A queda de um anjo

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Se Dominique Strauss-Kahn, a estrela do FMI, fosse suspeito de ter cometido um crime de colarinho branco ou um crime de tráfico de influências, como lhe sucedeu em 1999, quando era ministro de Lionel Jospin, de certeza que as reacções seriam, para já, mais brandas e expectantes.

Em França há acusações que mais ou menos se toleram - para não dizer "esperam" - sobre os políticos e, mesmo tratando-se da vida privada, os franceses não fazem gala em espiar impunemente o quarto dos seus representantes. Temem, e com razão, que a sua própria curiosidade legitime a curiosidade dos outros.

Mas as alegações contra Strauss-Kahn não são apenas sobre sexo, um tema que sempre escandaliza o povo. Pior que isso, envolvem violência sexual contra uma tarefeira de hotel que segundo a própria descrição da vítima, foi obrigada a permanecer no quarto do agressor e a praticar actos que, para Bill Clinton, se estão bem lembrados, não preenchia o conceito de relação sexual.

Só há, de facto, um crime que liquida drasticamente as aspirações de um político. Quando um político rouba, presume-se que outros roubam com ele. É grave, mas pode passar despercebido ou então, como na nossa amorável República, dá direito a uma segunda oportunidade. Quando um político comete um crime sexual, não há redenção nem tolerância possível. Ainda por cima Strauss-Kahn, que já tinha um certo currículo no tema, era visto como o mais forte candidato da esquerda francesa nas presidenciais contra um Sarkozy frágil e impopular. Dificilmente não cairá em desgraça.

Em Portugal, a ser tudo verdade e provado em tribunal, Strauss-Kahn seria eventualmente absolvido por algum Tribunal da Relação do Porto. O juiz nacional talvez repetisse que a mulher fora, com educação e gentileza, convidada a ficar dentro do quarto por um homem que, não aceitando a sua recusa, resolveu depois molestá-la sexualmente. E antes que Khan pudesse ser ouvido, passariam não sei quantos actos processuais, expedientes, burocracias, até que vários anos depois e num julgamento em que interviriam 500 testemunhas ele acabaria por receber a sua sentença.

Além disso, como o homem é ou passa por socialista, já se sabe: ouviríamos versões infindas de cabalas e lendas negras, como aliás já começamos a ouvir no caso concreto de Strauss-Kahn.

Nos Estados Unidos, pelo contrário, tudo parece tão estranhamente linear que uma pessoa acredita. Strauss-Kahn foi preso em 24 horas, já no aeroporto e quando se preparava para sair do país. Foi ouvido, às 10 horas, de algemas atrás das costas por um tribunal criminal; recusaram-lhe o pagamento de fiança no valor de 1 milhão porque o juiz entendeu que existia risco de fuga; foi também investigado e sujeito a testes de prova. O chefe do FMI, entretanto deposto do seu cargo, enfrenta uma acusação que lhe pode valer 25 anos de prisão.

Quando leio como é feita a justiça noutras esferas, com uma clareza e previsibilidade que não parece sacrificar nenhum direito, mais me apetece agradecer aos génios que criaram o nosso processo penal e montaram a tapeçaria do sistema de justiça. Não sei o que pretenderam garantir, se a justiça, se a inocência. Infelizmente, demasiadas vezes não conseguiram nenhuma. Jurista

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