Um escritor do seutempo

Foto
Laurent Binet acredita que a Segunda Guerra Mundial é a nossa Guerra de Tróia: daqui a 600 anos, vamos continuar a falar dela FERNANDO VELUDO/ NFACTOS

A Operação Antropóide é uma das histórias mais fascinantes da Segunda Guerra Mundial. Laurent Binet percebeu a sua dimensão romanesca e tratou-a em "HHhH", que lhe valeu o Goncourt para primeiro romance. Isabel Coutinho

O interesse dos escritores actuais franceses pela Segunda Guerra Mundial não é uma questão de geração. Laurent Binet, 38 anos, autor de "HHhH - Operação Antropóide", Prémio Goncourt para primeiro romance 2010, considera que tanto a geração anterior à sua como a seguinte se interessam por esta época. "É fascinante. Tão rica, que de uma certa maneira, é a nossa Guerra de Tróia. Daqui a 600 anos vamos continuar a falar da Segunda Guerra Mundial porque é o mal absoluto, é o heroísmo absoluto, é um reservatório de história trágico, terrível, extraordinário".

Para tema do seu primeiro romance, Laurent Binet, que publicara "La Vie Professionnelle de Laurent B.", diário de um professor de francês dos subúrbios baseado na sua experiência pessoal, escolheu "uma das histórias mais fascinantes da Segunda Guerra Mundial": o atentado levado a cabo pelos pára-quedistas Josef Gabcík e Jan Kubi?, enviados pelo Governo checo no exílio em Londres, contra Reinhard Heydrich, o inventor da "solução final", o "carrasco de Praga". Quanto mais se informava sobre esta história, mais se convencia de que era "extremamente romanesca" e tinha vontade de a contar aos franceses, que não a conheciam detalhadamente apesar de saberem como terminou. Mas, como lembra o escritor francês, quando vemos "Romeu e Julieta" também conhecemos o fim da história; o trabalho do escritor é justamente tornar cativante uma história mesmo quando conhecemos o final.

O que fascinou Laurent Binet foi "a organização do atentado, o acto de heroísmo dos resistentes, o lado romanesco da arma cujo gatilho avaria, o nada acontecer como devia, a fuga em bicicleta, a emboscada na cripta, tudo isso". Heydrich não morreu no atentado no dia 27 de Maio de 1942, ficou ferido e provavelmente podia ter sido salvo da septicemia pela penicilina se os alemães a tivessem, mas era uma invenção inglesa. Ao mesmo tempo que ia sabendo mais sobre Heydrich, o escritor dava-se conta de que ele tinha uma dimensão de personagem literária que lhe interessava. "Havia alguma coisa de muito fascinante nesta história de um rapazinho que é acusado de ser judeu - na escola as pessoas gozavam com ele por causa disso -, que quer ser músico, depois quer ser químico, se encontra no exército na crise de 29, é mandado embora e, como há desemprego por todo o lado, inscreve-se nas SS. O rapaz que era acusado de ser judeu na escola acaba por ser o organizador da solução final. É um destino incrível. Se fosse um argumento, se eu o tivesse inventado, as pessoas iam dizer que eu tinha exagerado."

Apesar de esta ser uma história extraordinária, Laurent Binet não a queria contar como se fosse um filme de Hollywood. Queria insistir no facto de ser uma história verdadeira e por isso tinha vontade de discutir com o leitor e de lhe explicar que contar uma história verdadeira é complicado, que frequentemente temos vontade de inventar mas não devemos - para sermos fiel à realidade e homenagear os pára-quedistas.

Balzac já era

Apesar de o assunto ser delicado, o narrador de "HHhH" (que são as iniciais em alemão da frase "o cérebro de Himmler chama-se Heydrich", uma piada das SS para dizerem que o verdadeiro chefe das SS não era Himmler, era Heydrich) tem imenso sentido de humor. "É uma qualidade muito importante num romancista e foi Milan Kundera que me fez ter consciência disso. O verdadeiro inimigo para o escritor é o espírito sério", diz. "A minha maneira de mostrar respeito pelas personagens foi colar-me o mais possível à verdade, mas isso não implicava ter um estilo grandiloquente, muito enfático, muito lírico, muito trágico."

Ao mesmo tempo, Laurent Binet não queria negar o que é: "um jovem autor francês que escreve impregnado numa sociedade pós-moderna, que não arriscou a sua vida, que não é um herói, que gosta de brincar e, por vezes, dá provas de mau gosto. Um autor que não está de maneira nenhuma à altura da história que conta." Foi por isso que não teve vontade de colocar uma máscara nem tentou tapar buracos. "O romance histórico tradicional à maneira de Alexandre Dumas preenche buracos com ficção nos momentos em que não se sabe o que se passou. De tempos a tempos, cedi à tentação. Aproveitei para discutir isso com o leitor e quis que no final fosse claro o que é real e o que inventei. Era importante para mim."

Binet é professor de literatura e isso sente-se: "A literatura francesa actual funciona com esquemas ultrapassados. Balzac estava muito bem para o século XIX, mas agora é preciso passar a outra coisa: a história e o futuro do romance interessam-me, estou curioso em relação a como é que isto vai evoluir; espero que evolua melhor do que o estado das coisas em França." Insiste: "Sou um autor dos dias de hoje. Balzac descreve durante dez páginas a estação de Praga, eu acho que é mais rápido dizer que a estação me faz pensar num cenário de Enki Bilal do que descrevê-la tijolo por tijolo durante três páginas. Parto do princípio de que me dirijo aos meus contemporâneos, a leitores que são da minha geração e que têm as mesmas referências culturais. Claro que se não souberes quem é Enki Bilal temos um problema, mas se conheceres o seu trabalho rapidamente se forma na tua cabeça uma imagem."

Se não é em França que vê o futuro da literatura, é em que país? "Impressiona-me muito a literatura americana. Joga com os códigos do romance, com esta relação entre a realidade e ficção. Mesmo a auto-ficção é muito lúdica, muito interessante. Por exemplo, Philip Roth e Bret Easton Ellis, um dos escritores que me interessa mais actualmente". Isto porque Laurent Binet está agora a escrever um romance que se passa nos anos 80.

Ver crítica de livros na pág. 44 e segs.

Sugerir correcção