O futuro entre nós

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Eis um pedaço do património para o nosso futuro. Nos filmes, e nos locais, onde o cinema presta contas com o desenvolvimento do nosso presente. Na 2ª edição da Cinemateca Próximo Futuro, o português João Salaviza, a paraguaiana Paz Encina e outros... Francisco Valente

Em paralelo à presença de pensadores, críticos e espectáculos que reúnem, na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, olhares sobre um mundo em emergência, o programa Próximo Futuro apresenta filmes que nos revelam uma visão interior de outros mundos - África e América Latina - em interacção com o nosso quotidiano - a Europa. A "Cinemateca Próximo Futuro" junta, assim, a criação contemporânea ao olhar sobre um património.

António Pinto Ribeiro, programador do ciclo, revela a intenção de "dar um enfoque, na produção cultural de países africanos e latino-americanos, ao que está a acontecer e poderá vir a marcar os próximos tempos na criação dos seus realizadores", como diz ao Ípsilon. "Não havendo um circuito de distribuição, em Portugal, que contemple essas cinematografias, tentei colmatar a falta de acesso a esses filmes." A "Cinemateca Próximo Futuro" interage também, portanto, com a realidade do nosso país.

"Há outro aspecto subtil no programa: as relações interiores que tentamos encontrar nestes filmes e entre os seus vários continentes. O facto de se exibir "Fitzcarraldo" (1982) [Werner Herzog, dia 24, 22h] tem a ver com a visão da Europa na América Latina, tanto agora como no passado."

O ciclo dá atenção particular ao cinema africano, com obras que mostram um continente a olhar para o seu desenvolvimento através das pontes estabelecidas com outras culturas. Assim, se "Apnée" (Mahassine Hachad) e "When China Met Africa" (Marc e Nick Francis) nos mostram países que procuram novas oportunidades (dia 23, 22h) - o primeiro de forma política (reflexo dos acontecimentos presentes do mundo árabe), o segundo na economia -, "Ti-Tiimou" (Michel K. Zongo; dia 28, 22h) e "Border Farm" (Thenjiwe Nkosi; dia 29, 22h) mostram algumas das questões culturais e humanas que afectam o quotidiano das populações. Segundo Pinto Ribeiro, "um jovem a fazer cinema em África não está tão interessado na identidade dos países africanos, isso foi um problema da geração dos anos 60 e 70. Por outro lado, os mais velhos debatem-se com uma presente falta de apoio."

Esse conflito sobre a gestão de um património sobressai em "Al"lèèssi, une actrice africaine" (Rahmatou Keïta; dia 29, 22h), história de um cinema africano criado a partir do imaginário do Ocidente no percurso de uma das suas actrizes mais emblemáticas, ou no musical "Un transport en commun" (Dyanna Gaye; dia 28, 22h), que mostra como ainda se criam filmes a partir dessa herança. A crescente produção cinematográfica em África, aliada à da América do Sul, mostra, igualmente, a assimilação dos seus possíveis caminhos de desenvolvimento. Para Pinto Ribeiro, há dois aspectos importantes: "a conciliação do desenvolvimento económico e a normalização da democracia. Quando estes vectores se juntam, o resultado é sempre positivo."

Mas o destaque da "Cinemateca Próximo Futuro" surge com a encomenda de três curtas a realizadores emergentes: o português João Salaviza ("Arena", 2009), o sul-africano Vincent Moloi ("A Pair of Boots & A Bicycle", 2007) e a paraguaia Paz Encina ("Hamaca paraguaya", 2006). "Há uma questão imperativa para as organizações que têm recursos em Portugal: é preciso produzir", diz o programador. "Se não houver produção, não há património para o futuro e estamos a desperdiçar os talentos contemporâneos." O apoio a estas obras vai ao encontro da ideia do Próximo Futuro: provocar a criação artística de um determinado local em interacção directa, e independente, com contextos culturais exteriores. Nesse gesto, revelam-se traços comuns. "Acho interessante que os olhares sejam pouco eufóricos, todos eles são bastante críticos. Mas quando projectamos para o futuro, fazemo-lo sempre a partir do presente em que vivemos." Depois da exibição em Lisboa (dia 25, 22h), "prevê-se que os filmes circulem internacionalmente e em DVD, como aconteceu com os filmes anteriores. Estes passaram também em cadeias televisivas e, sobretudo, em festivais e retrospectivas dos autores, como nos casos de Pedro Costa e Apichatpong Weerasethakul [convidados da edição de 2010]."

