"Não há excepção árabe na tendência global em direcção à democracia"Entrevista Francis Fukuyama

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Acredita na aspiração universal à democracia, mas diz que a única garantia que há sobre as revoluções árabes é que vão acabar por desiludir-nos. Defende que a China é uma coisa totalmente diferente. E que a Alemanha se comporta como a China. Apesar do Fim da História, Fukuyama não é um optimista.

Ficou famoso quando, em 1989, escreveu um ensaio na revista americana The Nacional Interest a que chamou O Fim da História?. Três anos depois transformou-o num livro com o mesmo título, mas sem o ponto de interrogação. A ideia era simples: com o colapso do comunismo, a grande questão sobre a organização política das sociedades humanas estava resolvida; mesmo que o caminho fosse longo, seria a democracia liberal. Namorou com os neoconservadores. Escreveu outras obras importantes. Hoje, com 58 anos, trocou Washington pela Califórnia e dá aulas na Universidade de Stanford. A sua última grande obra acaba de sair nos EUA e é sobre a origem da organização política nas sociedades humanas. O seu interesse concentra-se na China. Esteve em Lisboa para participar nas II Conferências do Estoril, onde falou do impacto global da situação no Médio Oriente.

Veio falar sobre o impacto global dos acontecimentos no mundo árabe. Ninguém previu estes movimentos populares exigindo democracia e liberdade e, sobretudo, que eles surgissem no mundo árabe. Pensávamos, talvez erradamente, que a democracia estava em recessão à escala mundial. A sua ideia sobre o fim da História afinal estava certa?

O que estamos a ver é que não há uma excepção árabe nesta tendência global em direcção à democracia. E o mundo árabe era a única região que não tinha experimentado o levantamento democrático que começou nos anos 70 e se prolongou nos anos 80 e 90. Muita gente tendia a dizer que essa excepção se devia à cultura árabe e ao islão.

Qual é, então, a explicação?

Corresponde a uma aspiração universal de não viver sob regimes autoritários incapazes de reconhecer a dignidade fundamental das pessoas e o desejo de cidadania dos seus povos. Se olhar para Mohamed Bouazizi, esse jovem vendedor de hortaliça que começou tudo, que viu a sua banca confiscada pela polícia, que tentou queixar-se, mas não tinha quem o ouvisse, que se viu esbofeteado e insultado por uma mulher polícia e que decidiu imolar-se pelo fogo... O que ele fez e os motivos por que o fez tiveram eco em muitos países onde os regimes não conseguem respeitar a dignidade básica dos seus cidadãos.

É interessante como um facto localizado numa pequena cidade de província tunisina consegue desencadear um acontecimento de tamanha dimensão. O que é que faz mover a História?

É muito difícil prever coisas como esta. Mas podemos dizer que as comunicações modernas, as novas tecnologias, têm um papel na divulgação muito rápida destes pequenos factos. Mas isso não chega para explicar por que é que um incidente ou uma imagem, em particular, desencadeia uma resposta emocional de tais dimensões, nem por que razão isso não aconteceu há dez anos.

A ideia de uma natureza humana comum que creio que é central à sua obra vemo-la de alguma maneira traduzida nas praças do mundo árabe em que a pessoas querem dignidade e respeito. A China pode ser o país que se segue? Ou é uma história completamente diferente?

Não creio que iremos assistir a um levantamento democrático desta natureza na China, pelo menos nos próximos tempos. O regime chinês é muito mais competente. É autoritário, mas assente em instituições fortes, os seus líderes abandonam o poder em cada dez anos, é muito eficaz a criar empregos e a gerar um enorme dinamismo da economia. O que é interessante é que, em todos os estudos de opinião feitos na China, verifica-se que uma maioria dos chineses pensa que a democracia é uma coisa boa, mas acredita que o regime já é democrático, porque, de alguma maneira, responde às suas necessidades.

Se, por acaso, houvesse um retrocesso económico de grandes dimensões, que levasse as pessoas a perderem os empregos e a expectativa de melhorar as suas vidas, se um segmento cada vez maior de gente educada não visse um futuro, então poderia haver algum tipo de instabilidade.

O regime chinês é competente de que forma?

É um dos temas do meu novo livro, The Origins of Political Order, no qual dedico seis capítulos à China e vou até às origens do Estado. Os chineses tiveram um Estado centralizado e burocrático em moldes modernos desde o século III a.C. Não creio que nos devamos surpreender que tenham hoje um Estado competente muito mais moderno do que as ditaduras em África ou no Médio Oriente.

Mas a legitimidade do poder do Partido Comunista assenta hoje no crescimento económico e na capacidade de satisfazer as aspirações materiais das pessoas. Esse crescimento está a gerar cada vez maior desigualdade - que é imensa entre as grandes cidades costeiras e o interior rural. Não há aqui também um problema e uma fragilidade a longo prazo?

