"Espanha é um país frustrado"

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Arturo Pérez-Reverte escreve romances como jornalista, mas sobretudo como leitor: "Os meus leitores percebem que têm à sua frente um leitor como eles, um irmão" ENRIC VIVES-RUBIO

O assédio feito há dois séculos pelas tropas de Napoleão à cidade de Cádis foi o pretexto para que Arturo Pérez-Reverte fizesse um imenso balanço de meia vida a escrever romances. Conversa com um romancista cercado de mundo, e naturalmente pessimista. Rui Lagartinho

Quando nos encontrámos com Arturo Pérez-Reverte (Cartagena, 1951), ainda não tinham passado 24 horas sobre a captura e a morte de Bin Laden. Os olhos do antigo repórter de guerra brilham, a voz entusiasma-se: "Teria dado metade da minha vida para estar neste momento no Paquistão. Ao lado dos americanos nesta batalha decisiva." Não pôde estar, mas a aritmética com que retalha a sua biografia, sentado num confortável hotel do centro de Lisboa, a milhares de quilómetros do Paquistão, é exacta. Pérez-Reverte, quase a completar 60 anos, andou metade da sua vida profissional de mochila às costas, cobrindo os conflitos do mundo: no Iraque, na Bósnia, em Moçambique. Depois, na outra metade, assentou e decidiu ser romancista. Vinte livros depois, é o escritor espanhol mais lido no mundo, traduzido em 34 idiomas, e membro da Real Academia Espanhola.

"O Assédio" é o mais extenso dos seus livros. Nele confluem e reconhecem-se os sinais e os estilos revertianos: "Tinha a ambição de escrever um romance que fosse ao mesmo tempo policial, de espionagem, de marinheiros, de ciência. Um livro de aventuras, preciso nos detalhes históricos, romântico na hora de contar uma história de amor."

Não nega que entregou ao leitor um imenso puzzle com mais de 700 páginas, pensado com uma precisão de engenheiro e militar: "Diverti-me imenso a misturar géneros diferentes. Foi um romance muito mais planificado do que os anteriores. Tenho a sorte de ser lido por pessoas muito diferentes: quando escrevo um romance penso nelas todas, e isso faz com que a estrutura tenha de ser pensada para que todos se sintam bem dentro dele e não se aborreçam. É por isso que numa página se discutem questões de artilharia militar entre altas patentes e na seguinte já estamos mergulhados nos becos e nas travessas de Cádis, no meio do barulho e dos cheiros da cidade. Tentei que a mistura se fizesse de forma suave e que ninguém fugisse".

A Cádis de "O Assédio" é a cidade cercada pelos franceses durante a Guerra da Independência Espanhola de há dois séculos: "É uma cidade incrustada no mar e que se mantém inalterada há 300 anos. E naquele início do século XIX era uma cidade diferente de toda a Espanha: culta, progressista, burguesa. Como o eram Manchester, Baltimore ou Hamburgo. Com um espírito que infelizmente não conseguiu triunfar no resto do país e que com o fim da Guerra da Independência desapareceu."

É uma imagem constante nos livros que o apaixonam: "A ideia da cidade cercada sempre pontuou a minha vida. Em adolescente, no colégio, traduzia Homero no relato que ele faz da Guerra de Tróia. Como repórter de guerra estive em muitas cidades assim. Gosto desta ideia dos heróis acossados, cercados, e que vão regressar a casa cansados."

Inglês "ou muerte"

A história vai levantando os cercos, mas há uns mais difíceis de levantar do que outros, e capacidades de resistência mais trágicas do que outras: "Um romance é sempre uma consequência da tua visão sobre a sociedade que nele conflui. E a minha é amarga e pessimista. Espanha é um país historicamente frustrado. Teve reis incapazes, aristocratas corruptos e bispos fanáticos. E hoje a classe política herdou tudo isso. É analfabeta, medíocre e qualquer visão de futuro que se atreva a ter está sempre condicionada pelas eleições seguintes. Conseguiram acabar com um Estado que levou 500 anos a construir. Quando falo com gente jovem do meu país e me pedem conselhos sobre o futuro, só lhes consigo dar duas hipóteses de escolha: ou aprendem inglês para que possam sair de Espanha ou aprendem a fazer um cocktail molotov".

Brutal, mesmo para quem acredita que os livros nos podem ir salvando: "Um mundo sem livros seria um mundo órfão. Os livros ajudam a que morras de forma tranquila. Dão-te um olhar sereno e relativo sobre o mundo. Uma biblioteca é um projecto de vida. Dá-te consolo, esperança. É a possibilidade de nunca estares só. Escrever permite-me prolongar a minha vida: conhecer mais mulheres, eliminar outros inimigos. Sem escrever tudo isso teria já terminado para mim."

Percebe-se que mesmo enredado e apostado em inventar personagens novas, desta vez o desafio era que o mais abjecto dos polícias despertasse simpatias no leitor. Pérez-Reverte nunca deixou de ser repórter. Quanto mais não seja de si mesmo: "Escrevo com o que vivi. Quando conto, recordo experiências. Ou transformo imagens. Foi o que fiz quando me inspirei numa das minhas avós para criar Lolita Palma, a heroína audaz, pragmática e levemente romântica de "O assédio". Nisso sou bem diferente dos romancistas que são capazes de imaginar o mundo sem sairem de casa. Talvez eles sim, sejam os verdadeiros romancistas. Estou a lembrar-me do meu amigo Javier Marías". Ele, mais do que um romancista, é "um leitor que às vezes escreve romances": "Nunca perco de vista essa perspectiva de leitor. Antes e depois de começar a escrever. Sempre que tenho um problema técnico, recorro aos meus mestres - Conrad, Tosltói, Dumas - para humildemente perceber como o resolveram. E os meus leitores percebem que têm à sua frente um leitor como eles, um irmão."

Ver crítica de livros pág. 38 e segs.

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