Quando a arte saiu da parede e pôs o pé no chão

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"Echo" (1973), de Dennis Oppenheim (em cima); em baixo, da esquerda para a direita, "Walking Camera II (Jimmy the Camera)" (1987), de Laurie Simmons, "Blim Bam" (1999), de Dara Friedman, e "Striding Crawling" (1977), de Simone Forti

Entre os anos 60 e 80, vários artistas recusaram pintar telas e pendurar quadros nas paredes do cubo branco. A arte, diziam, devia ser mais do que isso.

Começaram a fazer gestos e poses, a dançar e a caminhar sobre pinturas, a inventar corpos e narrativas. Contra a parede, no chão, na rua. "Off The Wall",

que hoje se inaugura no Museu de Serralves, conta essa história da arte performativa e, pelo caminho, desvela outras. José Marmeleira

Dois homens escrevem numa parede, repetida e incansavelmente, a frase "I Will Not Make Any More Boring Art". Várias salas à frente, um filme mostra a homem a pintar o chão e as paredes de um quarto. De forma diligente, numa acção a que não falta um toque de humor, assim que a imagem é acelerada.

Desfaçamos o mistério. As acções têm a assinatura de John Baldessari e fazem parte de "Off The Wall/Fora da Parede", exposição que hoje se inaugura e amanhã abre ao público no Museu de Serralves. Comissariada por Chrissie Iles e organizada pelo Whitney Museum of American Art de Nova Iorque, compõe um panorama das relações entre as artes visuais e as artes do tempo, através de uma centena de obras que representam acções perfomativas de nomes como Carl Andre, John Baldessari, Robert Longo, Robert Mapplethorpe, Bruce Nauman, Yoko Ono, Claes Oldenburg, Dennis Oppenheim, Tony Oursler, Richard Serra, Cindy Sherman e Andy Warhol, entre muitos outros. Uma narrativa sobre o momento em que a arte enfrentou a pintura e saiu da parede, para tocar o chão. Transformando-se em acção, gesto do corpo ou apenas corpo, mostrando-se ou encenando-se diante de uma câmara. Mas nem só de história da arte se faz "Off The Wall". Outras narrativas ecoam nas obras. Do Vietname à sida, passando por Nova Iorque, cidade aberta, entre os anos 60 e 70, à "violência" dos artistas.

Chrissie Iles é cautelosa. "Não é uma revisão definitiva da história da performance", avisa. "Há muitos tipos de performance, como há muitos tipos de pintura ou de escultura. Esta é uma história mais específica. Tem a ver com acções e gestos performativos perante a parede do "white cube", e com o modo como essa relação se alterou nos anos 80". O estado actual da disciplina foi fundamental para a concepção do projecto. "Nos últimos anos tenho reparado num grande interesse pela performance. E creio que isso acontece porque as pessoas, sobretudo os jovens, neste mundo muito mediado pela tecnologia, têm um interesse pela experiência directa. Por isso, escolhi as acções performativas e foquei-me no cubo branco da galeria e na sua rejeição pelos artistas que nos finais dos 60 se rebelavam contra a pintura".

O título transporta o conceito geral da exposição. A parede representa a pintura. E interrogando-a, recusando os seus limites, os artistas questionavam, à época, o que era definido como arte. "Nos anos 60, [a pintura] dominava tudo. E o estilo supremo, o único considerado válido, era a pintura abstracta. Todos os trabalhos nesta exposição desafiam isso de forma diferente. Há obras históricas, mas também de artistas jovens. E a certa altura fragmenta-se em diferentes conjuntos. Alguns remetem para a dança, outros para a parede, outros para o corpo, para a narrativa".

Ao lado de obras importantes e representativas deste período, apresentam-se obras inéditas, como uma série de filmes de performances de Claes Oldenburg (datadas dos anos 60 e restauradas recentemente), uma instalação nunca montada de Anthony McCall, e um vídeo do Bruce Nauman e Frank Owen que, assegura a comissária, só foi visto uma visto uma vez, em Paris.

Corpos em acção

Os filmes de Claes Oldenburg preenchem as quatro paredes de uma sala, sugerindo histórias, por vezes violentas ou inquietantes (descobrem-se alusões a um crime e ao assassinato de Kennedy). Já "Six Colorful Inside Jobs", de John Baldessari, mostra-nos um homem a pintar com cores primárias e secundárias, durante seis dias, o chão e as paredes de uma divisão. "É um desafio à pintura, como tarefa repetida e aborrecida. E uma reacção bem-humorada à seriedade, ao teor existencialista do abstracto-expressionismo", comenta Chrissie Iles.

