Dias na vida de um pedófilo normal

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Os últimos cinco meses da vida de Wolfgang, a criança, e Michael, o homem que o viola. Michael, dias de uma normalidade violenta filmados por Markus Schleinzer

Wolfgang tem 10 anos, Michael tem 35. "Michael" mostra imagens de uma vida em conjunto, os últimos cinco meses da vida de Michael e Wolfgang. Uma coabitação forçada, já que Michael, que trabalha numa seguradora, sequestrou Wolfgang, e para ele construiu, na sua cave, um bunker de auto-suficiência e segredo. Onde a vida prossegue com os tons de uma rotina que podia ser a de pai e filho, não se desse o caso de Michael violar Wolfgang. É uma relação em que a violência adquiriu a sua velocidade de cruzeiro, é a normalidade... que pode ser muito violenta.

É do ponto de vista do transparente Wolfgang, figura que não chama a atenção de ninguém e que toda a gente numa pacata cidade austríaca acha normal (até está a subir na sua empresa) que olhamos neste filme. É preciso começar por dizer isto sobre "Michael", a primeira longa-metragem de Markus Schleinzer (competição). Se se acrescentar que Schleinzer foi assistente de Michael Haneke ("A Pianista" e "O Laço Branco", por exemplo) e de Ulrich Seidl ("Dog Days"), começaremos logo por o associar a uma certa experiência austríaca da crueldade, a uma frieza que arde. E a um gosto por fazer do cinema um laboratório onde se testam limites - e onde se testa o espectador.

Algo disso tudo está neste desafiador "Michael", mas cremos que se sobrepõe a isso - ou seja, ao que entra ou não em combustão no tubo de ensaio - um desejo de coabitação para entender. Michael, de Markus Schleinzer, é filmado do ponto de vista de um pedófilo, isso pode ser o seu "escândalo". Para o "humanizar"? E o que fazer à vítima? O filme pergunta, o filme responde.

Schleinzer, que vive no país do "caso" Natascha Kampusch, tem dito que o seu filme foi motivado pela forma como o "criminoso" é tratado no debate público, sobretudo no crime mais unanimemente condenado, o de sevícias sexuais infligidas a crianças. O que ele defende é que, paradoxalmente, os mesmos (e ele diz que não se livra disso também...) que abraçam a moral, a lei, a justiça atiram-se ao criminoso brandindo um direito da Idade Média. O seu filme é a tentativa de descobrir como é que se pode (re)começar uma relação, a do cinema com a figura do criminoso, expurgando o carrossel folclórico dos tablóides; como é que o cinema pode ajudar a reinstalar os princípios de uma sociedade evoluída, que, na perspectiva do realizador, se mede pela forma como trata o criminoso - como o cinema o pode figurar, por exemplo. A experiência em que Michael envolve o espectador é a de chegar junto da trepidaçãoe da violência (do violador) para perceber que tipo de humanidade está ali.

E a vítima? É como se o filme não se julgasse no direito de estar no lugar dela. Sob pena de obscenidade. É por isso que - coerência formal levada até ao fim - não existe um único plano de "Michael" em que a criança esteja na origem do olhar da câmara. É por isso que o espaço da cave onde ela está encerrada nunca é totalmente desvendado, como se fosse um santuário que o cinema não pode violar. É por isso que da violação sexual temos só o início, os gestos de quem a comete, ou o fim, nunca a submissão da vítima. É por isso que quando a crianca é finalmente descoberta, o olhar é o de quem entra no bunker e o filme acaba a tempo de evitar o grande plano de Wolfgang. É por tudo isso que "Michael" é um filme em que entramos e saímos a tactear. Isso, é certo, assusta.

É do ponto de vista do miúdo "Le Gamin au Velo", e o miúdo é mais uma descoberta dos irmãos Dardenne e uma daquelas personagens em movimento incessante, de uma teimosia pungente, como antes Emilie Dequenne ("Rosetta") ou Jeremie Renier ("La Promesse"). A pergunta que se deve fazer é se nos últimos filmes dos irmãos Jean-Pierre e Luc o dispositivo e o movimento não comecaram já a existir por si só...

Talvez seja por isso que não consigamos deixar de sentir que a nova descoberta dos belgas, Thomas Doret, de 10 anos, que aparece sempre de cores garridas, sobretudo o vermelho - interpreta Cyril e não descansa enquanto não encontra o pai que o abandonou - como uma espécie de traço gráfico a forçar a sua visibilidade no ecrã. Isso retira alguma capacidade de crença perante o que se passa ali. Para além disso, há um movimento que se nota em "Le Gamin au Velo", o da abertura do cinema dos irmãos ao mainstream. Vejam-se alguns sinais: intromissão de cores, luz do sol (filmado propositadamente no Verão belga), utilização de música (Beethoven, como interlúdio, aconchego, para a sofreguidão de Cyril), o recurso a uma estrela do firmamento francófono, presença física e por si só luminosa, Cecile de France (faz a cabeleireira que se interessa pelo destino de Cyril) ou a opção por filmar a aprendizagem do amor sobre tudo o resto - é a cabeleireira que interrompe a correria de Cyril.

No conjunto, a opção por iluminar as coisas e os comportamentos, torná-los menos obscuros, o que faz de Thomas Doret/Cyril um caso de fácil adesão emocional para o espectador e por isso um caso menos memorável do que a Rosetta do homónimo e inacreditável filme dos Dardenne. Os belgas instalam-se num formato mais reconhecível, o melodrama, há coisas que se ganham, há coisas que se perdem - a bicicleta do título, Le Gamin au Velo, o objecto em que Cyril deposita toda a sua sofreguidão, tem aqui a sua função de fetichizar a angústia como em "Ladrões de Bicicleta", de Vittorio de Sica.

Os Dardenne dizem numa entrevista que a questão para eles sempre foi a de não ter medo de colocar a câmara no pior lugar, não ter medo de captar as costas de um actor, por exemplo, em vez do seu olhar (e, convenhamos, a isso se deve a criação de um "estilo" Dardenne que pode ser facilmente caricaturável). Mas então a questão em Le Gamin au Velo é a câmara parecer ter sido colocada sempre no melhor lugar. Por Cannes diz-se que não há duas sem três, isto é, que algo se pode seguir depois das Palmas de Ouro a "Rosetta", em 1999, e a "L"Enfant", 2005).

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