A feliz melancolia de Yrsa Sigurdardóttir

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Yrsa Sigurdar-dóttir passou dos livros infantis aos policiais: "Há coisas que não podem, ou não devem, ser contadas às crianças" RICARDO SILVA

A acção do policial "Cinza e Poeira" decorre na Islândia, país com uma baixíssima taxa de homicídios e onde os poucos que acontecem são de uma "estupidez deprimente", diz a autora. A felicidade no meio dos vulcões (e da bancarrota), explica, é "uma espécie de melancolia". José Riço Direitinho

O nome da escritora islandesa Yrsa Sigurdardóttir (n. 1963) é de difícil memorização, mas isso não impede que os seus romances policiais se tornem sucessos internacionais. Engenheira de formação, liderou um dos mais arrojados projectos hidráulicos do mundo: a abertura e a construção de gigantescos túneis, no subsolo de lava da Islândia, destinados ao aproveitamento da água do degelo de um glaciar e ao seu aprisionamento numa barragem.

"Cinza e Poeira", recentemente editado, é o seu terceiro romance traduzido para português - os anteriores foram "O Último Ritual" (Gótica, 2007) e "Ladrão de Almas" (Gótica, 2009). A advogada Thóra Gudmundsdóttir está de regresso à investigação criminal. Desta vez, a acção, que decorre nas Ilhas Westmann, leva-a a investigar o caso do aparecimento de uma cabeça sem corpo e de três corpos sem cabeça na cave de uma casa que as cinzas de uma erupção vulcânica acontecida nos anos 70 soterraram. Pelo meio vão surgir fantasmas e segredos que assombram uma família desse lugar, conhecido como a "Pompeia do Norte". Yrsa Sigurdardóttir passou por Lisboa - por ironia, a sua viagem esteve para ser cancelada devido a mais uma erupção vulcânica na Islândia - e o Ípsilon falou com ela sobre os seus romances, os êxitos dos policiais nórdicos e, como não podia deixar de ser, sobre os crimes dos banqueiros islandeses.

A literatura policial nórdica tem características singulares que a diferenciam bastante da americana ou da inglesa. Concorda?

Sim. A literatura policial nórdica tem uma dimensão de preocupação social muito evidente, que a americana não tem. Não é o crime pelo crime que nos interessa, nem aos escritores nem aos leitores, mas sim o modo como esse crime surgiu e como funcionou no tecido social, antes e depois de ter acontecido. Isso também se passa assim nas sociedades nórdicas e, obviamente, nota-se nos livros. E há também as personagens, que são diferentes das americanas: mais reais, mais humanas, não tão estereotipadas. Talvez por vivermos em pequenas sociedades, comparadas com a americana, tudo é mais singular, mais individual.

Não é uma coisa pensada, do género "este é o modelo a aplicar"...

Não, de modo algum. No meu caso, isso é parte de mim, é parte de quem eu sou. Por outro lado, as populações dos países nórdicos não são muito religiosas, e talvez por isso o crime contra a vida, o homicídio, seja visto como a pior coisa que se pode cometer. Não acreditamos noutra vida, e só temos uma, esta. Há essa dimensão humanista muito forte nos policiais nórdicos.

A paisagem natural também desempenha sempre um papel muito importante...

Sim. E especialmente na Islândia, onde a natureza é uma fonte de energia mas é também uma fonte de problemas: os vulcões, por exemplo. Num país em que 95 por cento das casas são aquecidas com energia geotérmica, essa paisagem de fontes borbulhantes e de lava está sempre presente no dia-a-dia.

Nos seus romances, as paisagens parecem ser escolhidas a dedo para aquela parte da história que quer contar. Há quase uma ligação física entre a história e o cenário. A paisagem aparece como personagem...

Engraçado ter notado isso. De facto, normalmente escolho a paisagem antes de ter a história. É a paisagem que me inspira o tipo de crime, por exemplo, ou qual o acontecimento que ali vai decorrer. É quase como se eu imaginasse a história como um filme cujo guião foi escrito de propósito para aquele cenário, que é tão ou mais importante do que aquilo que lá se passa.

Como se explica que os romances policiais nórdicos tenham uma aceitação tão grande por parte de um público vasto?

O policial nórdico fugiu já há muito tempo ao cânone americano; talvez tenhamos criado outro, mas isso é outro assunto. Há uma grande tradição nórdica de policiais, não é um fenómeno de agora. Alguns grandes autores, o sueco Henning Menkell, por exemplo, abriram as portas aos que vieram a seguir. E há outro aspecto muito interessante: a qualidade literária dos romances policiais nórdicos é, normalmente, muito superior à dos romances policiais - grandes mestres à parte - a que o público estava habituado. E isto porque muitos dos autores nórdicos também escrevem, ou já escreveram, outro tipo de romances, ou mesmo poesia. Estou-me a lembrar da norueguesa Karin Fossun, que é uma poeta, ou mesmo do Mankell, que escreve outro género de histórias...

Ou da própria Yrsa, que escrevia livros infantis...

