Tiago Pitta e Cunha: "A nossa nova fronteira é o mar profundo"

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Nálson Garrido (arquivo)

Tiago Pitta e Cunha diz que a aproximação e a exploração do mar enquanto recurso natural é agora incontornável, e que o maior aliado dessa aproximação é a actual crise económica.

Licenciado em Direito, ficou encarregado pelo então primeiro-ministro Durão Barroso de coordenar a Comissão Estratégica dos Oceanos entre 2003 e 2004, e foi membro do gabinete do comissário europeu para os Assuntos Marítimos até Fevereiro de 2010. Actualmente é consultor do Presidente da República para os assuntos de Ciência, do Ambiente e do Mar. Publicou recentemente o ensaio Portugal e o Mar, e esteve a semana passada num fórum sobre o tema, organizado pela Associação Empresarial do Porto e pela Associação Oceano XXI. Para este responsável, já seria suficiente se o país visse no oceano a sua geração de riqueza. E afirma que é no mar profundo que a nossa plataforma continental terá valor.

Diz que Portugal virou as costas ao mar, em ruptura com o passado, para nos deslumbrarmos com a Europa. A culpa foi da adesão à Europa?

Temos a tendência de atirar as culpas para cima dos outros. Nesta questão do mar dizemos que a culpa de não termos as pescas, de não termos indústria marítima, é da Europa. A Europa não nos obrigou a nada, fomos nós que tomamos as nossas decisões. Avançamos nestes desígnios europeus, começamos a vermo-nos como o território onde a Europa acaba e não onde o mar começa. Não percebemos que estávamos a desprezar a nossa geografia, que é uma das mais marcantes de toda a Europa (somos dos poucos países com apenas um vizinho), pusemo-nos numa situação com menos opções de recursos de desenvolvimento.


Mas deslumbrámo-nos com a Europa ou não? Poderia ser de outra maneira?

Sem dúvida que nos deslumbrámos, embarcámos na tese do bom aluno. O que não é censurável, é até compreensível. Nós afastámo-nos durante centenas de anos da cultura europeia, do desenvolvimento europeu. O que acho que é crucial hoje é que, passados 30 anos de adesão à União Europeia, continuamos a não ser a sociedade europeia desenvolvida que almejávamos.


Porque acha que tal aconteceu?

Por causa da enorme ausência de estratégias, de visões. A situação actual não poderia ser menos positiva. A nossa economia do mar é apenas uma economia em vias de desenvolvimento. Falta uma visão de geografia, uma visão de que não poderemos continuar sem explorar os nossos recursos naturais. E o maior desses recursos naturais é o mar, que Portugal desconhecia que tinha.


Chega a ser surpreendente estar a dizer que um país de vocação marítima desconhece o recurso natural que é o mar.

Mas nós não temos nenhuma economia de relevo ligada ao mar, não temos nenhum banco que saiba investir ou construir créditos ligados ao mar! Um empreendedor, uma PME que queira lançar-se ao mar em Portugal é impossível... é só portas fechadas!


Já se fala muito do regresso ao mar como uma prioridade estratégica.

Mas ainda não é na generalidade, não está nos discursos dos decisores políticos. É importante compreender que uma coisa são as políticas e outras coisas são as tutelas. Nós misturamos as tutelas com as políticas. Fragmentamos os assuntos por caixas. O mar não se coaduna com caixas, o mar é altamente transversal.


Se está tudo por fazer, por onde começar?

Por um lado, tem de haver um governo que olhe com olhos de ver para a economia do mar e que torne isto uma prioridade estratégica. Uma prioridade estratégica que, em termos económicos, signifique o mesmo que pesou uma indústria automóvel nos anos 90 ou uma indústria de energias renováveis na última década. Se, pelo menos, não for tão estratégico quanto isso o mar não vai arrancar. Depois, é preciso criar condições para os empreendedores, tornando Portugal um país atractivo para a exploração do mar. As empresas de excelência, competitivas, as que criam emprego e riqueza não se criam por decreto. Mas pode-se, por decreto, criar as condições para que elas surjam, por exemplo, através de políticas fiscais.