Isso é absolutamente verdade. A legitimidade do poder chinês depende da sua performance económica, mas o que também temos de entender é que eles próprios percebem isso muito bem - essa desigualdade tem sido uma preocupação da liderança chinesa, que está a fazer grandes investimentos nessas regiões mais pobres. Este é apenas um exemplo de que são muito mais competentes do que a generalidades dos líderes dos regimes autoritários em outros pontos do globo, preocupados sobretudo em enriquecer-se a si próprios, às famílias e aos amigos.

É essa aspiração à liberdade e à dignidade que está na base dessa natureza humana comum de que fala nas suas obras?

É comum num sentido evolutivo, o que quer dizer que parte desse sentimento também resulta do crescimento económico. Se vive numa sociedade camponesa extremamente pobre, é provável que não esteja preocupado com os seus direitos políticos, nem em escrever cartas através da Internet a queixar-se. Mas quando as pessoas começam a ter mais acesso à educação, quando se começa a formar uma classe média que teme que o Governo lhe possa tirar aquilo que já conseguiu, quando as pessoas podem comunicar, essas exigências políticas de participação começam a desenvolver-se.

Há dez anos, a democracia e economia americanas eram admiradas e emuladas eacreditávamos que o crescimento económico chinês levaria à progressiva democratização. Hoje vemos que as coisas são diferentes. Pode dizer-se que há um "modelo chinês" alternativo?

Houve muitas coisas que aconteceram entretanto. Os EUA fizeram muito para desacreditar o seu próprio modelo na última década. Não só em matéria de política externa. O "consenso de Washington", que consubstanciava esse modelo americano de desenvolvimento, terminou numa crise financeira. A América tratou de macular a sua própria imagem.

Mas não se pode dizer que seja um modelo alternativo, no sentido em que o comunismo o foi no passado. Creio que ninguém pode imitar o modelo chinês, porque para isso seria preciso pertencer à sua esfera cultural e às suas tradições históricas - para dar um exemplo, o respeito pela educação -, que não existem noutras partes do mundo. Os chineses são os primeiros a dizer que ninguém vai emular o seu modelo.

Mas há esse novo tipo de capitalismo autoritário na Rússia, em Singapura...

É completamente diferente. Singapura está na mesma esfera cultural. A Rússia é o oposto, é um regime incompetente que, se não tivesse a energia, não sei o que seria. Ninguém compra um produto manufacturado russo, eles não sabem gerir uma economia moderna.

Emergem grandes potências como a China e mesmo as que são democráticas querem afirmar-se através do desafio à hegemonia ocidental. Devemos esperar um mundo completamente diferente?

A influência da América e da Europa vai continuar a ser muito forte, mesmo que estejamos a avançar para um mundo multipolar que, num certo sentido, é mais normal do que um mundo completamente dominado pelos Estados Unidos. Os EUA vão ter de aceitar ideias alternativas. O que é interessante é que as novas grandes democracias, particularmente Brasil, Índia, Turquia e África do Sul, não têm o mesmo compromisso cultural com a ideia de democracia que os europeus e os americanos partilham.

Mesmo o Brasil?

Mesmo admitindo que o Brasil possa ser um caso diferente, creio que a sua política externa, pelo menos com Lula da Silva, foi bastante irresponsável no sentido em que estávamos a falar. Aquela coisa do Irão, etc. Penso que Dilma está a mudar isso.

Mas estava a dizer que tinham uma cultura democrática diferente da nossa.

Sim. A ideia de democracia, em si mesma, não é essencial à sua identidade no sentido em que o é para a identidade americana, por exemplo. Estão mais centrados nos seus interesses nacionais do que na promoção dos valores democráticos e dos direitos humanos. Isso tem, talvez, a ver com o facto de estarem ainda a emergir como grandes economias de mercado.

O que está a acontecer no mundo árabe pode ser uma oportunidade para o presidente Barack Obama reconfigurar a política externa americana?

A capacidade dos EUA para influenciar a região de uma forma real sempre foi mais limitada do que nós realmente pensamos. [George W.] Bush cometeu um enorme erro ao pensar que o simples exercício do poder americano podia levar a essas mudanças.

O presidente Obama já terá muita sorte se conseguir ir gerindo estas crises de forma a que não se transformem em desastres. Em teoria, talvez possa aproveitar os acontecimentos para fazer algum progresso no conflito israelo-palestiniano. Por isso, as minhas expectativas são bastante baixas sobre o que pode realmente vir a sair daqui. O Iémen, por exemplo, que não tem estado nas primeiras páginas nos últimos tempos, pode ser, de todas estas sublevações, a mais importante pelo facto de a Al-Qaeda ter aí uma das suas bases principais.