Sim, eu também comecei por aí. Mas depois mudei para os policiais porque há coisas que não podem, ou não devem, ser contadas às crianças. Com elas, e com os jovens, temos de ter muito cuidado com o que escrevemos. Mas por vezes apetece-nos escrever coisas que não lhes devemos contar, sob pena de fazermos delas más pessoas no futuro. E foi por querer escrever coisas que não podia contar nos livros infantis que me virei para o crime. Foi uma espécie de alívio.

É difícil escrever histórias policiais num país tão pouco populoso e onde parece que, de uma maneira ou de outra, toda a gente se conhece?

A princípio foi, por isso arranjei uma personagem alemã, um antigo polícia que não fala islandês, que investiga a meias com a advogada islandesa. Mas aos poucos fui-me habituando à ideia de que os crimes tinham mesmo de ser todos inventados, e de que o que importava era dar-lhes uma dimensão mais ou menos realista. Na Islândia, a média anual de homicídios é de 1,3 por ano... e uma média destas não inspira nenhum escritor... [risos], muito menos um escritor de policiais. E os poucos crimes que acontecem são de uma estupidez deprimente... e quase sempre causados pelo álcool, o que não tem interesse nenhum.

Um escritor norueguês, Jo Nesbø, diz que as personagens dos policiais nórdicos têm uma dimensão mais trágica devido às sagas escandinavas. As sagas influenciam-na?

As sagas são uma parte muito importante da nossa cultura, e sobretudo da cultura islandesa. Crescemos a ouvir histórias de heróis míticos. Como a da saga de Egill, que tem mais de mil anos, em que uma criança de sete anos mata um homem só porque viu que o pescoço dele estava ali a jeito para levar com um machado. Histórias destas marcam a imaginação de qualquer um... E a nossa natureza primária não mudou nada desde esse tempo dos vikings. Mas há um outro lado da dimensão trágica que é trazido pela pequenez da população, pelo facto de quase todos se conhecerem ou de estarem relacionados, especialmente em comunidades mais ou menos isoladas como as islandesas. Por isso, não há ninguém que mate, ou que morra, e que de uma maneira ou de outra não afecte toda a sociedade. Esses factos trazem sempre com eles um halo de tragicidade.

Acha que os romances policiais nórdicos têm uma dimensão poética que os de língua inglesa não têm?

Em termos gerais, sim. Mas porque são boas obras literárias. Os policiais funcionam como um espelho da sociedade que os produz. E um bom romance policial tem de ser muito mais do que contar um crime, ou o que está por detrás da pessoa (ou das pessoas) que o cometem, ou da vítima... para os crimes há as notícias nos jornais ou nas televisões, cheias de pormenores macabros. Um romance tem de ultrapassar essa função linear de relato. A literatura tem de se cumprir a si própria, e isso passa também por essa dimensão poética. Os policiais são romances como os outros, bons ou maus, e é assim que são julgados.

Como é que combina o trabalho como engenheira e como escritora?

Por vezes é muito duro. Mas eu nunca quis desistir do meu trabalho como engenheira porque me mantém em contacto com muita gente, com pessoas que eu porventura nunca conheceria se fosse apenas escritora. O trabalho como engenheira é feito em equipa, e a escrita é uma actividade muito solitária. Ficar fechada em casa a escrever não seria uma boa coisa para o meu espírito.

Mas trabalhou durante muito tempo num projecto [a construção de túneis gigantescos para conduzir a água de um glaciar para uma barragem] localizado numa área muito remota da Islândia...

Sim, e foi muito bom o facto de escrever, porque me permitia ter algumas horas só para mim. Toda a equipa estava sempre junta, desde o pequeno-almoço até ao jantar, e também depois; mas ao fim de alguns meses isso pode ser angustiante, especialmente quando se trabalha em condições atmosféricas muito adversas, ou em túneis húmidos durante muitas horas. Escrevendo, tinha sempre algum tempo para fazer qualquer coisa longe deles.

O inevitável assunto: a crise dos bancos islandeses. Está nos seus projectos escrever sobre os crimes económicos que levaram a Islândia a esta frágil situação económica?

Não, de todo. Eu odeio-os, a esses banqueiros. Não os quero em nenhum livro meu. O que eles fizeram à sociedade e o que eles mudaram aparece inevitavelmente nos romances, como pano de fundo. Mas não vou escrever sobre eles porque iria ser muito má.

Como é que isso afectou a Islândia?

Para além dos evidentes problemas económicos, afectou sobretudo a imagem do país. Se antes, quando se falava da Islândia, toda a gente dizia "que bonito e interessante país!", agora quando ouvem o nome só pensam em bancarrota, no não pagamento dos depósitos e nos vulcões que fazem parar o tráfego aéreo.

Mas a sociedade mudou? Os números de crimes, por exemplo?

Ainda não. Mas o número de suicídios aumentou, algumas pessoas que não conseguiram lidar com a bancarrota mataram-se. Mas teve um lado positivo, que foi acabar com a febre do materialismo. As pessoas, com a situação económica que tinham, estavam a ficar alheadas da realidade e só pensavam em comprar. Isso acabou. Agora há um outro olhar sobre as coisas que realmente importam na vida.

As personagens dos seus livros não parecem muito felizes...

Eu acho que são... são felizes à sua maneira... [risos], à maneira islandesa. Que é um nível um pouco acima da depressão... é uma espécie de melancolia feliz [risos].

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