro a vida de Anna Maria mudou.

"Entro numa igreja e penso que tenho uma alucinação. Eu não estava em Ouro Preto, nem em Braga, mas lá estava a mais pura talha joanina que jamais vi! Esplendorosa. Fiquei pasma. Não é uma igreja jesuítica, é no meio do país." Um "acontecimento absolutamente minhoto" no interior do Paraguai.

Anna Maria começou a fazer perguntas a quem a tinha levado, mas ninguém sabia muito. "Fiquei calada. Só disse que aquilo me era extremamente familiar, e espantoso."

E assim começou uma investigação de 25 anos, com Tiradentes como base.

Primeiro, Anna Maria foi a Buenos Aires, visto que o Paraguai estava na alçada argentina durante o domínio colonial. "Não encontrei nada porque nos motins peronistas foram queimadas bibliotecas, igrejas, obras de arte..." Mas lembrou-se de um velho professor argentino perito em barroco. "Ele disse: "Aquela igreja foi feita por um português de Matosinhos, José de Souza Cavadas." Então confirmo a minha suspeita de que aquilo era um acontecimento único, um português no meio dos indígenas."

Concretamente, os índios guarani.

Anna Maria mergulhou nos arquivos portugueses, nomeadamente do Porto, e contactou historiadores portugueses. "Apaixonei-me. Fiquei fascinada. E de lá para cá tenho andado atrás do Souza Cavadas. Virtualmente tomei posse dele, bancando tudo sozinha. Passei a escrever pequenos artigos. E de cada vez fui puxando mais o fio."

Amigos de Tomar sugeriram prosaicamente a lista telefónica do Porto. "Encontrei quatro Souza Cavadas. O primeiro chamava-se Alexandre e era bombeiro hidráulico. Quando me identifiquei disse: "Ó minha senhora, não estou para fantasmas!"" À segunda atendeu uma mulher: "Diz-me: "É o meu marido, e temos uma tasca em Vila Nova de Gaia." Lá fui eu comer uma caldeirada de peixe sentada em frente a um Souza Cavadas com a boca cheia de batatas. Até que ele vê o nome impresso: "Ó mulher anda ver o meu nome num livro!" Então pela primeira vez olha-me nos olhos."

Anna Maria fez-lhe perguntas sobre pais e avós. "Vou recuando, recuando. Volto ao arquivo. E era aquela família. Uma família da tasqueiros, barqueiros, carpinteiro e bombeiro." Sim, o bombeiro que não estava para fantasmas também era da família.

"Mas quando não se é bem nascido, como se conserva um nome duplo durante três séculos? Ainda não tenho resposta para isto."

Mas deduziu outras. Por exemplo, porque foi este homem parar ao Paraguai? "Penso que não teve mercado de trabalho em Minas, e portanto foi para a Provincia de la Plata [da qual fazia parte o Paraguai], aventurou-se. A Provincia tinha uma briga com Portugal pela posse da colónia de Sacramento. É possível que um destacamento tenha saído de Vila Rica [actual Ouro Preto] para reaver o forte de Sacramento para Portugal, e uma hipótese é Souza Cavadas ter ido nesse destacamento." Como militar.

Pelo espectáculo que se pode ver na igreja de Yaguarón, do que não há dúvidas é que "a formação dele era impecável e ter-se-á dado em Portugal".

Anna Maria lançou-se às igrejas minhotas. "Visito 47 igrejas e a única coisa que lembra a obra dele é um detalhe em cima do altar à esquerda na Igreja do Bom Jesus em Matosinhos. É a primeira analogia formal que encontro. Mas ele não figura nos contratos para fazer esse retábulo. Creio que ao dar entrada no Rio de Janeiro ele diz que vem de Matosinhos, porque foi o seu último trabalho, e daí a pista [do professor argentino] dizer que ele era de Matosinhos."

Deste lado do Atlântico terá ficado assim registado.

A investigação prosseguiu. Anna Maria foi achar um Souza Cavadas padre, vivíssimo no presente, e um Souza Cavadas de 1700 no Rio de Janeiro. "Possivelmente era um primo e foi quem o chamou." Para tentar a sorte nos Brasis, onde o ouro então corria, e o esplendor dos altares funcionava como afirmação colonial. E daí Souza Cavadas terá ido para a Provincia de la Plata.

Em Buenos Aires, segundo as investigações de Anna Maria, fez altares, retábulos, santos e terá sido aí que aceitou o contrato para o Paraguai.

"A igreja de Yaguarón tem cinco capelas feitas por indígenas discípulos dele. Durante dez anos, ele forma uma oficina fantástica, aprende guarani, vive com os indígenas, o que prova o espírito aventureiro dos portugueses." E depois? "Deixa uma igreja deslumbrante e volta a Buenos Aires onde tinha um mecenas poderosíssimo." Vai fazer uma igreja em Luján, nos arredores da capital argentina, "destruída no final do século XIX porque os peregrinos não cabiam e substituída por uma catedral".

