Ninguém imita Paulo Futre

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Paulo Futre jogou no West Ham e pagou para usar o número 10 kieran doherty/reuters

Perdeu as eleições no Sporting, mas ganhou um lugar no coração dos portugueses com o seu projecto do jogador chinês para salvar o clube de Alvalade. Depois das entrevistas e campanhas publicitárias, vai lançar a sua biografia no próximo dia 15. Mas não foi só em Portugal que o internacional português fez furor. Em Inglaterra, há quem delire com uma história já velhinha...

A história tem 15 anos e continua a levar os britânicos às lágrimas, sempre que é relembrada. Envolve Paulo Futre e foi contada pela última vez numa gala de beneficência, em Londres, pelo actual treinador do Tottenham, Harry Redknapp, duas semanas antes do ex-internacional português colocar Portugal em delírio com a sugestão da contratação de um jogador chinês para salvar o Sporting.

No arranque da temporada de 1996/97, o jogador português, na fase descendente da sua carreira, aceitou uma (curta) experiência no futebol inglês, patrocinada pelo londrino West Ham, clube centenário e de grande tradição. Em tarde de estreia no campeonato, instantes antes do confronto com o Arsenal, o recém-chegado português explode de raiva. Chamado a intervir, Redknapp, que orientava então o West Ham, foi prontamente atropelado pelo ego do seu novo reforço.

"Futre, number ten!... Eusébio, number ten; Pelé, number ten; Maradona, number ten; Futre, number ten! No fucking sixteen!" O problema era realmente o 16 estampado na sua camisola. E nem o argumento de os números terem sido atribuídos antes da sua chegada, nem o pormenor de o jogo com o Arsenal estar prestes a iniciar-se demoveram o irredutível português em aceitar adiar a discussão do assunto para ocasião mais oportuna. "No talk! No fucking sixteen!".

Ampliando a estupefacção geral, Futre ilustrou melhor a sua posição perante tamanha desconsideração. Apertou a malograda camiseta 16, atirou-a ao chão, pisou-a furiosamente, antes de a pontapear com força para longe, gritando: "Fuck, I not play with sixteen!" De seguida, saiu do balneário e abandonou o estádio. Uma cena testemunhada também por um jovem Frank Lampard, hoje uma das estrelas maiores do Chelsea, mas que dava então os primeiros passos da carreira. Foi ele quem confortou, no final, Harry Redknapp, treinador e tio.

Mas a história da camisola não terminaria aqui, ou não fosse um ponto de honra para Futre, que envolveu o seu empresário nas intensas negociações que se seguiram. Teve de abrir os cordões à bolsa. Primeiro comprou, literalmente, o número 10 ao companheiro de equipa John Moncur, que aceitou em troca, sem grandes hesitações, uma estadia de duas semanas no Algarve; depois, passou um cheque para cobrir os prejuízos resultantes da devolução de camisolas já vendidas com os números 10 e 16.

No final, tal como Eusébio, Pelé ou Maradona, Futre também exibia o seu número 10. Teve pouco uso efectivo, já que o português alinhou em escassas nove partidas, sem nenhum golo para juntar à sua contabilidade. Paulo Futre lá partiu, sem deixar grande saudade nos relvados britânicos, mas a sua obsessão pela camisola tornou-o incontornável no anedotário do futebol inglês.

Duas semanas após este episódio ter deliciado a audiência de Redknapp, o mesmo Futre voltava a proporcionar boas gargalhadas. Desta vez aos seus compatriotas, com uma conferência de imprensa memorável, que ajudou o país a digerir com mais humor a demissão do Governo, na véspera, a anunciar um humilhante resgate externo.

O jogador chinês

Candidato a líder do futebol sportinguista na lista de Dias Ferreira, apresentou um projecto para sanar as finanças leoninas a dois dias das eleições para o clube de Alvalade. A ideia seria contratar o melhor jogador chinês da actualidade para servir de isco aos seus compatriotas para se deslocarem a Lisboa e verem em acção a vedeta (não identificada). Tudo isto permitiria receitas acrescidas aos "leões", que teriam "comissões nos charters, hotéis, restaurantes e museus". O sucesso seria tal que obrigaria o clube a criar um departamento para tratar exclusivamente dos assuntos relacionados com o chinês.

Pese algum exagero nas expectativas e na forma de apresentação, a ideia, em si, não é ridícula. E também não é nova, tendo sido inspirada pelo exemplo de alguns emblemas italianos e ingleses, que apostam na contratação de jogadores asiáticos, para conquistarem mercados e aumentarem receitas. Proporciona encaixes publicitários significativos, exponencia as receitas de merchandising e possibilita digressões milionárias aos clubes que apostaram (e apostam) neste potencial de negócio. Em Portugal, o próprio Benfica tentou explorar a ideia, em 2007, investindo num jovem chinês de 18 anos, Yu Dabao, que acabou por não vingar no futebol sénior "encarnado". A estratégia, no entanto, era a mesma. Conquistar o mercado do gigante asiático.

Então por que se riram tanto (e continuam a rir) os portugueses com a história do chinês? "O que o Futre disse não é estúpido, pelo contrário. O engraçado neste episódio é a forma como ele disse as coisas e as enfatizou, com assombro. Foi isso que transformou a situação num momento de comédia", explicou ao P2 José Diogo Quintela, que integra o elenco dos humoristas Gato Fedorento.

