A GNR fez 100 anos e deixou de meter medo

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Há não muito tempo, um cavaleiro da GNR costumava ser descrito como "um burro em cima de um cavalo". A polícia militar portuguesa, criada há cem anos, tinha fama de ser conservadora, violenta e um pouco bruta. Assustava. Mas já não é assim. Os guardas são hoje mais jovens, mais instruídos e mais afáveis - são, cada vez mais, polícias como os outros.

A história vale o que vale. Está contada em vários blogues e reza assim: um indivíduo resolve vender o automóvel e, por isso, cola no vidro traseiro uma folha com o número do telemóvel. Daí a pouco, enquanto conduz, o aparelho toca e ele atende. Dizem-lhe: "Bom dia, fala de uma unidade móvel da Brigada de Trânsito da GNR e estamos atrás de si. O senhor não sabe que é proibido atender o telemóvel enquanto conduz? Encoste por favor."

Pode ser apenas um mito urbano, ou uma anedota, mas diz muito sobre o modo como a Guarda Nacional Republicana continua a ser percepcionada por aqueles de quem cuida. Ao fim de cem anos de história, cumpridos este mês, a polícia militar portuguesa ainda é vista como uma polícia retrógrada, severa e retorcida. Esta imagem está, porém, a mudar - e muito depressa.

"A GNR já tem uma imagem muito diferente daquela que tinha, dos guardas brutos e que só sabiam bater. A sociedade agora é outra e a GNR é uma polícia como as outras. Até no trânsito já não se fazem aquelas fiscalizações repressivas, também se faz prevenção", diz a sargento-ajudante Carla Silva, comandante do posto territorial de Avintes, em Vila Nova de Gaia, uma das 1477 mulheres que actualmente compõem os quadros da guarda. As militares do sexo feminino principiaram a chegar à GNR em 1993, uma década depois de a PSP ter começado a acolher sistematicamente agentes femininas (no Exército, o ingresso da primeira mulher nos quadros permanentes ocorreu em Abril de 1989), e, segundo a comandante Silva, ajudaram a atenuar a imagem mais conservadora da GNR.

Em Fevereiro, a GNR foi mesmo notícia por causa do casamento de uma capitã com uma cabo, as quais formaram o primeiro casal de lésbicas de uma corporação militar com fama de tacanha e até um pouco marialva. O caso de Patrícia Almeida, de 27 anos, e Teresa Carvalho, de 39, dividiu opiniões e gerou incómodos, mas serve bem para ilustrar o quanto a GNR mudou.

Bastará, aliás, dar uma vista de olhos pelas páginas das ocorrências policiais dos principais jornais para dar conta das mudanças. Têm-se sucedido, no último mês, casos de militares da GNR vítimas de agressão e até de sequestro, como aconteceu em Alijó há cerca de duas semanas: um toxicodependente encostou uma faca ao pescoço de um guarda numa das principais avenidas da cidade, mantendo-o manietado durante alguns minutos.

"Estas ocorrências revelam um grande sentimento de impunidade. Ao agredir um guarda, agride-se o Estado. E as consequências para quem o faz não são suficientemente dissuasoras, pelo que podemos estar a evoluir para uma situação que prejudicará muito aqueles que vivem de acordo com as regras", considera o capitão Paulo Nogueira, comandante do destacamento territorial de Penafiel. Mas, acrescenta, as notícias que mostram uma GNR mais frágil têm também um lado bom. "Antigamente, se calhar, os guardas eram quem agredia em primeiro lugar. Hoje os guardas pautam-se por determinadas regras e pela contenção no uso da força."

Nem sempre foi assim, porém.

Criada em 3 de Maio de 1911 para ser uma espécie de guarda pretoriana do então jovem regime republicano, defendendo-o das constantes variações da fidelidade do Exército e da Marinha, a GNR tinha, então, 14 mil homens bem armados, com artilharia pesada e metralhadoras. A guarda fazia e desfazia governos, perseguia adversários e tomou parte, por exemplo, na Noite Sangrenta de 19 de Outubro de 1921, durante a qual foram assassinados vários fundadores da república.

