Temos um primeiro-ministro que vive em Massamá. Isso é uma oportunidade?Subúrbios

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Pedro Passos Coelho vai continuar a viver neste prédio, em Massamá, concelho de Sintra

Pedro Passos Coelho não é da Lapa, de Campo de Ourique, do Parque das Nações ou das Avenidas Novas e isso tem relevo, dizem especialistas. O novo primeiro-ministro terá uma visão diferente do território por viver na periferia de Lisboa?

a Parece um desenho de criança. Há frentes de prédios quase sempre iguais, por vezes matizadas de estendais de roupa colorida. Depois de se contornar uma rotunda, estamos na Rua Milharada, em Massamá, linha de Sintra, subúrbio de Lisboa. É uma rua vulgar, semelhante a tantas outras.

Com esta pequena nuance. No nº 27, lá em cima, no 5º andar, habita há sete anos Pedro Passos Coelho, primeiro-ministro de Portugal, na companhia da mulher, Laura Ferreira, a filha mais nova e a enteada. É lá também que recebe as filhas mais velhas, Joana e Catarina, fruto do seu primeiro casamento com a cantora Fátima Padinha, que integrou as Doce. E será ali que continuará nos próximos tempos, já que prescindiu habitar com a família no Palácio de S. Bento.

"E então?! Não é uma pessoa como as outras, não estamos fartos de "D. Sebastiães" que nos querem salvar numa manhã de nevoeiro? Não estamos fartos de políticos que idealizamos como sendo gente superior aos demais? Talvez tenha chegado a hora de descer à terra e percebermos que quem está no poder é uma pessoa igual a todos nós", dispara, quase à beira da indignação, Joaquim Alvarães, reformado de despachante oficial, quando lhe perguntamos o que sente por viver na rua do primeiro-ministro.

Habita em Massamá há 20 anos. "Quando vim para aqui, ainda isto era formado por uma série de quintas", diz-nos, valorizando o facto de Pedro Passos Coelho viver como a generalidades dos cidadãos, um sentimento partilhado por outras pessoas com quem falamos. "Ao menos assim acaba por ter conhecimento da forma como a maior parte vive."

Parece um argumento razoável. Mas a verdade é esta: parte do país surpreendeu-se, quando soube que o primeiro-ministro do país vivia na periferia. José Sócrates, por exemplo, habita bem no coração da capital, ao lado do Marquês de Pombal. Durante a campanha eleitoral, embora veladamente, esse facto acabou por ser recordado, quando expressões como "Obama de Massamá" ou "africanista de Massamá", aplicadas a Passos Coelho, se tornaram familiares de muitos portugueses.

Uma surpresa alicerçada nos factos. As pessoas mais qualificadas escolhem, por norma, o concelho de Lisboa para habitar. "Continua a ser factor de atracção para os mais qualificados, quer do ponto de vista escolar, quer profissional", diz-nos Teresa Costa Pinto, professora e investigadora do ISCTE na área da sociologia do território. "Analisando o total da população, continua a ser o concelho mais qualificado e com maior peso das profissões 1 e 2 da classificação nacional de profissões. Daí a estranheza."

Mas mesmo que não existissem os números, de um ponto de vista impressionista não é difícil perceber que há um preconceito social em relação ao subúrbio, à periferia, às zonas dormitório. "Claro que há", afirma o arquitecto Manuel Graça Dias. "Um preconceito de classe, elitista, que não faz sentido, mas que existe. Entre as elites existe uma tendência para conotar negativamente tudo o que é vida suburbana, que pode não ser o ideal de vida para alguns, mas que acaba por ser uma inevitabilidade para outros."

O que talvez não seja tão evidente é que esse chavão é devolvido por quem vive no subúrbio aos que habitam no centro da metrópole. "Não sei como conseguem viver no meio daquela confusão em Lisboa, com carros por todo o lado, no meio do passeio, e com assaltos", diz-nos Armanda Antunes, 28 anos, madeirense de origem, a viver em Massamá há seis anos, a trabalhar em Oeiras. Faz parte de uma nova geração de habitantes dos subúrbios que não necessita da capital para viver - "Para quê? Tenho tudo o que preciso aqui!" -, como também desvaloriza por completo a vida urbana no centro. "Se quero fazer compras, ir ao cinema, faço-o aqui. E ainda por cima estou mais perto da praia."

