O metal afegão morrerá com eles

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Não é só a roupa que chama uma atenção indesejada. As letras também são cuidadosamente escolhidas

A primeira e única banda de metal no Afeganistão saiu de uma cidade em tumulto, pejada de atentados suicidas. Na Cabul de hoje, ainda é arriscado tocar música influenciada pelo mundo ocidental. Mas os District Unknown insistem em canalizar a sua raiva através do heavy metal.

"Uma maldição sobre todos os filhos da puta dos políticos e os cabrões dos corruptos!" O grupo sobe ao palco com 20 minutos de atraso. Há certos problemas logísticos envolvidos quando se toca num concerto em Cabul: a electricidade vai e vem conforme lhe apetece. Esta noite, desaparece durante o sound check.

Os District Unknown estão prestes a competir na primeira Battle of the Bands (concurso de bandas) de sempre em Cabul. Vão actuar para um público que normalmente não compraria bilhetes para ver homens com verniz das unhas preto a grunhir como demónios. Mas, ainda assim, a multidão compõe-se e cresce, chamada pela oportunidade de testemunhar um pedaço de história da música.

A maior parte dos espectadores é ocidental e branca. Chegam ao local do concerto, um restaurante chamado Le Atmosphere, em jipes Toyota blindados. São revistados e deixados entrar por seguranças que envergam coletes à prova de bala e metralhadoras Kalashnikov.

A maior parte das pessoas na audiência usa fato completo ou camisas e blusas trendy. Mas os membros dos District Unknown, à imagem do melhor metal, usam blusões de cabedal, cintos de pregos, barbichas e lenços. Não se pode dizer que combinem na perfeição.

Mas é com isto que a única banda de metal do Afeganistão tem de se contentar. Pelo menos os ocidentais e os afegãos mais cultos já ouviram falar do género musical chamado metal. O que, no entanto e de acordo com o vocalista dos District Unknown, Lemar Salifullah, não quer dizer que compreendam a sua música.

"Os estrangeiros vêem o nosso cabelo comprido e as nossas pêras. Batem palmas como um sinal de compaixão e nem sabem distinguir quando a música acabou mesmo. Os tipos das ONG [organizações não governamentais] não gostam de metal, mas ainda assim vêm ter connosco no fim dos concertos e dizem-nos que somos bons", afirma.

Lemar e o resto do grupo riem-se. E dão outro exemplo das reacções dos estrangeiros à sua música.

"Há um mês, uma rapariga veio ter comigo e disse-me que a nossa música era boa, mas perguntou por que é que eu estava tão zangado, quando eu simplesmente tinha cantado", explica Lemar.

O grupo já actuou frente a uma multidão afegã e com os mesmos resultados. O metal é um género por explorar num país que tem estado isolado da influência ocidental durante décadas. Os membros da banda dizem que os jovens afegãos acreditam que tudo o que seja cena musical fora da música folk e popular afegã e da pop iraniana é apenas uma moda passageira.

"O que eles querem mesmo é Bon Jovi, não metal. Alguns afegãos até pensam que nós tocamos rap. Depois de um concerto, um tipo perguntou-nos se tocávamos em casamentos", diz Lemar com um esgar. E acrescenta, mais sério: "Mas não podemos culpá-los por isto, porque a verdade é que não têm maneira de saber."

Do exílio aos Aerosmith

Os quatro membros da banda fugiram do Afeganistão em 2001, ano dos ataques da Al-Qaeda ao World Trade Center, em Nova Iorque, e da subsequente invasão norte-americana. O Afeganistão era um sítio muito diferente. As mulheres não podiam entrar em táxis. Toda a música era condenada com fanatismo. Mesmo as campainhas das bicicletas eram vistas como instrumentos musicais e, por isso, proibidas.

Lemar, o vocalista, fugiu para a Índia com a sua família. Os restantes membros do grupo mudaram-se para o Irão com as suas famílias. Na paz relativa das suas casas novas e temporárias, as fundações para uma nova era musical no Afeganistão começavam a erguer-se.

Um dia, o baterista Pedram Foushanji e o seu irmão, o baixista Qausam, descobriram uma das cassettes VHS do seu pai - um vídeo dos Aerosmith. Ficaram convencidos.

