A culpa da falta de sardinhas frescas? É da nortada

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Nem sempre nos lembramos da importância do vento, mas os incêndios e a queda das árvores, o crescimento do peixe, a fertilização dos cereais e mais de 17 por cento da energia que consumimos em Portugal dependem deste elemento meteorológico.

Noite de Santo António. Onde se servia o petisco típico da noite, em Alfama e noutros bairros populares da capital, a constatação era quase unânime: "Sardinhas? Só congeladas." Português que se preze prefere o peixe saído quase directamente das redes de pesca para o prato, mas as sardinhas este ano saíram magras, não "pingam no pão".

A culpa não será do peixe, mas sim do vento, que não tem soprado de feição. Os pescadores sabem-no por experiência, mas também os geógrafos que estudam o clima. "É verdade que se pode fazer esta associação entre a falta de vento norte no Verão e a sardinha magra", diz António Lopes, investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa.

A chamada nortada, com efeito, ""empurra" as águas mais aquecidas da superfície do oceano para o largo e as águas mais frias e profundas ascendem à superfície, trazendo muitos nutrientes dos quais se alimentam a sardinha e outros peixes". É o chamado upwelling, que desta vez não teve o desempenho esperado.

Em contrapartida, para compensar a falta de alimento para o peixe, pode ser que este Verão as praias de Santa Cruz e do Litoral Oeste sejam mais aliciantes para quem prefere mergulhos mais quentes: uma das consequências do upwelling costuma ser "a diminuição da temperatura das águas do mar junto à costa, bem sentida por quem frequenta as praias" desta região, lembra Nuno Ganho, do Departamento de Geografia da Universidade de Coimbra.

A verdade é que o vento está tão presente nas nossas vidas que seria impossível imaginarmos uma Terra sem ele. Estaríamos a falar de um planeta inteiramente diferente. Para não termos vento teríamos que ter "outra posição no sistema solar, outros movimentos rotacionais e translacionais", exemplifica António Lopes. "O planeta Terra, tal como o conhecemos, deixaria de o ser. Não porque o vento tivesse deixado de existir, mas porque deixariam de existir os mecanismos que o originam", especifica Nuno Ganho.

Logo à partida, a Terra teria de deixar de rodar em torno do seu eixo. Depois, também "seria preciso que o sol se apagasse", acrescenta este docente. É que o vento resulta "das diferenças de temperatura que permanentemente existem entre diferentes locais da atmosfera", provocadas pelo "desigual aquecimento da superfície da Terra e da atmosfera que com ela contacta, pela energia proveniente do sol".

Basicamente, explica Nuno Ganho, é o vento "que transporta a energia dos locais onde esta é excedentária, para os locais onde o balanço energético é deficitário". Ou seja? "Ondas de calor ou de frio, que podem ocorrer em qualquer região da Terra, não são mais do que manifestações de transporte de energia entre diferentes locais, pelo vento, com o propósito de manter o sistema climático em equilíbrio térmico.""Precisas de um moinho"

"Ó tu, que habitas Alcabideche! Oxalá nunca te faltem cereais para semear, nem cebolas, nem abóboras! Se és homem decidido precisas de um moinho que trabalhe com as nuvens sem dependeres de regatos." Tal como o árabe Ibn Muqana já testemunhava, quando em Alcabideche, no século XI, compunha poemas, também a agricultura está desde sempre profundamente ligada a este elemento meteorológico.

Hoje, não tanto pelos moinhos tradicionais, mas por outra importante tarefa: a polinização, fundamental para a fecundação das plantas e que, em alguns casos, não depende dos insectos. "São os cereais, para os quais o vento é importante", nota Eugénio Sequeira, da direcção da Liga para a Protecção da Natureza (LPN), especialista em Engenharia Agronómica e Planeamento do Território.

E se os grãos de trigo e milho já não se desfazem hoje em farinha vigiados pelos moleiros, nasceram entretanto outros "moinhos", mais modernos. Em zonas de relevo, as torres eólicas impõem-se sem grande esforço sobre a paisagem. Em Portugal, já alimentam mais de 10 minutos da electricidade que é consumida por hora. António Sá da Costa, presidente da Apren - Associação de Energias Renováveis, diz que à frente de Portugal, neste domínio, só temos a Dinamarca.