Na sequência deste célebre episódio, a GNR foi neutralizada logo em 1922 e transformada, depois, numa polícia rural, substituindo as guardas reais e municipais criadas no século XIX. Não deixou, ainda assim, de continuar a participar em alguns dos mais dramáticos momentos da História portuguesa, assumindo quase sempre o papel de braço armado do poder repressivo instituído. Oprimiu e matou, dando apoio, também, às acções da Polícia Internacional de Defesa do Estado, PIDE, a polícia política salazarista. Em algumas povoações, cabia inclusivamente à GNR fazer a censura prévia e aprovar ou não as quadras satíricas que eram declamadas nos festejos populares.

"Eu servi na GNR e na PIDE. Onde eu vi grandes sovas foi na GNR", disse, numa entrevista incluída no livro Histórias Secretas da PIDE, o ex-pide Óscar Cardoso, revelando uma realidade que justificará algum do receio que a guarda ainda inspira - ou não tivesse partido de um militar da GNR o tiro que, em Baleizão, matou a camponesa Catarina Eufémia a 19 de Maio de 1954.

Este não foi, muito longe disso, caso único durante o regime salazarista. A repressão constante das manifestações do 1.º de Maio e das greves na CUF de 1919, a ocupação militar do Barreiro em 1943, a carga de cavalaria contra os estudantes de Coimbra em 1969 e a morte de vários trabalhadores rurais e fabris entre 1943 e 1969 (Alfredo Lima, Rosa Morgado, Germano Vidigal, Alfredo Lima Dias, João Adelino Santos, Francisco Brito...) são apenas alguns dos mais trágicos acontecimentos associados à polícia sob cuja protecção se colocou Marcelo Caetano no 25 de Abril de 1974. Um mês antes, a 16 de Março, tinha sido também a GNR a neutralizar ainda o chamado Golpe das Caldas, espécie de ensaio para a revolução iminente.

Muito depois disso, em 1996, a guarda viria ainda a estar ligada à morte e decapitação de um homem de 25 anos no posto da GNR de Sacavém, tendo o corpo sido encontrado, dias depois, num jardim de Chelas. O homicídio foi atribuído a um sargento "com fama de duro nos interrogatórios" e o caso alimentou manchetes de jornais durante semanas. O caso de Sacavém serviu ainda de inspiração ao italiano António Tabucchi para escrever o romance A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro - e soou como um toque de alarme no interior de uma corporação de polícia militar que era vista como um contingente autoritário formado por homens barrigudos e pouco instruídos, de bigode e com nódoas de gordura nas fardas. O povo chamava-lhes "Grande Ninhada de Ratos" e descrevia um cavaleiro da GNR com a expressão "um burro em cima de um cavalo".

Lidar com o cidadão

"Tendo em conta aquilo que a GNR mudou, e o facto de ser uma polícia mais aberta à sociedade e especializada, hoje seria mais difícil que um caso como o de Sacavém pudesse servir para fazer generalizações", considera o capitão Paulo Nogueira.

"Hoje tentamos passar uma imagem agradável, em vez de uma imagem repressiva. Não queremos ser aqueles a quem os pais recorrem para obrigar os filhos a comer a sopa", diz o guarda Ricardo Lisboa, 34 anos, do destacamento de intervenção, especialistas em inactivação de explosivos. "A população já não tem a mesma impressão dos militares da guarda. Somos atletas, bem preparados e o nível cultural aumentou muito", acrescenta.

"Agora têm outra formação, sabem receber e sabem lidar com o cidadão", concorda António Lopes, comerciante há 26 anos na cidade de Penafiel, cujo policiamento está há vários anos exclusivamente entregue à GNR. "A guarda tem um bom relacionamento com a população", diz. E os guardas "são mais novos", junta Fátima Vieira, outra penafidelense. "Fazem bem o trabalho deles", acrescenta a irmã, Filomena.

A grande maioria dos guardas tem habilitações literárias acima do 9.º ano de escolaridade. "Em 31 de Dezembro de 2010, 36 por cento dos militares da GNR (8328) tinham habilitações literárias iguais ou superiores ao 12.º ano; destes, mais de 13 por cento (1112) tinham habilitações literárias de nível ensino superior", sublinha o tenente-coronel Costa Lima, revelando uma realidade que contrasta enormemente com a descrita, em 1981, pelo tema Sê um GNR, escrito por Vítor Rua para o outro GNR, o Grupo Novo Rock: "Tens 18 anos e a quarta classe (...) vem ser um gordo da GNR."