"Adorei os riffs [de guitarra]. Adorei o visual", diz Pedram. "Avançámos para os Metallica. E daí para um lado mais obscuro. Começámos a ouvir death metal, music progressive e thrash metal. Quando eu voltei para o Afeganistão, era o único a ouvir esse tipo de música. Mais ninguém ouvia."

"Quando ouvi Metallica pela primeira vez não sabia que era possível fazer sons daqueles com uma guitarra", confessa o guitarrista Qais.

Quanto a Lemar, passou os seus anos de adolescência na Índia, com pop indiana e Michael Jackson. Só em 2006, quando regressou ao Afeganistão, é que descobriu o hard rock. "Encontrei um disco com uma mix de músicas rock", lembra. "Uma música era dos Metallica. Quando a ouvi, soube imediatamente que era o meu tipo de música. Senti que pertencia àquele mundo. O metal é puro poder. Não me diz para me deitar e morrer. Pelo contrário, diz-me para me erguer e lutar."

Há cerca de um ano, Pedram falou por acaso com um australiano que estava no Afeganistão a fazer um documentário. Ele disse a Pedram algo impossível - havia outras pessoas em Cabul que gostavam de metal. "Nem pensar", lembra-se Pedram de ter respondido.

O australiano apresentou os irmãos Foushanji a Lemar e ao guitarrista Qais Shaqasi, e hoje os quatro estão sentados em cadeiras e amplificadores numa pequena casa no centro de Cabul. Passaram-se dois dias desde a Battle of the Bands. Os District Unknown não ganharam mas, agora que estão no seu estúdio a ensaiar, não se mostram muito desapontados. Dizem ter ficado felizes só por terem sido convidados.

"Mata-me a sede com gasolina" está escrevinhado numa parede do estúdio. A banda tinha pensado pintar as paredes de preto, mas escolheram outras cores por medo de serem rotulados como satânicos, um enorme risco. Ser acusado de satanismo no Afeganistão pode facilmente levar à pena de morte. Só o facto de se vestirem de preto levanta suspeitas.

"Só posso vestir isto no centro do Cabul. Em mais lado nenhum. Há um par de anos até podia levar isto a algumas das províncias, mas agora é impossível", diz Lemar, ao mesmo tempo que arrasta um dedo ao longo da garganta.

Nos últimos anos, os taliban reorganizaram-se no Paquistão, e os Estados Unidos e os seus aliados perderam o controlo de grandes partes do Afeganistão, limitando os esforços de segurança às grandes cidades.

A roupa não é a única coisa que chama uma atenção indesejada. As letras também têm de ser cuidadosamente escolhidas, especialmente perante um Presidente como Hamid Karzai e as forças policiais, a que têm sido descritos por diplomatas norte-americanos como corruptos, paranóicos e, por vezes, leais aos taliban.

"O que eu disse no outro dia no concerto... É o único sítio onde posso dizer aquelas palavras, e mesmo assim... Se eu falasse mal dos políticos nas ruas, as pessoas espancavam-me ou podiam mesmo matar-me. E, depois, e se eu sobrevivesse a um ataque desses, as pessoas chamavam-me louco." Lemar olha para a sua camisa preta, as suas calças de ganga justas e para o cinto de tachas. Observa o que resta do verniz preto, que tem de ser tirado depois de cada concerto. Usa um chapéu para evitar que se veja o seu cabelo comprido.

"Este sou eu. Quero vestir-me assim, mas não quero ser criticado por isso. Temos medo de algumas das seitas religiosas e partidos neste país. Pensam que adoramos o diabo e podem mesmo dar cabo de nós se quiserem", diz.

Pedram não tem de se preocupar em esconder o seu cabelo. Não o deixou crescer. Mas preocupa-se com os seus amigos na universidade onde estuda. "Se tocamos numa banda de metal, não podemos dizer aos nossos amigos. Eles agiriam como se eu fosse um espião. No outro dia mostrei-lhes algumas fotos de um concerto que demos e algumas pessoas da minha turma ficaram com as fotografias. Agora não sei se estou seguro na escola", conta.

