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A Justiça portuguesa é lenta, cara e burocrática

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Casos de desespero e anos de espera: um prédio na Ericeira, o julgamento da Casa Pia e um casal que queria apenas ser testemunha de um crime

Lenta, cara e burocrática. Assim é a Justiça em Portugal. Há quase dois milhões de processos pendentes, a maioria cíveis e relacionados com cobranças de dívidas. Por ser caro e burocrático, o acesso aos tribunais cria cada vez maiores desigualdades, separando os que têm poder financeiro para pagar custas judiciais, advogados e recursos, dos que não têm.

Vinte anos à espera de uma indemnização

Em Maio de 1988 os três últimos andares de um prédio da Ericeira construído pela FAUS são embargados e dois anos depois demolidos por ordem do então secretário de Estado do Ordenamento do Território, Nunes Liberato. No seu entender, a Câmara de Mafra não tinha competência para emitir licença para a construção. A implosão, num cenário espectacular, foi filmada e transmitida na televisão.

Adérito Faustino, sócio-gerente da empresa, não se conformou com a decisão. A construção obtivera aprovação e licenciamento da autarquia e Faustino já interpusera vários recursos para suspender a demolição.

A ordem para avançar com a implosão, diz Faustino, avançou antes de ser conhecida a decisão do Supremo Tribunal Administrativo, onde o processo estava pendente.

O tribunal superior acaba por dar razão à empresa em Novembro de 1990. O acórdão declara "nulo o acto impugnado cometido" pelo secretário de Estado.

E segue-se uma pilha de recursos.

O secretário da Administração recorre para o Pleno do Contencioso do STA, cujo decisão se revela favorável, em acórdão de Outubro de 1992.

Em Novembro, a FAUS recorre para o Tribunal Constitucional (que decide não tomar conhecimento do recurso) e para o Supremo Administrativo. Este dá razão à FAUS em 1994, anulando o despacho de Nunes Liberato que determinou a demolição.

O ex-secretário da Administração Local não se conforma e, seis anos passados dos factos, resolve interpor recurso deste acórdão para o Pleno (o órgão máximo) do STA.

Três anos depois, em 1997, este órgão confirma a anterior decisão dos conselheiros do tribunal, negando provimento ao recurso de Liberato.

Já tinham passado sete anos desde que o Supremo Administrativo declarara "nulo" o despacho da secretário da Administração Local.

Entretanto, em 1991, a empresa construtora colocou uma acção contra o Estado no Tribunal de Círculo Administrativo de Lisboa, para o pagamento de uma indemnização de mais de 39 milhões de euros por danos patrimoniais e morais resultantes da decisão de Liberato ter mandado demolir os andares do prédio da Ericeira. O tribunal condenou então o Estado a indemnizar a FAUS, decisão de que o Estado resolveu recorrer para o Supremo Administrativo.

Em Março do ano passado, o tribunal superior decidiu negar provimento ao recurso interposto pelo Estado e atribuir à empresa uma indemnização de mil euros por danos morais. Mas a execução da sentença para o pagamento dos danos patrimoniais continua a aguardar decisão no Tribunal Administrativo de Lisboa.

Ao todo, passaram 23 anos desde que os apartamentos foram demolidos.

Um julgamento de 2,1 milhões de euros

Mais de dois milhões de euros foi o que o Estado gastou no julgamento do processo de pedofilia da Casa Pia, segundo as contas do Ministério da Justiça. O julgamento prolongou-se por quase seis anos, em 461 audiências, transformando-se no mais longo e também mais caro da história judicial portuguesa.

Nestes dois milhões incluem-se os gastos com juízes, procuradores e funcionários judiciais, perícias, transcrições e transporte do processo, entre outros.

Mas estes são apenas os gastos com o julgamento. O processo iniciado em 2002 foi bem mais caro, pois têm que se somar todas as despesas da investigação e do inquérito e relativas à segurança pessoal dos magistrados, do principal arguido, Carlos Silvino, e das vítimas.

