No Afeganistão, ser mulher é uma maldição

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As mulheres são tratadas como cidadãs de segunda no Afeganistão AHMAD MASOOD/REUTERS

É o pior lugar do mundo para o género feminino, confirma um estudo. RD Congo, Paquistão, Índia e Somália estão a seguir

Mortas para "salvar a honra" da família, vítimas de violência dentro e fora de casa, sem acesso à saúde, ao trabalho ou a outros direitos que deveriam ser seus desde o nascimento. Este é um cenário de horror que atinge milhões de mulheres, mas "em nenhum outro lugar do mundo como no Afeganistão", diz um estudo da Thomson Reuters Foundation divulgado ontem e que proclama este como o pior país para se ser mulher. Um pódio indigno a que sobem também a República Democrática do Congo (RDC), o Paquistão, a Índia e a Somália.

O corpo queimado de Salma, internada num hospital de Cabul, é testemunha do desespero em que vivem inúmeras afegãs. Na véspera do casamento, derramou sobre si o petróleo de um candeeiro e ateou fogo. Anestesiada por fortes analgésicos, contou a um jornalista de TheGuardian que se imolou por estar zangada com os preparativos para a boda, mas negou ter sido forçada a casar ou a ter problemas com o futuro marido. "Muitas vezes têm vergonha do que fizeram", disse Ahmed Wazir, responsável da unidade de queimados onde, no último ano, 21 mulheres foram internadas com queimaduras auto-infligidas.

Os casamentos forçados, "a ausência quase total de direitos económicos", uma das maiores taxas de mortalidade materna - uma em cada 11 grávidas morre no parto - justificam o lugar ocupado pelo Afeganistão no ranking da Thomson Reuters Foundation com base em inquéritos a 200 peritos em questões de género e a que o Guardian teve acesso.

Antonella Notari, ouvida no estudo e directora de uma organização não- governamental (ONG) que apoia o empreendedorismo feminino, lembra que "às práticas culturais" se juntam décadas de guerra e, mais recentemente, os raides aéreos da NATO, fazendo do "Afeganistão um lugar muito perigoso para as mulheres".

"Nem sempre foi assim"

É também esta imagem negra com que Fernanda Lopes ficou do país. "Não me consegui desligar da forma como as mulheres são tratadas", contou ao PÚBLICO a portuguesa, que em 2005 foi consultora das Nações Unidas na província de Mazar-i-Sharif (Norte do Afeganistão), recordando a subjugação feminina em nome do que "dizem ser a cultura e tradição".

"A verdade é que não foi sempre assim. A minha assistente mostrou-me fotos dela quando era nova. De minissaia e cabelo descoberto. Quando lá estive, ela não se atrevia a sair para espaços públicos sem a burqa".

Apesar dos seis anos que já passaram, Fernanda Lopes não acredita que muito tenha mudado. "Fiquei com a sensação de que [a mudança] não seria possível", diz. E explica queos homens que podem influenciar a necessária mudança de mentalidades "não estão a assumir esse papel, por medo de ir contra a tradição". Os jovens afegãos com quem trabalhava, apesar de instruídos, garantiam que nunca deixariam uma mulher sua andar na rua sem burqa: "Diziam que podia ser bonita e ser raptada. Para eles, o que era mau não era o rapto, mas a mulher ser bonita."

Uma das conclusões mais surpreendentes do estudo é a de que, apesar da violência atroz a que estão sujeitas, é a discriminação que mais influencia a vida das mulheres no mundo. "A falta de educação pode ser benigna quando comparada com outros perigos, mas pode revelar-se mortífera, condenando as mulheres e os filhos à pobreza, à doença", argumentam.

É difícil ficar indiferente aos números que chegam da RDC, que a ONU classificou como "a capital mundial das violações colectivas". Segundo a organização, mais de oito mil mulheres foram violadas em 2009 (o último ano com estatísticas) às mãos do Exército ou das milícias que subsistem no Leste do país, mas um estudo norte-americano fala em 400 mil vítimas por ano. "As mulheres são violadas nos campos, a caminho do mercado ou quando vão buscar água, e quando há ataques às aldeias os casos multiplicam-se", explicou ao Guardian Masika Katsuva, que tem a seu cuidado centenas de vítimas do Congo.

De violência falam também as estatísticas do Paquistão, onde milhares são forçadas a casar, muitas ainda crianças. Outras são regadas com ácido quando rejeitam um pretendente ou são vítimas de abusos às mãos das próprias famílias - as ONG falam em mil "assassínios de honra" por ano.

E se é surpreendente a inclusão da potência emergente indiana (devido ao tráfico de meninas para prostituição e dos milhares de abortos anuais de fetos femininos), a presença da Somália, um país sem Governo e há décadas em guerra, não espanta.

"Eu até pensei que estaríamos no primeiro e não no quinto lugar" do ranking, reagiu a ministra somali para as Questões das Mulheres, lembrando a mutilação genital das meninas, as violações e a elevada mortalidade materna. "A coisa mais perigosa que se pode fazer na Somália é ficar grávida. O risco de vida é de 50 por cento, porque não há cuidados pré-natais", concluiu.

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