Aves na pradaria

Observar a parada nupcial das abetardas é apenas uma das boas razões para visitar a Reserva Natural de Villafáfila, situada a norte de Zamora. Mas também pode querer espreitar os pombais de adobe, lar de numerosas colónias de penereiros-?-das-torres, ou deambular pelas ruínas do magnífico Mosteiro de Moreruela, onde cegonhas fazem a vez de gárgulas. Por onde quer que olhe haverá aves a esvoaçar, tal como relatam Ana Pedrosa (texto) e António Sá (fotos)

Dizem-nos no hotel que os ingleses são os primeiros a levantar-se, muito antes da hora prevista para o pequeno-almoço. Sabemos bem para onde vão, de madrugada, vestidos de verde-escuro para se camuflarem na erva dos prados. Com passos furtivos, saem armados com binóculos, teleobjectivas e telescópios terrestres. São ornitólogos, caçadores de troféus intangíveis, que ao fim da tarde, em frente a uma bebida, irão reunir numa longa lista. Compararam número de espécies avistadas nesse dia, quantidade, raridade. Tudo serve para a identificação, mesmo quando não se vê a ave em todo o seu esplendor: pios e trinados, pegadas na lama, posição em voo, forma de nadar. E se na Grã-Bretanha há quem viaje centenas de quilómetros para observar uma ave que se perdeu da rota habitual (logo, exótica para os padrões da ilha), não admira que por aqui andem extasiados com a possibilidade de assistir a um dos rituais mais incríveis do mundo alado, a ocorrer em território europeu.

Estamos na época de cio das abetardas, aves de grande porte, as mais pesadas da Europa. Os machos, que chegam a atingir dezoito quilos para uma envergadura de asas de 2,30 metros, pavoneiam-se perante as fêmeas, numa complexa parada nupcial que tem como objectivo demonstrar que o tamanho importa. Dançando em torno das pretendentes, levantam a cauda, arqueiam as asas, incham o peito e desenrolam as penas até ficarem com a forma de uma enorme bola de penas brancas, numa posição chamada "banho de espuma".

Passear na reserva

Na Reserva Natural de Villafáfila, situada às portas de Benavente, na província de Zamora, é fácil assistir a este espectáculo que tem lugar durante a Primavera, nas pradarias de alfafa e trigo. O planalto cerealífero, com uma área de mais de 32.000 hectares de extensão, alberga uma das maiores concentrações de abetarda-comum do planeta - perto de 2700 indivíduos foram ali recenseados em 2005, número significativo se tivermos em conta que a espécie está em declínio.

Mesmo assim, nada que se compare com os 35.000 gansos vindos dos países nórdicos que utilizam as inúmeras lagunas da reserva como lugar de invernada, ou com as colónias de patos-reais que juncam as águas no Outono. Ou ainda com a quantidade impressionante de limícolas, galeirões, avocetas, pernas-longa, aves de rapina e vários tipos de anatídeos, que podem ser observadas ao longo de todo o ano. Calcula-se que na reserva declarada como Zona de Especial Protecção para as aves (ZEPA) se abriguem cerca de metade de todas as aves aquáticas de Castela-Leão.

A melhor forma de conhecer a área é começar por visitar o centro de interpretação El Palomar, perto da aldeia de Villafáfila. Aí poderá ter um vislumbre da riqueza natural da reserva, assistindo a um vídeo de 15 minutos onde se mostra a natureza ao ritmo das estações. As crianças gostam especialmente dos quadros interactivos, jogos, experiências e de espreitar pela câmara apontada para uma lagoa próxima. Construída em forma de pagode, como muitos columbários da região, a Casa da Reserva é também um verdadeiro pombal; algumas frestas de vidro situadas no andar de cima permitem observar a actividade junto aos ninhos.

À saída, uma exposição dá-nos a conhecer a história da exploração do sal, principal razão da fixação de vários povos desde a Idade do Bronze. A recolha artesanal teve o seu apogeu na Idade Média, altura em que surgiram inúmeras povoações na margem das lagoas, mas entrou em declínio quando Castela começou a preferir o sal originário de Portugal. Mais tarde, o rei D. Carlos III ainda tentou recuperar a exploração, criando a Real Fábrica de Salitres de Villafáfila, que viria a ser destruída pelo exército napoleónico. Reconvertido em moagem, o edifício acabou por ser transformado em moradias incaracterísticas situadas na berma da estrada. µ

± Em redor do centro espraia-se o Parque de Fauna, um recinto com 23 hectares que recria o ecossistema lagunar, com vários trilhos que levam a observatórios junto às lagoas, através de exemplares da flora local. Um deles fica perto de um cercado de abetardas em recuperação, que não se coíbem de executar os ritos de acasalamento perante o olhar indiferente dos coelhos-bravos que deambulam por ali.