Não são apenas casos extremos como estes que tornam a Justiça cara. Em regra, não é nada barato o acesso aos tribunais. Uma democratização da sociedade não é possível sem uma democratização da justiça. Quem não consegue apoio judiciário - praticamente reservado a pessoas em situação quase de pobreza - tem que pagar elevadas custas judiciais, além do honorário dos advogados.

No caso, por exemplo, de uma pessoa que pretenda divorciar-se e receba um ordenado inferior a dois mil euros, terá de se preparar para gastar cerca de 700 euros em custas. Se tiver um acidente, poderá gastar numa acção o equivalente a um ordenado, segundo o bastonário da Ordem dos Advogados.

As acções de maior valor pagam agora mais unidades de conta, cujo valor fixo é de 102 euros. A taxa de justiça aumenta nas acções a partir de 275 mil euros. Também os chamados grandes litigantes que têm mais de 200 acções em tribunal têm de pagar para consultar a base de dados dos tribunais com informações sobre os devedores.

Os recursos para os tribunais superiores também são muito caros. No caso do Tribunal Constitucional, por exemplo, por um recurso que seja rejeitado tem de se pagar cerca de dois mil euros.

Burocracias atrasam urgências

Foi em 2009, no Verão, em Sines. Um casal estava a passar férias e presenciou uma tentativa de assalto, um homem que tentava roubar a mala a uma senhora.

Paula Pinela e Humberto Rodrigues conseguiram apanhar o assaltante e ofereceram os seus préstimos para testemunhar. Não supunham que tivessem de pagar as despesas do seu bolso. Vivem em Sintra e nas duas vezes que foram ao Tribunal de Santiago do Cacém como testemunhas do processo gastaram 171,66 euros. O tribunal paga-lhes apenas 34 euros, quantia que "nem dá para as deslocações em transporte público de Monte Abraão até Santiago do Cacém", dizem. Os tribunais "deviam imputar aos arguidos os gastos efectuados por quem apenas quer ver cumprida a justiça", protestam.

Campus da Justiça, Lisboa. Audiência para ouvir Oliveira e Costa e outros arguidos no caso BPN. O juiz começa por anunciar que não há armários para guardar os 70 volumes e 700 apensos do processo. Pede à Direcção-Geral da Justiça que resolva o problema, mas a resposta é negativa. Já há 180 armários no tribunal.

A solução é guardar os apensos no arquivo, num piso inferior. O problema é que é preciso interromper o julgamento sempre que é preciso consultar um volume...

Episódios anedóticos como este são mais frequentes do que se pensa nos tribunais portugueses. Sofia Pinto Coelho refere alguns no seu livro As Extraordinárias Aventuras da Justiça Portuguesa, em que se misturam desorganização e burocracia que tanto contribuem para a morosidade e lentidão da justiça.

Como o caso do pedido do Tribunal de Aveiro para que um dos envolvidos num determinado processo, com paradeiro incerto, fosse levantar um objecto apreendido nos autos, "uma meia cinzenta-escura de felpo com duas riscas no cano", sob pena de o objecto "ser declarado perdido a favor do Estado".

Ou o caso de o Ministério Público de Lagos ter notificado, "na qualidade de falecido", um homem que tinha morrido.

Situações que atrasam tantas urgências e se relacionam com dois problemas essenciais do funcionamento da Justiça identificados pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos: falta de uma cultura jurídica, que não está orientada para servir o cidadão, e uma gestão ineficaz.

"Temos muito desperdício de espaço, tempo e sobretudo muito pouca racionalidade na forma como os meios são distribuídos", diz o sociólogo, referindo a existência de "tribunais absolutamente lotados" ao lado de tribunais com muito poucos processos. "A nossa cultura jurídica serve os interesses burocráticos da própria administração da Justiça, não os dos cidadãos."

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