E "ainda faz pontes em Luján!", remata Anna Maria, que acaba justamente de chegar da Argentina, cumprindo mais uma etapa da sua perseguição a Souza Cavadas. "Vi 35 igrejas, arquivos e planos urbanísticos..." Agarra pastas e cópias, folheia plantas.

Então neste sótão de Tiradentes concentra-se o arquivo em progresso da vida e obra de um português aventureiro, que no século XVIII veio de Matosinhos para o Rio, daí para Minas, depois para a Provincia de la Plata, viveu com os índios, formou-os com artesãos barrocos e deixou o que Anna Maria considera o melhor exemplo de talha joanina no mundo.

"A obra dele é extraordinária. Um talento desconhecido. Era um esteta, sabia o que fazia e integrou-se com os indígenas, permitindo que eles pintassem os tectos à sua moda. Fez aquilo com uma liberdade artística deslumbrante. Era um desenhista de primeira e um criador imenso. Possivelmente morreu à entrada do século XIX em Luján, está enterrado lá, ter-se-á casado lá e tido um filho lá. Talvez haja uma descendência argentina. Atrás disso agora eu fui. Se o padre me mandar a certidão, posso fechar o ciclo que começa nas pedrinhas da praia de Canidelo, onde o Douro encontra o Atlântico."

Ainda nem desfez as malas desta última incursão argentina.

"Já combinei com o José Monterroso Teixeira [historiador português perito no barroco] fazer uma exposição em Portugal. Há gente que tem peças dele."

Mas antes, já, já, gostava de fazer algo que nunca fez: um romance sobre José de Souza Cavadas. Já tem título provisório: "Seu Nome Era José". "E o primeiro capítulo talvez fosse "Um homem de Foz a Foz". Porque é da Foz do Douro à Foz da enorme bacia hidrográfica do Sul do Brasil..." Pausa. "Agora eu tenho 75 anos. Vamos ver o que vai acontecer..."

Entretanto mostra fotografias da obra em Yaguarón: "Isto é a coisa mais linda que existe nas Américas! Em Ouro Preto não tem nada assim." E diante de uma Pietá: "Um ditador paraguaio retirou dois altares de Yaguarón e pô-los no centro de Assunção. Fui descobri-los lá. E esta Pietá é a mais bonita que existe no mundo porque é a única em que a mãe morre com o filho."

Mais uma obra de José de Souza Cavadas.

4. Epílogo, antes de sair

Entre a paixão por um português do século XVIII, Anna Maria também cuidou do presente. Melómana incansável, meteu mãos à fundação de um centro musicológico em São João del-rei, com uma biblioteca de 4500 volumes e 80 mil páginas de partituras, para preservar o património musical da região e não só.

"A interiorização da cultura é um factor de desenvolvimento muito grande", diz ela, quando enfim falamos de Tiradentes e tudo em volta. "E esta cidade apresentava um potencial muito grande."

Neste sótão há retratos antigos. O avô de Anna Maria era oficial da guarda imperial de D. Pedro II. À avó, a tal das quatro paraguaias, foi ela buscar as feições exuberantes. Casou novíssima, teve três filhos, e foi já depois disso que encontrou John. Andou pelo mundo o que se pode andar pelo mundo. Uma das filhas vive no Canadá e trocam tudo por computador, teses e ideias.

"Não sinto falta das grandes capitais brasileiras", diz. "Ficaria perfeitamente feliz em Ouro Preto. Mas o meu marido inglês apaixonou-se por Tiradentes porque aqui a natureza favorece o gosto inglês pelos verdes. Ouro Preto é um empedrado de igrejas barrocas, com ladeiras de sobe e desce, sem verdes. Ouro Preto não é inglês, é coisa nossa, mineira."

E que coisa é essa, ser mineiro? "Somos filhos do ouro. Deus pouco entra nisso, mas entrou muito ouro no século XVIII. Somos dominados efectivamente pelas igrejas, temos um amor profundo às nossas montanhas e um imenso orgulho de termos sido a primeira grande civilização urbana no Brasil depois da Bahia. De termos constituído um processo que gerou literatura, música, teatro, igrejas, bibliotecas, tradição humanística..."

Anna Maria conhece Minas de a percorrer a cavalo desde menina. "Cresci a admirar as neblinas com um frio intenso, e o alívio que era ver as torres das igrejas em Ouro Preto. De ver que ali havia uma civilização da qual nunca me desvinculei. O uso de cinco línguas, a aculturação na Europa não apagaram essa minha paixão por Minas Gerais."

Quando John e Anna começaram a montar a pousada, Anna contratou mulheres de Tiradentes como quem forma uma escola. "Era uma escola de como ser dona do seu nariz. Em Tiradentes, as mulheres comiam com colher, lavavam a roupa atrás do chafariz e não tinham quem lhes fizesse os partos." Ela mesmo os fez, muitas vezes. "Não tem nada de mais. É assistir quem não tem quem a assista, porque não havia médicos. O meu pai dizia: "Só sabe mandar quem sabe fazer." Eu tenho uma herança doméstica e sou uma fazedora. Tenho urgência de fazer coisas."

A sorte que José de Souza Cavadas teve, cair no colo de uma mineira destas.

alc.atlanticosul@gmail.com

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