Rito de passagem

O escritor australiano Peter Carey nunca deixou de referir nos seus romances e contos, principalmente a partir do premiado ""scar e Lucinda" (1988), as suas obsessões de estimação: a paixão pelo jogo ("scar e Lucinda são ambos jogadores compulsivos), a confusão de identidades, o universo dos fora-da-lei e, evidentemente, a relação mal resolvida - como diriam os analistas - com a sua terra natal, a Austrália, que faz a sua aparição regular como cenário e como entidade/ personagem, na forma de espaço mítico, de "última fronteira" povoada de marginais e com condições naturais extremamente adversas.

Que Carey tenha recorrido a uma trama rocambolesca - uma espécie de "ajuste de contas" com a irresponsabilidade da geração dos anos 1960/70 - para voltar ao território habitual é outro assunto: "O Seu Lado Clandestino" é um dos seus romances menos conseguidos, embora com momentos surpreendentes. A acção decorre em 1972, no tempo dos Black Phanters, em plena era anti-guerra do Vietname e pró direitos civis, e Che (ou Jay) um miúdo de 7 anos, filho de radicais de esquerda, vive num luxuoso apartamento em Nova Iorque, na Park Avenue, aos cuidados da avó. Protegido, rico e mimado sente no entanto a falta dos pais, ambos na mais sigilosa clandestinidade e, por isso, inalcançáveis. Dial (ou Anna Xenos), uma "socialista snob" que pertencera ao movimento, amiga (e ocasionalmente amante) do pai de Jay, é incumbida de levar o rapaz à mãe, Susan, para uma curta visita. Contra todas as probabilidades, a avó permite que o neto embarque com Dial - que Jay acredita ser a sua verdadeira mãe - numa viagem que toma uma direcção bem diferente quando Susan se faz explodir ao montar uma bomba. Dial decide ficar com o rapaz e deambula por Filadélfia, Oakland e Seattle para, finalmente, voar para a Austrália onde compra uma velha quinta abandonada num lugar inóspito e desolado. Na sua vulnerabilidade de criança, Jay não tem outra hipótese senão seguir a louca aventura de Dial, mas, a pouco e pouco, começa a compreender que aquela mulher não é sua verdadeira mãe e que ele se encontra à mercê dos seus caprichos, ineficácia e estupidez.

Peter Carey, que gosta de explorar as condições "dickensianas" da existência principalmente quando se trata de crianças, troca neste romance o ambiente de Londres tal como ele surge em "Jack Maggs" (1997) e regressa à Austrália para retomar as imagens de uma Natureza impiedosa e assombrada - que também aparecem em, por exemplo, "A Verdadeira História do Bando de Ned Kelly" -, demorando-se a descrever com deleite funesto lugares infestados de insectos e plantas venenosas, onde Jay/Che se vê obrigado a sobreviver com a ajuda pouco prática e ainda menos carinhosa de Dial, sem água potável nem electricidade, no meio da poeira e de detritos e com vizinhos pouco recomendáveis.

Em 1976 Carey viveu numa comunidade hippie chamada Starlight, a norte de Brisbane, e as recordações que guarda desse tempo certamente o ajudaram a compor as personagens de drogados incultos e cruéis que passam a rodear Dial e Jay - não deixam o rapaz ficar com um gato porque este (morto a tiro) apanha pássaros - e os importunam constantemente.

Apesar de possuir a qualidade encantatória das obras de Carey, "O Seu Lado Clandestino" é um romance essencialmente repulsivo, cheio de violência psicológica, moral e física. A história, construída a partir das recordações de Che/Jay adulto, com impressões oníricas e fantasmagóricas, é contada na terceira pessoa e o rapaz surge como um anjo largado no inferno, a única personagem com um "brilho" próprio que, a custo, tenta irromper do negrume que o rodeia. Carey transmite exemplarmente a confusão de uma criança perante a diferente escala de tudo o que a rodeia, obrigada a fazer frente aos equívocos e às armadilhas, perdida na dificuldade em interpretar os gestos e os sinais dos adultos, desesperadamente à procura das figuras maternal e paternal. A narrativa, com um halo de "realismo mágico", ao estilo australiano, feita de saltos no tempo e entradas intempestivas de personagens secundárias, é atravessada ocasionalmente com imagens banais ("a tempestade precipitou-se para o interior do carro como um gato...", pág. 53, ou "o braço de Trevor descansava no assento como uma serpente espremida..." pág. 76), intercaladas por belíssimas descrições da paisagem agreste e por momentos de intimidade - os livros, as cartas de jogar - entre a criança e a suposta mãe. Mas o mais interessante é a evolução de Che/Jay, à medida que compreende que a sua personalidade ainda por formar e os afectos que balizaram a sua vida não passam de ilusões. A sua fúria ao perceber que está literalmente enclausurado com alguém que lhe mentiu desde o princípio e que na realidade não se preocupa com ele nem o ama é um momento de escape e vitalidade numa história tensa, fechada e claustrofóbica. Che/Jay vai ganhando forças e resistência - não é por acaso que ele carrega consigo "Huckleberry Finn" e lê Mark Twain - saindo vitorioso, mas não incólume, do seu rito de passagem.

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