A propósito do abstracto-expressionismo, não podia um artista como Jackson Pollock fazer parte "Off The Wall"? "Sim e... não", responde. "No fim, as suas pinturas eram sempre objectos verticais. Não ficavam no chão, que é o sítio onde colocamos o pé, sujo, baixo. Não é um espaço imaculado". E de facto, encontramos nas salas do museu obras que podem ser pisadas, com as de Carl Andre, Yoko Ono e Nate Lowman, ou que nos dão instruções para passos de dança, como a de Andy Warhol.

Na instalação de Dennis Oppenheim, "Echo" (1973), não há pintura, instruções ou espaço para mover o (nosso) corpo. Apenas imagens a preto e branco, de uma mão a bater violentamente numa parede. "A sua intervenção no espaço é mais directa e também funciona como uma peça sonora. É uma acção muito violenta. Tem uma certa raiva niilista". Lembramo-nos da fúria do cinema norte-americano dos anos 70. "Sim, é contemporâneo do "Taxi Driver" e de "Cavaleiros do Asfalto", do Scorsese, do "Serpico", dos filmes do Peckinpah, do "Looking for Mr. Goodbar". Tem a mesma violência. Na sombra de alguns destes trabalhos ainda vivia o Vietname."

A outra sombra é Nova Iorque. "Nos anos 70 e 80, os artistas estavam a fazer coisas pela primeira vez. Parte do ímpeto das suas intervenções veio do facto de a cidade estar falida. As suas ruas, embora perigosas, tornaram-se lugares abertos à acção dos artistas, fosse através da dança ou da performance. Viviam no Soho e na Baixa, onde ninguém queria viver, e trabalhavam em estúdios e armazéns muito baratos. Creio que alguns artistas jovens gostariam de viver num ambiente assim, com menos controlo e mais liberdade económica. Por outro lado, hoje têm mais oportunidade de mostrarem os seus trabalhos".

A violência ressurge em trabalhos de Richard Longo ou Maya Deren. Entretanto chegáramos aos anos 80. A relação dos artistas com a câmara de filmar tinha mudado. "Nos trabalhos mais seminais, existia como forma de registar os eventos, de um modo documental, mas também como parte da performance. Com os filmes de Cindy Sherman e do Tony Oursler, por exemplo, a performance é feita para a câmara como se esta fosse o público. E as acções performativas tornam-se mais teatrais, acontecem dentro do enquadramento da objectiva. Há uma viragem para a narrativa, para as cores". Esse regresso não trazia tanto pintura, mas imagens de corpos. Em movimento, na projecção de Jack Goldstein. Ou nas fotografias de Cindy Sherman, Robert Mapplethorpe ou Jack Pierson. Emerge a influência da televisão e do cinema, celebram-se e inventam-se os corpos contra a nova sombra, uma doença chama sida.

O museu é um ponto

de encontro

"Off The Wall" inclui trabalhos de Trisha Donnelly, Simone Forti e Yvonne Rainer porque tal como os artistas procuravam escapar à pintura, coreógrafos e dançarinos procuravam questionar as convenções da dança. "Queriam criar uma nova linguagem, inspirada no quotidiano. Os artistas saiam da parede, e os bailarinos saíam do palco, do teatro, para entrarem na galeria, na rua. Queriam fazer coisas semelhantes, partilhavam o mesmo ambiente e acabaram por dar origem a uma comunidade".

Curiosamente, e com a excepção dos Sonic Youth, não se ouve música pop-rock nas acções que as obras representam. Porquê? Palavra à comissária que, sublinhamos, convidou para as edições de 2002 e 2006 da Bienal de Whitney, respectivamente, os Gang Gang Dance e Jim O"Rourke, e os Anthony & The Johnsons e os Japanther. "É uma boa pergunta. Nos anos 60, o envolvimento com a música era de natureza política e contra-cultural. E isso estava relacionado com as lutas sociais e com a revolta contra a guerra do Vietname. Nesse sentido, alguns destes trabalhos podem ser considerados políticos Mas os artistas, apesar de ouvirem música pop-rock, não a incluíam no seu trabalho, porque as acções performativas eram sobretudo silenciosas ou partiam de instruções ou momentos conceptuais". E hoje? "Creio que há uma maior aproximação das disciplinas que inclui não apenas a dança e o cinema como nos anos 60 e 70, mas também a pop. Isso tem a ver com o rombo que a Internet provocou nas editoras. Facilitou essa aproximação".

E o museu também não foi alheio as revoltas da arte e em particular aos encontros promovidos nas últimas décadas. "Transformou-se num lugar onde vamos ver mais do que pintura. Onde podemos ver um concerto dos Japanther, acções performativas. Em 2010, o contributo do Michael Asher [ para a Bienal do Whitney] foi abrir o museu toda noite, durante cinco dias, e o público reagiu muito bem. É um espaço onde as pessoas se encontram também para discutir e experimentar ideias".

Quando a arte pôs o pé no chão e saiu à rua, levou o museu com ela.

Ver agenda de exposições na pág. 38

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