Surpreendente? Talvez não. "Em inquéritos sobre qualidade de vida o que salta à vista é que são os habitantes de Lisboa os menos satisfeitos em comparação com os da periferia, quer da margem norte, quer da sul", revela Teresa Costa Pinto. "Manifestam uma expressão de sentimentos de satisfação com a própria vida superiores, valorizando componentes do modo de vida periférico que não valorizam os de Lisboa, como estar mais próximo da natureza, não ter problemas de estacionamento ou a proximidade de familiares - o que indicia um modo de vida mais local, menos móvel, mais concentrado no local de morada do que os lisboetas."

É evidente que subúrbios há muitos. Viver no coração de Sintra, em algumas zonas da linha de Cascais, na Quinta da Marinha ou em Fontanelas (Sintra), como acontecia com o presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, não é nada desqualificador. Bem pelo contrário. Mas para muitas outras zonas das margens sul e norte de Lisboa continua a sê-lo.

"As periferias são muito heterogéneas", afirma Teresa Costa Pinto. Pode-se falar de um eixo nobre da metrópole constituída pelos concelhos de Lisboa, Oeiras e Cascais, que têm alguma continuidade em termos da sua estrutura económica e na sua composição social. "Portanto são estratos mais qualificados onde param profissões do topo da hierarquia - profissões técnicas e científicas, quadros de empresas ou algumas profissões liberais."

Massamá não é dos subúrbios mais qualificados, mas também não é dos mais estigmatizados. Fica no meio. "Essa zona tem escolas magníficas e uma dinâmica social, com associações ou bibliotecas, interessante", diz João Seixas, investigador do Instituto de Ciências Sociais e especialista em geografia urbana. Mas é um território "fragmentado e difuso, onde se deixou construir, que sofreu pressões urbanísticas e que não é de fácil planeamento".

Do ponto de vista estético, as cidades novas, como lhes chama Manuel Graça Dias, vão demorar anos para ganharem uma densidade semelhante à da cidade antiga. "Mas claro que há excepções", diz ele, apontando algumas zonas de Oeiras como exemplo.

"Ao pé da estação de Oeiras, aquilo é aprazível e a chamada "Nova Oeiras" tem habitação colectiva de qualidade." Mas essa não foi a dominante ao longo dos anos, na visão do arquitecto, "pela urgência de fazer, pela especulação e porque o Estado se demitiu do seu papel social de criar habitação para toda a gente e entregou muito à iniciativa privada". "Há muita porcaria por aí, mas é possível melhorar e não nos devemos demitir dessa função."

Massamá fica a 20 minutos de carro do centro de Lisboa, se não houver trânsito. Mas de manhã, ou no regresso de Lisboa ao final da tarde, a realidade é diferente. Nessas circunstâncias, no IC19, pode passar-se entre uma hora e uma hora e um quarto dentro do carro. As alternativas são o comboio, os autocarros ou a A16.

Um problema? Sim, claro, mas para os que vivem em Lisboa. Para os locais nem por isso. "Essa é uma das grandes surpresas dos trabalhos já feitos", analisa Teresa Costa Pinto.

"Exagera-se imenso essa história do trânsito. É claro que às vezes o trânsito é chato, principalmente no Inverno, mas faz-se sem grandes problemas", diz-nos Cláudia Marques, dentro do café onde Pedro Passos Coelho costumava ir pela manhã, mesmo na porta ao lado do prédio onde habita. "Desde que foi eleito que não deixam o homem em paz!", exclama.

A desvalorização daquilo que é entendido como problema pelos que vivem em Lisboa é uma constante. Porque "quem sempre viveu em Lisboa, ou quem foi da periferia para Lisboa, não lhe passa pela cabeça gastar hora e meia em transportes", afirma Costa Pinto.

Esses querem estar perto de tudo, viver a cidade, ter uma oferta cultural à porta, querem fazer percursos a pé, concentrando as várias dimensões do seu modo de vida num espaço restrito controlável. Ao contrário, o referencial de cidade central e a acessibilidade nem sempre são valorizados nas periferias.

