O luminoso cinema de Rui Chafes

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"Durante o Fim" coloca Rui Chafes num mundo paralelo que não tem nada a ver com o actual, transformando-o numa personagem de ficção, um certo cavalei

O olhar do realizador João Trabulo sobre a arte de Rui Chafes. Mas mais que um documentário sobre um artista, "Durante o Fim" vive pelo cinema de um essencial universo artístico. Francisco Valente

Por trás de "Durante o Fim", existe a longa amizade entre o seu realizador, João Trabulo ("Sombras - Um Filme Sonâmbulo", 2007; "Sem Companhia", 2010), e o escultor Rui Chafes. "Rui Chafes é uma pessoa muito discreta", diz-nos Trabulo, "e percebi que teria de pegar nele, enquanto artista com uma visão do mundo, para fazer dele uma personagem no meio de outras imagens e vozes." Segundo o realizador, "Durante o Fim" "é um filme que coloca Rui Chafes num mundo paralelo que não tem nada a ver com o actual, transformando-o numa personagem de ficção, um certo cavaleiro." Este é o caminho por onde nos leva "Durante o Fim": não como observadores do método de um artista, mas fazendo-nos mergulhar na recriação do seu imaginário, juntando momentos de trabalho do escultor, a inimitável presença da sua arte em cenários naturais. É a realização do mundo de um artista em cinema.

O filme, terminado em 2003 mas apenas agora estreado, é o resultado de um processo comum de dois criadores. "O filme foi feito por etapas ao longo de três anos", diz-nos Trabulo. "Rui Chafes apresentou-me uma lista sobre aquilo que o filme não deveria ser: um documentário sobre ele sentado em casa, a falar. Começámos a organizar o esquema de trabalho de forma intuitiva: começaram a surgir referências ao romantismo alemão, a Andrei Tarkovski ou Robert Bresson", elementos do universo sensorial de várias áreas artísticas que se concentram na escultura de Chafes. "É um artista completo, como na Renascença", diz-nos o realizador. "O seu trabalho escultórico está enraizado na pintura, na literatura, no cinema ou na história da arte. E quando esta aventura se definiu, tudo se tornou possível."

É o misterioso mundo de Chafes, evocado pela sua arte, que aqui se desvenda: românticos caminhos em florestas adornados pela presença da sua escultura, o artista a trabalhar e vendo a sua escultura enquadrada pela lente, ou como espectador, numa sala de cinema, a ver "Heinrich", de Helma Sanders-Brahams (1977): a vida de Heinrich von Kleist, no seu calmo e apaixonado caminho até à morte (Kleist suicida-se com a sua amada, em 1811, depois de caminharem juntos até a um dos lagos Wannsee, na Alemanha).

No movimento do filme, encontra-se a sensibilidade comum entre dois criadores que defendem o tempo para encontrar o caminho das imagens. "Rui Chafes contribuiu muito para a minha formação artística: trabalha sozinho no seu atelier, com materiais pesados e difíceis", diz-nos o realizador. "Mas mantém uma finura de espírito no que faz, interessou-me estar com ele no atelier. Tenho usado o seu método em filmes recentes: o tempo é o nosso único amigo, preciso dele para reflectir ou até errar para que tudo se clarifique." Trabulo inclui a referência próxima de Tarkovski, nomeadamente "Andrei Rublev" (1966), obra inspirada no artista medieval russo. "A peça que Rui Chafes está a desenvolver é inspirada no balão que sobe no início desse filme. Ao mesmo tempo, revela a consciência da tortura que um artista, como Rublev, sentia sobre a sua arte, o seu significado e reconhecimento."

Um caminho até à vida

Se a arte de Rui Chafes e as inspirações recriadas no cinema de Trabulo vão ao encontro, por um lado, da sombria e misteriosa ideia da morte, é na iluminação do nosso encontro com a sua presença que reconhecemos, por outro, o desejo de vida que inspira a sua criação. "A consciência da morte para Rui Chafes, como para mim, é aquilo que nos mantém acordados", diz Trabulo. "A dada altura, ficamos um apontamento na história da humanidade. Ele tem isso muito presente, sente que o trabalho que executa vem de um passado, mas tenta projectá-lo no futuro. E fá-lo de forma muito serena." A narrativa de "Durante o Fim" é também acompanhada pela voz do artista, que expressa os sentimentos que rodeiam o seu trabalho. O realizador diz-nos que Chafes "escreve muito, e quando trabalha no seu atelier dá a sensação que o faz com vozes do passado, como o imenso "povo dos mortos" de Genet, que o atormenta ou guia. No filme, tanto Kleist como Rublev aparecem como fantasmas que vigiam o seu trabalho."

E o encontro de passeantes com a arte de Rui Chafes, tal como aqueles que atravessam a floresta no filme e se deparam com a serenidade das suas esculturas, não estará distante do encanto que os espectadores sentem na descoberta de um plano, em cinema, que lhes revela os seus próprios sentidos. Chafes sublinha, em "Durante o Fim", a importância desse encontro das pessoas com o seu trabalho. "Há um lado de encantamento que está presente na obra dele. E no bom cinema isso também acontece", diz Trabulo. E se é neste que se reúne a temporalidade da vida para a reproduzir, pela arte, numa forma intemporal, o final de "Durante o Fim", o misterioso momento com um "home movie" de Chafes, mostra-nos que, para além de todo o esforço, nenhum de nós se encontra sozinho. "Ao longo do filme", diz-nos Trabulo, "fala-se da morte, da criação e da tortura desta. Mas o seu final fecha-se por um momento muito simples: uma celebração da vida."

Ver crítica de filmes págs. 38 e segs

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