Apesar de Bin Laden ter sido finalmente eliminado?

O centro das actividades da Al-Qaeda moveu-se de Bin Laden para o Iémen há já alguns anos e, mesmo sem Bin Laden, ainda terá uma base poderosa para a sua actividade.

Mas, a prazo, esta aspiração democrática no mundo árabe não pode ser também uma oportunidade?

Temo que os levantamentos democráticos acabem por ser reprimidos em alguns desses países.

Na Síria?

Não quero fazer previsões específicas. Mas ninguém tem a certeza de que vão ter sucesso, incluindo no Egipto e na Tunísia. A única coisa de que talvez possamos ter a certeza é que vamos ficar desiludidos com o que se vai passar, porque é muito difícil criar democracias estáveis em países que acabaram de sair de anos e anos de regimes autoritários deste tipo. Depois, há países como o Paquistão, que possui uma centena de bombas nucleares, e que é provavelmente o país mais antiamericano do mundo, apesar desta relação disfuncional com os EUA. Creio que o Paquistão é muito mais perigoso para a segurança mundial do que o Afeganistão. E não temos uma forma de sair dessa situação.

Muitos comentadores escreveram que a eliminação de Bin Laden pode ser um impulso para a popularidade do presidente Obama e para a sua reeleição. Concorda?

Mesmo antes disso, a popularidade de Obama não estava assim tão mal. Muita gente, se tivesse de apostar em quem vai ser eleito em 2012, apostaria em Obama. Em matéria de política externa [a eliminação de Bin Laden] ajuda-o, de facto. Os americanos, no entanto, não vão votar por causa das questões de política externa, mas pelas questões da economia. A economia está a recuperar, o desemprego deve estar a baixar mais significativamente em 2012 e as pessoas vão sentir-se melhor.

Como é que avalia a presidência de Obama?

Na política externa, comportou-se bastante bem. Na política interna, penso que interpretou mal a sua eleição, considerando que ela lhe dava um mandato mais alargado para virar à esquerda do que realmente recebeu. É por isso que tem tido tantos problemas, incluindo a emergência do Tea Party. Creio que tem de afastar-se desse caminho em direcção a políticas mais centristas para ter a certeza de que vai mesmo ser reeleito.

O que é que o Tea Party nos diz sobre a América?

Nada de novo. Se conhece a história do populismo nos EUA, que começou com o presidente Andrew Jackson nos anos 1830... São pessoas que se orgulham da sua independência, que detestam o "Grande Governo" e que querem defender a sua liberdade perante ele.

Mas não é mais do que isso? Não gostam de imigrantes, por exemplo...

É complicado, porque há grupos diferentes para os quais essas questões podem ou não ser importantes. Mas as pessoas do Tea Party estão mais preocupadas com o "Grande Governo" do que com a imigração e creio que não são comparáveis com os grupos populistas na Europa.

Escreveu há já algum tempo que faltava aos países europeus uma visão positiva dos seus valores e da sua identidade, que fosse para além do credo da tolerância. Como vê esta crise europeia?

O fenómeno da imigração desencadeou, pela primeira vez desde 1945, uma discussão sobre a identidade nacional e sobre se esta exige uma lealdade positiva, assente num conjunto de valores, e não apenas um identidade negativa que tudo tolera. Nesse sentido, este debate foi positivo. Mas há, naturalmente, muitas maneiras de definir a identidade nacional e há uma delas que torna muito difícil assimilar pessoas vindas de fora. Creio que hoje há o perigo real de que esse processo de definir esses valores possa ser feito de uma forma exclusiva. Por exemplo, o facto de Geert Wilders [líder do Partido das Liberdades, populista e anti-imigrantes] poder ser primeiro-ministro da Holanda é preocupante...

Mas há também outro tipo nacionalismo, que não se manifesta apenas contra os imigrantes, dos ricos do Norte contra os pobres do Sul. E há a emergência da Alemanha como país dominante. Como é que observa tudo isto?

É complicado. Só para pôr as coisas em termos claros, creio que os problemas de Portugal, da Grécia e da Irlanda foram criados pelos próprios. Dito isto, os alemães comportam-se bastante como os chineses. Beneficiaram do facto de já não terem o marco e poderem tirar partido de uma moeda menos valorizada que ajudou às suas exportações. Esperam poder exportar para todo o mundo e não ter de importar nada. Esta fórmula que criaram dos resgates financeiros visa basicamente proteger os seus bancos. Não é uma fórmula que vise realmente resolver esta crise do euro. E isso cria um grande problema a Portugal ou à Grécia: ninguém consegue crescer através de programas de austeridade como estes. Creio que os alemães têm de repensar tudo isto.

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