"Há uma apetência para desvalorizar o contexto, o enquadramento ambiental, o contexto urbanístico, e há uma valorização das questões da casa e da vida familiar no interior da mesma, como se a casa fosse uma ilha, independentemente do sítio onde se está." A mobilidade, a centralidade e a acessibilidade são relegadas para segundo plano, em favor de uma casa nova e maior.

A lógica de expansão urbana nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto iniciou-se nas décadas de 1950 e 1960, acompanhando o processo de industrialização. Desde os anos 60 que Lisboa perde população, o que significa que os subúrbios não são alimentados apenas a partir dos fluxos do interior do país, mas também do interior de Lisboa em direcção às periferias. Um movimento explicado pela dispersão na oferta de empregos e serviços na área metropolitana e, claramente, pelas lógicas habitacionais.

"Ter uma casa na periferia custa menos do que em Lisboa", diz Teresa Costa Pinto. Mas há outras razões. A degradação do parque habitacional do centro faz com que muitos saiam também à procura de melhores condições habitacionais. Desvaloriza-se o velho, a cidade velha, privilegia-se o novo, a cidade nova. Para lá de questões pragmáticas, há todo um simbolismo em ser-se proprietário de um apartamento novo, amplo, com condições, com garagem, a um preço acessível.

"Algumas pessoas da periferia até estariam disponíveis para viverem em sítios recuperados, mas o facto de não poderem ter o carro disponível aflige-os", diz Graça Dias, lembrando que, por oposição, os centros históricos correm o risco de ficarem artificiais, por causa do turismo e das ruas pedonais. "O automóvel pode ter o seu lugar na cidade velha. Quando se transformam as ruas em zonas para fazer turismo e ouvir peruanos a tocar guitarra, as coisas passam a ser artificiais."

Espaço de experimentação

O ideal de cidade, hoje, na Europa, parece ser qualquer coisa compactada, com uma escala humana de construção, com bairros sustentáveis e intimistas. Longe, portanto, da ideia clássica de subúrbio, associado a uma imagem negativa - como se fosse um espaço de ausência onde falta tudo, os equipamentos, as acessibilidades, os serviços.

Mas, na última década, tem havido um processo de autonomização dos concelhos limítrofes de Lisboa. "Tem havido um crescimento policêntrico disseminado", explica Teresa Costa Pinto, com o aparecimento de novos centros que coexistem com o centro da metrópole. Estes novos centros têm vindo a especializar-se - em oferta cultural, de serviços, parques tecnológicos, parques de empresas, parques de escritórios.

Viver hoje na periferia não é, portanto, a mesma coisa do que há dez ou 15 anos. João Seixas vai mais longe, referindo que a Grande Lisboa tem hoje dinâmicas de tal forma complexas que "as condições suburbanas também existem no centro de Lisboa". Há uma grande baralhação de referentes, com condições de cosmopolitismo, por exemplo, a irromperem longe do Chiado. Se do ponto de vista da regeneração da paisagem física, como diz Graça Dias, ainda há um longo caminho a percorrer, do ponto de vista cultural essa regeneração já se sente. "Há zonas que as elites culturais consideram suburbanas que são mais multiculturais e plurais, com mais espaço para experimentações sociais, culturais e educativas do que em muitos bairros de Lisboa", diz João Seixas.

Não por acaso, em países como França ou Inglaterra, é nos subúrbios que irrompem a maior parte das movimentações culturais mais arriscadas. O facto de serem espaços híbridos, onde pessoas de origens diferentes coabitam, pode originar tensão ou então potenciar a criatividade. "Aqui há muitos brasileiros e africanos, mas nunca senti nenhum problema por isso. Aqui toda a gente se dá bem", diz-nos Marcos Areal, empregado de café, como muitos dos seus compatriotas brasileiros a habitarem na zona.

O primeiro-ministro de Portugal nasceu em Coimbra e passou a infância entre Silva Porto e Luanda, em Angola, onde o pai exercia medicina. Quando regressou, estudou no liceu em Vila Real. Durante parte do consulado de Cavaco, viveu no Bairro da Picheleira e depois na Amadora, onde foi vereador, após ter perdido a eleição para presidente da câmara. Nas acções de campanha, em 1998, surgia ao lado de um grupo musical cabo-verdiano. A mulher, Laura, nasceu na Guiné-Bissau.

