Há roupa (nova) no museu

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Em Savage Beauty (até 31 de Julho), estão mais de 170 coordenados e acessórios de Alexander McQueen, das suas primeiras colecções às peças mais icónicas

Na última década, não só surgiram vários museus dedicados à moda, mas também cada vez mais museus de artes plásticas abriram as suas portas a vestidos, malas e sapatos. Públicos mais jovens, cultura popular, mas sobretudo a perda da vergonha em validar a criação de vestuário como actividade intelectual.

A celebração em torno de Alexander McQueen - Savage Beauty era esperada. Gala cheia de estrelas em sua honra na inauguração da exposição do Costume Institute do Metropolitan Museum of Art (Met) de Nova Iorque, elogios rasgados da crítica do sector, imagens esmagadoras da (vida e) obra do criador britânico. Autor de algumas das peças mais belas, elaboradas e prenhes de simbolismo das últimas décadas, suicidou-se no início de 2010. Não fossem estas linhas sobre vestidos e sapatos e capas e coordenados, a descrição podia aplicar-se a muitos artistas plásticos contemporâneos ou clássicos, cuja obra mora em museus. Mas não. Falamos de roupa. De moda.

Outro paralelo entre a arte e (alguma) moda de autor: em Paris, em pleno Musée Bourdelle, dedicado à obra do artista plástico Antoine Bourdelle e que acolhe obras de Rodin ou Monticelli, vemos agora os drapeados de Madame Grès, em Madame Grès, La Couture à L"Oeuvre. Arquitectónica no seu trabalho pioneiro do corte em viés nos anos 1930, com formação em escultura, Grès (aliás Germaine Krebs) de facto "queria ser escultora - para mim é o mesmo, trabalhar com pedra ou tecido", disse.

As imagens da exposição ilustram como o diálogo entre as duas linguagens, a das artes plásticas e a do design e criação de moda, é cada vez mais uma constante nos museus. Paralelos entre o trabalho sobre o tecido e as fibras e a arte da escultura, da pintura, da mente humana. Arte e design.

Essa ideia está no título de um par de exposições que ontem se inauguraram em Lisboa: M&M, Artes e Design, que unem o Museu do Design e da Moda (Mude) e o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). São diálogos entre uma capa de Alexander McQueen ilustrada com imagens renascentistas e pintura coeva; entre um vestido do japonês Issey Myake e os biombos Namban do século XVI.

A ideia partiu do Mude e a ideia de desconstruir fronteiras que tem por base agradou ao director do MNAA, António Filipe Pimentel. O responsável quer problematizar os paradigmas de ""antigo" e "contemporâneo", quando o "tempo" é tecido de uma sucessão ininterrupta de "contemporaneidades" e aspectos da criação contemporânea como a moda remetem claramente (até pelo seu lado performativo) para o conceito barroco de "obra de arte total"", como explica à Pública por email. E acrescenta que há todo um "leque de associações que podem e devem fazer-se entre a história das artes e a criação contemporânea".

Moda erudita

Outro momento importante no circuito das exposições mundiais em curso: Londres. O Victoria & Albert Museum, que colige e exibe artes decorativas e design, tem na sua colecção de moda um dos muitos núcleos da instituição. Já por lá passaram as exposições dedicadas ao histórico costureiro francês Christian Dior ou a temática como Grace Kelly enquanto ícone de moda. Agora, é a vez do japonês Yohji Yamamoto at V&A, o homem de negro que acha a perfeição feia, que nasceu franzino no pós-II Guerra e que, sem comida e com raiva, desenhou vestidos para o mundo em geral ou para Pina Bausch em particular.

O facto de o Mude ter em exposição parte do acervo moda da colecção Francisco Capelo é um cumprimento de um dos seus desígnios de baptismo e fundação. O mesmo faz, há anos, o Museu do Traje, que se dedica ao estudo do vestuário ao longo dos séculos, com algumas exposições especiais dedicadas a criadores de moda contemporâneos.

Menos directo, em termos de vocação base de uma instituição museológica, é ver o Guggenheim de Nova Iorque fazer uma exposição sobre Giorgio Armani (2000) ou o de Young Museum, em São Francisco, acolher monográficas dedicadas a Yves Saint Laurent (2008) ou a actual Balenciaga and Spain, comissariada por Oscar de la Renta e dedicada ao visionário Cristobal Balenciaga. Ao longo dos anos, a colecção de têxteis do de Young tem vindo a crescer, bem como a tendência, muito graças à passagem da mítica editora de moda Diana Vreeland pelo Met nos anos 1960/70, de posicionar a moda nos museus. Ward Mintz, um dos principais apoiantes das exposições de têxtil nos EUA através da Coby Foundation a que preside, refere ao New York Times que Vreeland e o Met mostraram que "a moda pode ser tanto erudita quanto parte da cultura pública".

António Filipe Pimentel explica à Pública que "a moda é hoje um território de cruzamento da criação plástica, o que justifica conceptualmente essa atitude" de abertura dos museus à linguagem do design de moda. Embora não acredite que tal esteja a acontecer no MNAA, frisa, porque o museu "conserva a sua integridade plena". O que existe, explica, é "um pertinente diálogo - circunscrito ao tempo da sua duração - que se constrói com as linguagens contemporâneas no quadro de uma exposição".

Foi na última década, opina Harold Koda, o curador do Costume Institute do Met que organizou Savage Beauty, que a relação museus/moda se alterou. Até então "existia uma relação desconfortável entre museus e moda. Mas hoje há mais directores de museus que se estão a envolver com a moda contemporânea" como sintoma social, diz.

Nos EUA, a tendência é galopante. De grandes exposições nas principais cidades das duas costas, passa-se a exposições e retrospectivas planeadas para as cidades do interior e para os pequenos centros. Há quem faça mesmo uma ligação entre este momento, em que a moda chegou para ficar à cultura popular mainstream através dos reality shows e concursos televisivos (Portugal teve dois no Verão passado e assiste a vários estrangeiros), das revistas e blogues e a necessidade dos museus de captar novos públicos. Jovens.

As mulheres já são a maior parte dos visitantes de museus e podem debater com os homens e com os responsáveis museológicos quais os criadores de moda que fazem arte que transcende a sua profissão/função, e quais os artistas que se tornam numa... moda.

joana.cardoso@publico.pt

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