Fernando Farinha A guerra num click

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cortesia fernando farinha

Botas de lama em fila. Rostos de guerra. Medo. Dor física, interior. Feridos, caminhada, sofrimento. Cansaço, muito cansaço. Pequena poça de água, enchem-se os cantis. Céu negro, fumos do combate. O som do helicóptero. Mas também o sorriso, a camaradagem com os camuflados do lado. Recordações de Angola que ficaram registadas nas 36.500 películas fotográficas tiradas por Fernando Farinha nos 13 anos da Guerra Colonial. Acompanhou-a quase diariamente desde que apanhou, por acaso, numas férias em Luanda, os ecos dos massacres de 1961. Tinha 19 anos.

Conseguiu trazer para Portugal 500 destas imagens. Já ilustraram muitas publicações sobre a guerra. As outras 36 mil ficaram no arquivo da revista Notícia, em Luanda. Correspondem aos mil rolos que calcula ter feito até ao 25 de Abril de 1974. 36.500 "disparos", sempre sem arma. Fernando Farinha, de 69 anos, agora reformado, foi repórter fotográfico premiado nos 21 anos de trabalho no Diário de Notícias. Acompanhou as movimentações militares mais importantes no Norte e no Leste de Angola.

Fernando Farinha rumou para Luanda, com a mãe, intérprete da Mobil Oil Portuguesa, em 1954. "Tinha uns sete anos. Eu e a minha mãe ficámos instalados numa casinha de madeira na ilha de Luanda, onde se ouvia à noite o borbulhar das ondas. Fiz o liceu em Luanda e depois estudei dois anos para regente agrícola no Tchivinguiro, Lubango. Estava aí em Fevereiro de 1961, quando houve os ataques nacionalistas em Luanda. Passaram completamente despercebidos, ninguém me falou no assunto. Mas quando fui gozar umas férias a Luanda, deu-se o 15 de Março. Soube-se da barbárie de brancos e negros cortados à catanada, dos bebés massacrados, tudo à frente... comecei a perceber que algo de anormal de passava. Politicamente, era analfabeto."

Tudo seria diferente a partir de então. O director do jornal O Comércio, Ferreira da Costa, desafiou o jovem para o ajudar nas férias. "Comecei a trabalhar como redactor. Ficava no aeroporto a ouvir os feridos que a Força Aérea evacuava. Chegavam com feridas de toda a ordem, eram os mais graves. Falava com muita gente de manhã à noite, mas ao fim de uns dias estava farto, pensei que o melhor seria ir até ao Norte."

Rolos nas talas dos feridos

Sem ninguém saber, numa manhã de Abril de 1961, Fernando Farinha apanhou o machimbombo (autocarro) até à Fazenda Tentativa, a dezenas de quilómetros de Luanda, final da carreira e limite de segurança para a "estrada do café". "Encontrei aí um esquadrão de Cavalaria com Panhards (carros de combate) que faziam a fronteira com o Norte, para as povoações de Quibaxe, Quicabo, Úcua, etc., com tropa que já estava em Angola. Escoltavam os camiões civis de mercadorias que só podiam prosseguir em coluna. Fui pedir ao comandante, o alferes Marinho Falcão, para ir e regressar na seguinte. Ele achou piada e deixou-me ir. Eram uns 40 soldados a guardar 16 camiões, com carros de combate. Seguiam muito devagar, quando havia curvas e terreno propício a emboscadas lá tinha de ir a Engenharia à frente e só depois é que avançávamos. Até que chegámos ao Úcua."

Uma surpresa aguardava-o: o tenente-coronel Maçanita preparava-se para rumar com as suas tropas até Nambuangongo, zona de centenas de fazendas de café e quartel-general da UPA (depois FNLA), autora dos massacres. A missão consistia em reocupar a povoação tomada pelos nacionalistas. No percurso para Nambuangongo, Fernando Farinha estreou-se. "O meu primeiro ataque foi num bananal. Íamos de jipe, toda a gente saltou, abrigou-se e depois fez-se fogo. Na maior parte das emboscadas não se viam os atacantes. Em Nambuangongo havia emboscadas quase todos os dias. As viagens não se contavam por horas, mas por troncos de árvores abatidos nas estradas. Numa viagem podíamos ter cento e tal árvores a barrar o caminho. Levávamos 24 horas para andar seis quilómetros."

Fotografava com uma pequena máquina e fazia uns rascunhos para mandar para Luanda, onde um redactor se encarregaria do artigo. "Escrevia o que estava a acontecer e eles na redacção reescreviam. Em Nambuangongo compravam todos os dias O Comércio para saberem o que acontecia na zona. O jornal fazia umas parangonas, os leitores absorviam aquilo. Eu puxava pela cabeça para mandar o material. Os rolos fotográficos vinham nas talas dos feridos evacuados, mesmo sem comunicação para dizer que as fotos iam a caminho. Muitas vezes era o ferido que em Luanda pedia para telefonar porque trazia um rolo."

A cobertura jornalística incidia nas fazendas massacradas que continuavam esporadicamente debaixo de fogo. Os pilotos da Força Aérea colaboravam, quando tinham tempo. O Comércio tinha o chamariz: "Fernando Farinha da frente informa". Era o título a toda a largura da página e só depois se seguia a reportagem. Ele foi herói na imprensa angolana. "Quando cheguei a Luanda, tinha gente no aeroporto à minha espera." O objectivo do aprendiz de jornalista era que a informação chegasse aos leitores, muitos das áreas dos confrontos. "Eu mandava os factos dos ataques, o número de feridos e a história das emboscadas, sem comentários." Medo? "Tinha. Mas quando punha o olho no visor da máquina, o que se passava do outro lado não me dizia respeito. Era como ver um filme sentado no sofá."

Não testemunhou os horrores de Março. "Quando eu cheguei, já o Norte estava a ser reocupado. Já não vi nenhum massacre. Mas sofri muitos ataques, de "toca e foge" e emboscadas, com feridos dos dois lados. Era uma guerra em que nos ouvíamos, não nos víamos. Os guerrilheiros estavam sempre a alguma distância."

Foi dos poucos jornalistas que privou com os militares portugueses que combateram nesta zona quente. "Eu ia para os quartéis e para as fazendas, mas não aparecia para fazer a operação do dia seguinte. Eu ficava 15 dias. Comia lá, andava na laracha com eles, nas patrulhas... Um ano depois viam-me como um tropa." Fernando Farinha tirou o curso dos Comandos, o de pára-quedismo para voar, e equitação para seguir com a Cavalaria. Confiavam nele. "A única coisa que me pediram, e eu cumpri, foi para tratar o inimigo por "bandoleiros" ou "terroristas" e nunca por "guerrilheiros". A partir daí tinha carta branca." Fez operações com a 2.ª Companhia de Comandos do Jaime Neves. "Só levava a máquina fotográfica. Sem arma. Era lançado nas frentes, mas tinha gente que me protegia. Fui um privilegiado. Depois com a confiança, até os generais me diziam: "Farinha, porque não experimenta estar no dia tal em tal sítio?" Eu já sabia que era uma grande operação."

Tudo começou em 1961, com um biscate nas férias, e terminou em 1974, com passagem pela Guiné, com Spínola, e por Moçambique, com Kaúlza de Arriaga. De Angola sobraram 500 fotografias. Têm ilustrado profusamente esta fatia da História Contemporânea Portuguesa. "Nem sei de todas as revistas e jornais portugueses que publicaram fotos minhas. E capas. Livros são seis ou sete. Perdi-lhes o controlo." As exposições têm sido muitas. Uma permanece há cinco anos no Forte do Bom Sucesso.

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