Taipa e adobe

Na verdade, nem só de madrugadores de binóculos em punho vive o turismo da Tierra del Pan. "Tierras ásperas y yermas, arenosas y pobres", mas esplêndidas na sua aparente monotonia. Sulcado de caminhos rurais, o longo horizonte de searas é o terreno ideal para percursos de bicicleta. É comum ver passar ciclistas em passeios dominicais e outros cuja parafernália denuncia que o passatempo é coisa séria.

As árvores são quase inexistentes; aqui uns quantos pinheiros-mansos a coroar uma colina, mais além uma fiada de choupos junto a um riacho. Na planura, destacam-se a silhueta dos pombais, feitos de taipa ou adobe. Num lugar sem rochas nem madeira, misturar terra com palha foi a solução encontrada pelos habitantes da região. São feitas assim as igrejas, assim muitas casas nas aldeias, assim as caves subterrâneas que conservam vinho e outros mantimentos do calor tórrido do Verão e do frio polar do Inverno. Material frágil, a precisar de constante manutenção, muita desta arquitectura encontra-se em ruínas. Sobretudo os pombais, abandonados desde que a carne dos borrachos deixou de ser imprescindível para a sobrevivência da gente do campo e o estrume foi substituído por outro tipo de fertilizantes. Dos 180 columbários existentes dentro da reserva - concentrados principalmente junto a Villarín de Campos e Villafáfila - alguns têm vindo a ser recuperados. A intenção é tanto preservar o património cultural como o habitat do peneireiro-das-torres, falcão que depois de ter estado quase extinto agora pode ser visto em grandes colónias, como a da aldeia abandonada de Otero de Sariegos.

Os pombais que a rodeiam encontram-se num estado de magnífica decadência. Com as paredes exteriores rasgadas, torres descaídas, telhas partidas, revelam o esqueleto feito de ninhos, com frinchas que se abrem para a paisagem, ora revelando a torre de uma igreja, ora mostrando um rebanho a pastar nos arredores.

Exemplo semelhante pode ser visto em Tapioles, desta vez em forma de "bodegas" subterrâneas. Numa colina, à saída da povoação acumulam-se armazéns abandonados, de portas escancaradas para grutas escavadas na terra, de onde saem nuvens de pássaros e morcegos mal assomamos à entrada. Vale a pena passear por aí, embora com especial cautela (sobretudo se houver crianças por perto) pois há buracos escondidos debaixo da vegetação e caminhos prestes a esboroarem-se.

Um poeta no mosteiro

Admirável ruína é também o Mosteiro de Santa Maria de Moreruela, situado a uma dezena de quilómetros a sul de Villafáfila. Abandonado em 1835, o monumento cujas origens remontam a finais do século IX é considerado uma das obras mais esplêndidas da arquitectura medieval espanhola. De facto, mesmo sem tecto e com muitas paredes, arcos e pilares destruídos, não é difícil imaginar o antigo esplendor da igreja de três naves, com as sete capelas da cabeceira ainda intactas, onde repousaram os restos mortais de muitos nobres castelhanos e portugueses. Mesmo que agora cresçam árvores no solo daquele que foi um dos mosteiros mais poderosos da Ordem de Cister ibérica, com propriedades que se estendiam de Salamanca a Bragança.

Desde que foi adquirido a privados, em 1994, uma pequena parte do templo foi reconstruída. É o caso da sala capitular e do acesso à sala dos monges e às celas monásticas. Tudo o resto tem sido reconquistado pela natureza. Há cegonhas na vez de gárgulas, pousadas nos pontos mais altos, arbustos a acenar das janelas, heras a subir por paredes que há muito perderam qualquer outro vestígio de cor. E gralhas a quebrar o silêncio do claustro, uma imensa colónia de garças-reais no choupal das traseiras, sardaniscas a tostar ao sol.

Quem nos conduz através das pedras e da história é Vicente Suarez, "90 anos y medio" vividos na aldeia vizinha de Granja de Moreruela. Avozinho de conhecimento enciclopédico e genica suficiente para galgar todos os lances de escadas ou subir muretes para mostrar qualquer pormenor escondido, conhece este local desde que nasceu. O templo foi palco de brincadeiras, sala de aula quando o professor decidia ensinar lições de História ali, quem sabe testemunha de amores furtivos. E musa, também. Vicente assegura que escreveu mais de 500 poemas, todos eles dedicados ao lugar que agora é refúgio de velhice. Vai recitando alguns, enquanto agarra na mão das crianças para as guiar através de segredos que conhece tão bem. Como era costume na época, muitos canteiros gravavam as pedras com sinais particulares, fosse para indicar a posição onde esta devia encaixar, fosse para deixar impressa a marca do artífice. Vicente mostra-nos as mais distintas: uma serpente através de um pilar, a cabra que indica o sepulcro do nobre Fernando Ponce de Cabrera, uma estrela aqui, uma margarida mais além. E sobe e desce, mostra a cozinha e as latrinas, a sacristia e prisão, o refeitório e a hospedaria onde repousavam os peregrinos a caminho de Santiago. Sempre incansável, a desfiar histórias a cada canto.

Partimos porque se fazia tarde e Vicente lá ficou, entre as pedras, quem sabe a inventar outro poema.

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