Provocar as imagens

Em "Cerro Negro", João Salaviza dá sequência ao trabalho iniciado em "Arena", um olhar sobre personagens que habitam nas margens. "Queria filmar uma história com brasileiros, até porque tenho, na minha família, emigrantes portugueses que foram para o Brasil", diz ao Ípsilon.

Acompanhamos a visita de uma mulher ao seu marido na prisão, assim como a tentativa posterior deste em comunicar com o seu filho, ausente desse encontro. Salaviza interessa-se pelos espaços em que estes habitam, mas sem uma intenção social. "É algo que está no centro do meu cinema mas não de forma programática. Estou numa linha entre a acção e a contemplação, e para não cair nesta, preciso de sentir que as pessoas que filmo têm uma luta." Aqui, será uma mãe a esconder que o filho não quer ver o seu pai, e a luta deste em tentar comunicar com ele. "Gosto das ideias que surgem do neo-realismo e que Kiarostami também herda, como em "O Viajante" (1974), em que um miúdo vai de uma aldeia até à cidade para ver um jogo de futebol", diz. "Gosto de sentir que há um objectivo dramático que sustenta isso, daí cair em personagens com dificuldades concretas." E na gestão dos seus enclausurados espaços, um lar e uma prisão não têm diferenciações. "Quis filmar as personagens da mesma maneira e a prisão como espaço residencial. Mas trabalhei o som fora de campo para contrariar um certo naturalismo, pois a mera realidade não é suficiente."

A curta de Salaviza é seguida de "Hidden Life", de Vicent Moloi, que, numa ficção centrada na busca de uma filha desaparecida pela sua mãe, estabelece uma ponte para questões identitárias na relação com o Oriente. Contudo, é o filme de Paz Encina, "Viento Sur", objecto luminoso que revela uma riquíssima relação entre a experimentação e o património do seu país - o Paraguai - no desaparecimento de indivíduos durante a repressão da ditadura de 1954 a 1989. "É fundamental viver e trabalhar no Paraguai, tenho um compromisso muito grande com o meu país", diz-nos a realizadora. "A nossa relação com uma imagem que trate a nossa História é pequena, e é muito importante trabalhar isso. Vão sucedendo acontecimentos que a marcam, como as guerras e a ditadura, mas voltamos sempre ao mesmo sítio. E essa é uma preocupação que tenho: o facto de querermos dar um passo em frente mas ficarmos trancados. Acredito no poder da imagem e já não acredito na sua suposta ingenuidade."

Ao longo do filme, acompanhamos misteriosas imagens de um cenário remoto, habitado por famílias e desaparecidos, presentes apenas pelas suas vozes. "O tempo e a memória são importantes, é o que me interessa. Não existe ainda uma assimilação da ditadura, e é importante trabalhar essa questão temporal." A narrativa forma-se, assim, pela evocação de uma memória desaparecida. "As vozes estão presentes como um eco, figuras que vêm de uma ausência: os que perdemos numa guerra e nunca mais voltamos a ver, o terrorismo de Estado e os seus desaparecidos." E o próprio trabalho sobre a imagem não escapa a esses fantasmas. "Trabalhei sobre a matéria da película nos seus pontos obscuros, os que não se podem mostrar e onde não existe imagem. Não sabia que imagens dar a este processo político, há muitas questões que têm um véu em cima."

O cinema de Encina é, também, uma forma de dar memória a quem não viveu os traumas de uma vida apagada. "Custa-me fazer um filme que não sirva para nada. O cinema é uma forma de chegar a uma população que pensa que a ditadura não poderá voltar a acontecer. E o cinema pode ser a memória dessas pessoas." Que o faça pelo livre gesto de cinema de "Viento Sur" já é uma dádiva presente deste próximo futuro.

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