Em casa ouve-se ópera, mas também morna cabo-verdiana. Há partilha das tarefas domésticas, referem vários artigos. Nas entrevistas, Pedro Passos Coelho faz questão de afirmar que sempre viveu como qualquer cidadão da classe média. "Já o vi aí, à noite, depois do jantar, a passear os cães, parece uma pessoa cordial", diz-nos Maria Angelina, 32 anos, designer de interiores, actualmente à procura de trabalho. "Quem o conhece aqui diz que não é pessoa de luxos e realmente isto n? ?o está para grandes luxos", ri-se ela.

São quatro da tarde de um dia de semana em Massamá e tudo parece tranquilo. Avistam-se alguns estudantes. Um carro passa com música hip-hop em altos berros. Há movimento à porta do spa da Rua Milharada. Numa das marquises, alguém estende a roupa. Maria Angelina vai à farmácia, depois ao centro comercial, mais tarde à escola buscar o filho e não sente falta de nada em comparação com Lisboa.

"Os meus amigos de Lisboa acham sempre que isto não tem vida e que as pessoas se limitam a vir aqui dormir. Percebo que o digam, mas estão erradas. Ao fim-de-semana, enquanto o centro de Lisboa está quase deserto, aqui os cafés enchem. Talvez o tempo aqui seja mais complicado de gerir, entre levar a criança à escola, o caminho para o emprego e o regresso, mas mesmo isso não sei."

Os últimos Censos provam que nos concelhos de Oeiras, Cascais, Amadora, Loures ou Almada existe capacidade de retenção da população. Estão menos dependentes de Lisboa, conseguindo atrair emprego dentro do próprio concelho. E isso é particularmente sentido entre os mais jovens, que podem estudar e ter oferta lúdica e cultural própria - perto de Massamá existe, por exemplo, o espaço cultural Fábrica da Pólvora de Barcarena. As periferias já têm vida própria. "Nas minhas aulas, quando se discute os processos de suburbanização e as questões identitárias, existe defesa do local de habitação por quem vive na periferia", afirma Costa Pinto. "É um espaço familiar, onde estão enraizados e têm amigos. Não admitem associá-lo a uma imagem negativa". "Pelo contrário", continua Teresa Costa Pinto, "a imagem negativa é associada sempre a Lisboa - como espaço de anonimato, de poluição, de não-vivência." "Lisboa, para elas, é apenas um local de passagem."

Por um lado, é um sintoma positivo, sinal de que os espaços se autonomizaram. Por outro, existe demasiada focagem no local de habitação e desconhecimento do que está à volta, ou seja, o mesmo tipo de postura que os do centro têm para com os da periferia.

O Portugal moderno habita, essencialmente, nas grandes regiões metropolitanas de Lisboa e Porto. É aí que muitos problemas irrompem, mas é também aí que novas possibilidades podem ser criadas e fragilidades reparadas. Terá o primeiro-ministro, pelo facto de habitar num espaço com características semelhantes à da maior parte da população, maior sensibilidade para eles?

"Viver num determinado local molda o carácter das pessoas", considera João Seixas. "Mas temos de ter em atenção que as paisagens são cada vez mais móveis e esquizofrénicas." Será uma oportunidade ter um primeiro-ministro que vive na periferia, se este revelar um reconhecimento territorial ajustado? Depende, argumenta Seixas: "Ele pode ter um maior conhecimento das necessidades da grande região de Lisboa, em comparação com uma pessoa que viva no centro e não saiba sequer onde é Massamá, mas não é certo."

O que é certo é que do ponto de vista simbólico é relevante. O próprio Pedro Passos Coelho pode jogar com isso. "É alguém que não é da Lapa, de Campo de Ourique, do Parque das Nações ou das Avenidas Novas e isso tem relevo", continua João Seixas.

"Porque é que as pessoas que estão no poder têm de ser muito diferentes das outras?", interroga Graça Dias. "Espero que tenham a capacidade de ver mais longe, mas isso não significa que tenham de vir de um local ou de uma origem específica."

Voltamos a Joaquim Alvarães, agora bem mais calmo. "O Lula da Silva não era operário? No início toda a gente desconfiava dele, depois todos diziam que ser operário lhe tinha permitido perceber melhor os verdadeiros problemas do Brasil." João Seixas,

geógrafo

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