"Não podemos progredir sem as críticas, mas estas não são críticas normais", acrescenta Lemar. "As pessoas atacam-nos. Não estão prontas para ouvir as nossas opiniões e também não têm paciência para as discutir. Simplesmente olham para o meu cabelo comprido e pensam que devo ser algo mau."

É uma impressão errada, diz a banda, porque o islão sempre olhou de forma permissiva para o cabelo longo.

Rumo à escuridão

Como banda no Afeganistão, é difícil evitar misturar música e política. A mudança está por toda a parte. Desde que os norte-americanos invadiram o país, nascem edifícios de dez andares pela cidade de Cabul. Muitas mulheres deixaram de usar burqas e já não é obrigatório pintar as janelas de preto se uma mulher lá viver.

Mas mesmo com todas estas mudanças e transformação, o país ainda está aquém de fornecer os padrões de qualidade de vida equivalente aos do Ocidente. Os District Unknown nasceram dos atentados suicidas.

Eles criam música controversa numa das mais perigosas cidades do mundo. E com a incerteza das suas vidas em Cabul, o metal tornou-se numa forma para estes homens canalizarem a sua fúria, atrevendo-se a ver a realidade tal como ela é.

"Tocar e ouvir metal é como ir aos lados mais negros de nós próprios, lugares que eu não ousaria enfrentar na minha vida normal. É como escolher um caminho rumo à escuridão", diz Pedram.

"Já vi tanto. Fui torturado mentalmente todos os dias", adianta Lemar. "Toda a gente neste país pensa que o Presidente e a polícia são corruptos, mas ninguém faz nada para mudar isso. As pessoas olham para os pedintes na rua, mas ficam caladas e simplesmente continuam a andar. Triliões de dólares entram neste país, mas mesmo assim vejo crianças de cinco anos a tremer ao frio nesta cidade. É preciso lutar contra a injustiça."

A banda vê a sua música como uma arma, embora não uma arma que seja física e violenta. Para os District Unknown, é muito mais fácil apontar uma AK-47 à cabeça de alguém e premir o gatilho. Contar a sua versão da verdade através da música é a sua forma de combater os erros que eles identificam no Afeganistão.

"O metal pode ser agressivo, mas há uma diferença entre bater em alguém com um punho e bater em alguém com a música e com a voz", explica Lemar, que prossegue: "Aqui, no Afeganistão, falta-nos uma linguagem que fale. Em vez disso, temos uma linguagem de violência e retaliação. Mas não posso culpar o meu país e o meu povo, porque durante décadas tudo o que tivemos foi guerra."

O futuro não parece promissor para a banda. Além dos District Unknown, o Afeganistão só tem outros três grupos de rock. E essas três outras bandas têm um som mais feliz e positivo, emanando do folclore abegão. A banda Kabul Dreams é a única que conseguiu algum reconhecimento fora da capital afegã, devastada pela guerra.

Só os District Unknown tocam metal e dizem que vão permanecer assim. No Afeganistão, o género morrerá com eles.

"Dentro de dez ou vinte anos, já não restará esta mentalidade agressiva", afirma Lemar. "Há algo de positivo nisso: saber que temos de agir depressa. Mais ninguém vê as coisas desta maneira. O metal é demasiado difícil para que as pessoas o compreendam. E se não se consegue compreender, não se consegue aceitar."

publica@publico.pta A música tradicional afegã chama-se klasik, incluindo instrumentos, voz e dança do ventre.

a O rubab, considerado instrumento nacional do Afeganistão, é uma espécie de alaúde e é o precursor do sarod indiano.

a 1925: o Afeganistão iniciou as emissões de rádio, mas a sua estação foi destruída em 1929. Os programas só voltaram a ir para o ar quando a Rádio Cabul foi inaugurada em 1940. À medida que esta emissora era ouvida pelo país inteiro, a música popular tornava-se cada vez mais importante.

a Desde a intervenção militar norte-americana no Afeganistão em 2001 e o derrube do governo dos taliban em Cabul, a cena musical começou a reemergir. Alguns grupos, como os Kaboul Ensemble, conquistaram reputação internacional. Além disso, a música tradicional pashtun (sobretudo no Sudeste do país) entrou no período dos seus "anos de ouro", segundo Lutfullah Mashal, porta-voz do Ministério do Interior afegão.

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