O extravagante Dido e Eneias da Mezzanine

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Dido e Eneias

Dido e Eneias

De Purcell. Théâtre de la Mezzanine. Denis Chabroullet (encenação), Jean-Marie Puissant (direção musical), Anne Rodier, Thill Mantero, Mayuko Karasawa, Antonia Bosco e outros (cantores). Guarda, Teatro Municipal, dia 2, às 21h30. Repete dias 8 e 9, às 21h30, no Teatro Viriato de Viseu. Sala a dois terços

O encenador Denis Chabroullet é conhecido como "o poeta do desastre", vertente bem presente na recriação da ópera barroca Dido e Eneias, de Henry Purcell (1659-1695), que concebeu para a companhia francesa do Théâtre de la Mezzanine, recentemente apresentada no Teatro Municipal da Guarda, onde teve um entusiástico acolhimento do público. O espectáculo seguiu depois para Guimarães e pode ver-se ainda no Teatro Viriato de Viseu amanhã e depois de amanhã no âmbito da rede 5 Sentidos.

Em vez dos palácios de Cartago, Chabroullet mostra-nos o cenário fantasmagórico de uma fábrica abandonada suspensa sobre a água, espelho do caos de um mundo que se destrói. Toda a acção se passa literalmente com os pés na água com excepção das figuras que escalam as estruturas de madeira e os canos desordenados e do grupo instrumental barroco, dirigido por Jean-Marie Puissant, que toca em cima de uma plataforma. No início dezenas de velas pairam sobre a água, uma imagem mágica e poética se não descortinássemos logo a seguir um corpo que flutua... Será esse mundo, povoado por seres estranhos e ameaçado pela tempestade e por forças manipuladoras, que Eneias encontrará no regresso de Tróia. Dido, a Encantadora (Feiticeira) e as suas Bruxas - herança das cómicas bruxas shakespearianas - são caracterizadas com imaginação, sobretudo as duas Bruxas que se tornam siamesas através da cauda única de um longo vestido vermelho.

É um espectáculo de imagens fortes que hipnotizam o espectador e retoma em versão contemporânea a extravagância do Barroco, mas também sobrecarregado por elementos estranhos ao libreto (o homem da trompa às costas, a loura lasciva ou as duas bailarinas seminuas de cabeleira vermelha nas suas motos... ), cujo significado nem sempre é imediato e se pode tornar ainda mais confuso para quem não conheça o original. Chabroullet diz que a obra-prima de Purcell nos remete "para a força surpreendente da criação quando o mundo entra em colapso". De facto, no final é a música que triunfa e prende a nossa atenção no comovente Lamento de Dido, cantado com emoção e sentido dramático pela soprano Anne Rodier, mas na maior parte do tempo o aparato cénico e teatral sobrepõe-se à música. No fundo Dido e Eneias parece um pretexto para Chabroullet dar largas à sua imaginação e às suas convicções como o poderiam ser também outras obras.

No plano musical, o uso de apenas um instrumento em parte prejudicou o equilíbrio na Abertura e nalgumas das danças sentindo-se a falta de maior densidade nas cordas (bastariam mais alguns violinos), mas nas secções mais camarísticas com predomínio do baixo contínuo o ensemble funcionou melhor, assim como em peças adicionadas como a Chaconne do I Acto. A secção de contínuo forneceu, de resto, algumas das melhores prestações como as de Stefano Intrieri (cravo) e Leonardo Loredo (tiorba e guitarra barroca). Reduzido a um quarteto com vozes algo heterogéneas, também o coro necessitava de maior densidade e de uma coordenação mais apurada mas a movimentação em palco não ajuda. Entre os solistas destaca-se acima das restantes Anne Rodier (Dido), dotada de um timbre cálido pleno de cores. Mayuko Karasawa foi uma expressiva Belinda, a Feiticeira e as Bruxas (Antonia Bosco, Shigeko Hata e Benjamin Clée) muito convincentes no plano musical e teatral, Thill Mantero um nobre Eneias, mas a Segunda Dama (Roselyne des Tuves) mostrou-se menos segura.

Cristina Fernandes

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