Se o projecto de Futre não convenceu a maioria dos 14.619 sócios votantes do Sporting, já ao nível mediático teve um sucesso esmagador. A conferência de imprensa do ex-internacional português teve perto de 620 mil visualizações no YouTube, mas, no total, todos os vídeos relacionados com o tema já foram vistos mais de 1,5 milhões de vezes. Muitas das expressões usadas por "El Portugues", como é alcunhado em Espanha, onde vive há largos anos, tornaram-se expressões obrigatórias no humor popular: "Sócio, por favor, estou concentradíssimo!" ou "Vão vir charters".

Não seria bem esta a ideia de Futre para o seu reencontro com os portugueses. Mas não se atrapalhou nada, aproveitando ao máximo a nova onda de popularidade, que não sentia desde os seus tempos de jogador. Desdobra-se em programas de televisão, entrevistas a jornais e revistas. E até já está a fazer render o momento na sua conta bancária, emprestando a sua imagem a uma campanha publicitária de sucesso do Licor Beirão. O P2 tentou falar com o ex-jogador, sem sucesso.

"Quando vimos a conferência de imprensa do Paulo Futre, percebemos que havia ali uma oportunidade fantástica. Isto se conseguíssemos descolar da própria conferência de imprensa e brincar com a antecipação da campanha eleitoral para as eleições legislativas que aí vem", explicou Manuel Oliveira, responsável da agência de publicidade Uzina. De um dia para o outro, um Futre sorridente em pose de político encheu outdoors, mupis, anúncios nas televisões e Internet, com promessas eleitorais. "Acabaram-se os tachos. Um wok para cada português!", "Um diploma de engenheiro para cada cidadão!" ou "Um Governo com 19 + 1. 19 amigos e mais um para trabalhar!" são algumas das propostas, inspiradas pela conferência de imprensa que antecedeu as eleições no Sporting.

Desenrascanço português

"Preparámos esta campanha em apenas dois dias. Contactámos com ele, negociámos, mas, desde o início, quando ele soube o teor da nossa campanha e as frases que iríamos usar, apoiou entusiasticamente. Ele é uma pessoa muito positiva nesta matéria e com um sentido de humor muito forte", garantiu o publicitário, que considera ser grande o potencial de empatia entre Futre e a audiência portuguesa. "Nós todos somos assim um pouco impulsivos, como ele foi naquela conferência de imprensa. Ele vai lá, cria uma empatia com o público, conta uma história ao mesmo tempo que joga umas ideias para o ar. Um alemão nunca faria aquilo. Esta forma de desenrascanço é uma característica portuguesa muito própria."

Quem também não quer deixar escapar a embalagem desta exposição mediática é a editora Leya, detentora dos direitos da biografia de Paulo Futre. O lançamento do livro, com o título "El Portugues", foi antecipado para o dia 15 de Maio próximo. O autor é Luís Aguilar, jornalista freelancer e escritor, que lançou em 2009 a polémica biografia de Fernando Mendes, O Jogo Sujo.

"Tínhamos programado que o livro saísse mais tarde, até ao final do ano, mas já estava muita coisa feita. O único elemento novo da biografia foi precisamente as eleições no Sporting. Quando começámos a falar sobre o livro, há dois anos atrás, não fazíamos ideia dessa possibilidade, mas não nos criou muito stress", contou ao P2 o jovem biógrafo, de 29 anos.

A viver no Montijo, berço de Futre, Luís Aguilar conheceu o ex-jogador através de amigos comuns: "Há cerca de dois anos, entrei em contacto com ele, expliquei-lhe a minha ideia para uma biografia sua, falámos durante algum tempo para saber qual seria o melhor caminho a seguir, e começámos a trabalhar há cerca de um ano e meio, com visitas minhas frequentes a Madrid, aos fins-de-semana."

Mas valeu a pena. As histórias surgiam em catadupa a cada conversa e a dificuldade foi a triagem final, para arrumar tudo em 300 e poucas páginas. "É um contador de histórias fantástico, tem uma emoção e uma paixão enorme quando está a falar e a lembrar os momentos. Todas as histórias dele davam para fazer cinco ou seis livros, mas acho que escolhemos as melhores ou, pelo menos, as mais fortes", antecipou. "É uma história muito interessante, algo romântica, do miúdo que não tinha nada, que veio da pobreza, que passava fome e que chegou ao topo do mundo. Um bocadinho ao estilo do sonho americano, mas, neste caso, com um português nascido no Montijo."

E a intimidade com Futre possibilitou a Luís Aguilar uma perspectiva privilegiada sobre a ex-estrela do FC Porto e do Atlético de Madrid. "Ele é mesmo assim. Foi igual a si próprio na conferência de imprensa antes das eleições para o Sporting. Mas não me surpreende a surpresa de muitos portugueses em relação à sua forma de ser e à sua forma de se expressar, uma vez que ele está fora do país há muitos anos. E muitos, da nova geração, nem sequer o conheciam bem", lembrou.

José Diogo Quintela concorda: "Ele estava a ser natural. Conheço o Futre pessoalmente e ele é engraçadíssimo. É uma figura única." A verdade é que tornou muito ingrata a vida aos humoristas que quiseram parodiar este episódio. É que o original é sempre o original. "Eu não vi nenhum mais giro que aquele", confessa o humorista.

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