Com efeito, os portugueses são hoje os segundos no mundo que mais consomem electricidade proveniente da energia eólica: esta representa mais de 17 por cento no mix de electricidade nacional (ou seja, a contribuição de cada fonte de energia para o total). Espanha está pouco atrás, com 15 ou 16 por cento, enquanto a Dinamarca tem 22 por cento. A Apren está, aliás, a desenvolver uma base de dados das centrais portuguesas de energia renovável, hoje apresentada nas comemorações do Dia Internacional do Vento, em Lisboa.

Não é por acaso que o peso das eólicas está a subir: não se deve apenas a opções políticas. "Portugal, por causa da sua posição, é um dos países que mais beneficiam do vento para produzir energia", sublinha António Lopes, para quem "sobretudo o litoral e as zonas montanhosas são excelentes para o aproveitamento eólico".

E isto não se afirma sem provas concretas. No Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa, vários alunos de mestrado estão a estudar o vento como recurso - não só pelas potencialidades para a energia, como também para a prática do windsurf, ligado ao turismo.

Já as investigações da equipa CliMA (Clima e Mudanças Ambientais), do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, centram-se sobre efeitos negativos do vento - que podem ser dramáticos, como foi o caso do furacão Katrina que assolou Nova Orleães, ou como na propagação dos incêndios de Verão.

No caso da equipa CliMA, o objecto de estudo não é menos importante. Desde há dez anos que estes investigadores analisam "os efeitos dos ventos fortes sobre as árvores de Lisboa e sobretudo os que originam quedas que atingem pessoas na via pública da capital", explica António Lopes. "A equipa descobriu que uma das explicações poderá estar no estado fitossanitário [estado de saúde] e na adaptação das espécies plantadas nas ruas." Essa é uma questão, aliás, "a que a Câmara Municipal de Lisboa e os serviços de protecção civil deverão ter atenção no futuro e que se relaciona com o modo como fazemos ou não o planeamento do território urbano", alerta este investigador.

O conhecimento do vento e de outros elementos meteorológicos a nível local, influenciados pela proximidade do mar e do relevo, é fundamental, sublinha Eugénio Sequeira, da LPN. Elaborar um mapa de micrometeorologia para o território português é, por isso, um passo prioritário. "É muito importante, por exemplo, no combate aos incêndios", avisa este responsável.

Mais ventanias no futuro?

O estudo das deslocações do ar também pode evitar surpresas desagradáveis na agricultura. Foi o que não sucedeu no Natal de 2009, quando o vento forte trouxe de presente aos agricultores da Região Oeste a destruição das estufas.

"Há cada vez mais tornados, tufões e ciclones. Tudo isso vai aumentar, porque vai haver cada vez mais energia que se tem de dissipar de alguma forma", acredita Eugénio Sequeira.

Já os geógrafos contactados pelo P2 têm poucas certezas: "Parece não se confirmar nenhuma tendência secular das velocidades do vento no litoral português. O que parece acontecer é que em períodos mais ou menos longos o vento aumenta de intensidade, mas noutros diminui", comenta António Lopes.

Esta é uma opinião partilhada por Nuno Ganho: "As variáveis em jogo são muito diversificadas e nem todas actuam no mesmo sentido", afirma. Em Portugal, os cenários de futuro quando se analisam as mudanças climáticas - como aquelas provocadas pelo efeito de estufa - são "demasiado especulativos para que se possa ter alguma unanimidade entre os investigadores em ciências da atmosfera."

"As aparentes certezas, neste domínio, encerram muitas incertezas", conclui. A única quase certeza é que o vento irá continuar a soprar com pouca intensidade: o Instituto de Meteorologia prevê para hoje, no continente, "vento em geral fraco (inferior a 20 km/h) de noroeste, soprando moderado (20 a 35 km/h) durante a tarde". Na Madeira, também será "fraco" e prevê-se "bonançoso" (até aos 50 km/h) nos Açores.

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