O problema é que as políticas do mar continuam sectorializadas? A governação integrada do mar como se faz?

Não vai ser por uma varinha de condão nem por uma decisão mágica de um líder iluminado. São importantes as plataformas de negócio, como estes fóruns, que põem as pessoas a falar entre elas. A nossa nova fronteira no mar é o mar profundo. E é aí que a nossa plataforma continental terá valor. Há tanto para fazer, o que é preciso é juntar as peças do puzzle. Como ouvi dizer a um empresário, basta olhar para o mapa de Portugal. Ver que somos o 110.º país em área terrestre, mas somos a 11.ª zona económica exclusiva e poderemos ser, com a plataforma continental, a 5.ª ou 6.ª.


Também recorda, no seu ensaio, que o mar não é uma fonte inesgotável de recursos.

É importante percebermos que não vai haver aqui atalhos para o lucro. Não pode haver novas explorações do mar que não sejam as mais sustentáveis possíveis. Nós nunca seremos uma porta de entrada para a Europa por muitas razões e uma delas é que, em termos terrestres, somos muito periféricos, por muito que sejam boas as infra-estruturas. Não é aqui que vão desaguar as mercadorias para o Centro da Europa. Mas se formos um país que vê no mar a sua geração de riqueza já é suficiente, para que todos os portugueses tenham melhor qualidade de vida.


A actual crise torna tudo mais fácil, ou mais difícil?

Uma aproximação e uma exploração do mar enquanto recurso natural vai ser incontornável, mas o maior aliado dessa aproximação é a actual crise económica. Há dois ou três anos ninguém tinha tempo para ouvir falar do mar. Neste momento, as pessoas estão atentas, os grupos económicos começam a posicionar-se. Diria que estamos numa fase intermédia, de lançamento de agendas. Já há várias estratégias para o mar, mas uma estratégia só passa a sê-lo quando for interiorizada por aqueles que têm de a executar. E é isso que falta.


Um relatório da FAO diz que em 2015 o peixe para consumo já vai ser mais de metade proveniente de aquacultura... há aqui uma janela de oportunidade, que nós perdemos, ou ainda vamos a tempo?

Essa ideia de que os comboios não voltam à estação não é verdade. Quando cheguei a Portugal das Nações Unidas disseram-me que já não havia condições para desenvolver o transporte marítimo, porque nos anos 70 tínhamos desmantelado a nossa marinha mercante. Desde essa altura até hoje, conheço muitos armadores espanhóis, holandeses, que têm utilizado rotas de transporte marítimo de Lisboa a Luanda, que é uma rota altamente rentável, e que não estão a ser usadas por armadores portugueses. Nós não podemos acreditar que as coisas acontecem para sempre. O transporte marítimo é dinâmico, porque ele significa comércio mundial, e o comércio mundial tem-se alterado muitíssimo nos últimos anos. Com a abertura do novo canal do Panamá vamos começar a ter fluxos de transporte marítimo de Ocidente para Oriente a passar aqui, tudo isto são oportunidades. Mas Sines já deveria ter uma ligação ferroviária directa a Espanha - é a tal falta de visão de que falo. Estamos atrasados, mas não quer dizer que perdemos o comboio. Na aquacultura só perdemos o comboio quando deixarmos de consumir peixe. Enquanto continuarmos a ser os maiores consumidores de pescado a nível mundial, temos de adequar a oferta à procura, senão continuamos a importar. São cerca de mil milhões de euros de défice anual na balança comercial. Falamos muito do preço que pagamos pelos submarinos, e eu recordo que todos os anos pagamos esse mesmo valor à mesa, em pescado. Comemos os submarinos, sem espinhas. E é preciso começar a pensar nisto.


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