O quadro etário também se alterou substancialmente. Hoje, 13.700 dos guardas têm menos de 40 anos.

As regras de recrutamento não obrigam os candidatos a possuírem experiência militar anterior - os militares das Forças Armadas e os civis concorrem em conjunto, sendo 30 por cento das vagas ocupadas preferencialmente pelos primeiros -, mas o estatuto dos guardas continua a defini-los como "soldados da lei" e a impor-lhes a obrigatoriedade castrense de defender a pátria, "se necessário, com o sacrifício da própria vida". Embora sob a alçada geral do Ministério da Administração Interna, os militares da guarda estão na dependência operacional do chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. Encontram-se também sob a alçada da Lei de Bases do Estatuto da Condição Militar, do Código da Justiça Militar e do Regulamento de Disciplina Militar, passando a tutela, em caso de guerra, a pertencer ao Ministério da Defesa.

Ao cumprir cem anos, esta "força de segurança de natureza militar" tem por principal missão "assegurar a legalidade democrática, garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos". "A Guarda Nacional Republicana de 2011 é uma força de segurança que tem acompanhado de muito perto a evolução de Portugal enquanto país democr? ?tico", considera o tenente-coronel Costa Lima, porta-voz da instituição. Sendo "constituída por militares que são os filhos de Portugal", a guarda, antes como agora, tem, também ela, sido "a imagem do país", considera o responsável pela Divisão de Comunicação e Relações Públicas. "Fomos perdendo a rigidez estrutural", complementa o comandante de Penafiel.

Com 24.108 funcionários (dos quais 900 são civis) e um orçamento que, em 2010, chegou aos 810,44 milhões de euros, a GNR cumpre um leque diversificado de funções. Mantém a componente de segurança pública e está presente em 94 por cento do território nacional, servindo cerca de seis milhões de pessoas. Assimilou a Guarda Fiscal e adquiriu funções na área da investigação criminal, da protecção do ambiente e do socorro especializado. "A GNR é a única força de segurança que está presente em todos os concelhos de Portugal continental, com várias situações curiosas, como, por exemplo, o facto de, na ilha do Corvo, ser a GNR o único representante da autoridade do Estado", sublinha o tenente-coronel Costa Lima.

A componente mais militar está sobretudo concentrada da unidade de intervenção, responsável pela participação portuguesa em missões internacionais, como no Iraque, em Timor ou no Afeganistão. A GNR tem actualmente deslocados 166 homens de uma verdadeira tropa de elite.

"Exceptuando as missões oficiais, os guardas do dispositivo territorial são mais polícias do que militares", reconhece o capitão Paulo Nogueira, segundo o qual, porém, uma eventual fusão com a PSP poderia revelar-se complicada e geraria "resistências e dificuldades". "Na GNR cumpre-se uma carga horária muito superior à da PSP. Se houvesse uma fusão, teriam de ser criadas mais vagas no quadro", salienta o comandante de Penafiel.

Para já, os programas eleitorais dos dois principais partidos não prevêem qualquer fusão, ainda que o relatório de actividades de 2010 da GNR constate a escassez de recursos materiais, humanos e financeiros, bem como a "desmotivação para o serviço". O documento destaca ainda as restrições orçamentais existentes, responsáveis por algumas dificuldades operacionais.

No plano mais simbólico, até o lema "pela lei e pela grei", de má memória para muitos daqueles que foram forçados a passar pelos postos da guarda durante o regime de Oliveira Salazar, vai sendo, aos poucos, apagado e substituído por novas formas de comunicação. Na Internet, a GNR apresenta-se como "uma força humana, próxima e de confiança".

A guarda está presente também nas principais redes sociais e, no Facebook, nem sequer apaga mensagens como a de uma frequentadora que, há dias, chamava "vendidos" aos militares e os descrevia como uma "cambada de ovelhas que andam na ilusão [de] que, por terem uma farda vestida, não pertencem ao povo". Se isto não é uma GNR diferente... A

jmarmelo@publico.pt

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