O reactor nuclear português dá-nos uma luz azul há meio século

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A ardósia com os dados da primeira reacção em cadeia do reactor de investigação português, em que o total de urânio necessário foi de quase 3,6 quilos fotografias cortesia do instituto tecnológico e nuclear

Houve planos de construção de várias centrais nucleares em Portugal, destinadas à produção de energia eléctrica. Peça importante nesses planos, que também passavam pela extracção das reservas de urânio, foi o reactor de investigação. Queria aprender-se a dominar a tecnologia nuclear. Inaugurado há 50 anos, na ditadura de Salazar, continua ao serviço da ciência e do ensino

Ninguém parece saber do quadro de ardósia onde se registaram os dados da primeira reacção nuclear em cadeia em Portugal. Não fosse alguém ter tirado uma fotografia, o registo a giz desse pedaço de história, com a quantidade de urânio que teve de ser usada, até se atingir a reacção em cadeia, ter-se-ia perdido para sempre.

Foi a 25 de Abril, mas de 1961, durante a ditadura de António de Oliveira Salazar, que o reactor nuclear português funcionou pela primeira vez. Dois dias mais tarde, a 27 de Abril, tanto o reactor como as instalações onde foi construído, o Laboratório de Física e Energia Nucleares, perto de Sacavém, eram inaugurados com toda a formalidade da época, pelo Presidente da República, o almirante Américo Tomás, entre personalidades portuguesas e estrangeiras e destaque nos jornais. Uma inauguração que coincidia com o aniversário da entrada de Salazar no Governo (como ministro das Finanças, em 1928).

Recuemos uns dias antes da pomposa inauguração. Era de manhã, pelas 7h30 de 24 de Abril de 1961, quando começaram os trabalhos para pôr o reactor a funcionar, o que significava fazer a primeira reacção em cadeia inicial.

O físico António Ramalho, agora com 81 anos, era o responsável pelo reactor nuclear. Tinha passado um ano nos Estados Unidos, entre 1959 e 1960, a especializar-se em física dos reactores nucleares na Universidade de Michigan. E naquele dia era ele quem dirigia a experiência na sala de comando do reactor português, com o engenheiro David Andersen, da empresa norte-americana AMF Atomics, que projectou e forneceu o reactor, do tipo piscina.

Construída no centro de um pavilhão, a piscina, de nove metros de altura, servia para albergar o coração do reactor, ou núcleo, rodeado por 450 mil litros de água.

Pouco depois de a equipa de António Ramalho iniciar os trabalhos, uma avaria electrónica atrapalhava os planos. Levou o dia todo a resolver. Só na madrugada do dia seguinte, já 25 de Abril, à 1h50, foi possível retomar as operações e tentar comandar o reactor nuclear.

O que significa comandar um reactor? "Significa fazer com que o sistema entre em auto-reprodução e controlar essa auto-reprodução", começa por dizer António Ramalho.

Explicando: o núcleo do reactor tem várias barras de combustível - urânio enriquecido -, que são bombardeadas por uma fonte de neutrões. Quando um átomo de urânio absorve um desses neutrões, diz ainda António Ramalho, dá-se a sua cisão e são libertados mais neutrões. O objectivo é que os neutrões libertados cindam o núcleo de outros átomos de urânio e assim sucessivamente e que essa reacção - dita em cadeia - se mantenha sozinha. "O sistema começa connosco a fornecer neutrões. Mas tem de funcionar por si próprio, sem que se forneçam neutrões."

Naquela madrugada, iam-se fazendo descer, aos poucos, barras com o combustível até uma grelha colocada no fundo da piscina. Sempre que se encaixava mais urânio na grelha, o nível de neutrões subia um pouco, mas tal não significava que a reacção iria já manter-se sozinha. Ao mesmo tempo, era preciso ir controlando essas reacções, pelo que, no coração do reactor, ora se subiam, ora se desciam as barras de comando, de um material que absorve os neutrões.

Passaram a noite nisto: a pôr barras de combustível no núcleo, a movimentar as barras de comando, a medir os neutrões que resultavam das cisões, a fazer previsões da quantidade de urânio necessária.

Havia que determinar a massa crítica do urânio, como os físicos chamam à quantidade que manteria a reacção em cadeia. "Não sabíamos do que iríamos precisar", diz António Ramalho. "Começa-se com uma quantidade mais pequena e vai-se adicionando. Por cada adição, vamos ajustando as barras de comando."

Várias palestras hoje

O que se lê na ardósia é a contagem dos neutrões medidos por dois detectores (ou canais) e a massa crítica que veio a ser necessária. Quase 3,6 quilos de urânio.

Era já de manhã, pelas 9h50, quando começou a dar-se a reacção nuclear em cadeia. Os dados dessa primeira "experiência crítica" no reactor foram apontados a giz pelos físicos Frederico Carvalho e Cândido Marciano da Silva. "O quadro é uma espécie de monumento histórico. Ficou tapado com plástico muitos anos, já depois do 25 de Abril [de 1974]. Julgo que foi deitado fora, mas não posso garantir", conta Frederico Carvalho, de 75 anos, investigador-coordenador aposentado do Instituto Tecnológico e Nuclear (ITN), em Sacavém, a instituição que herdou grande parte do património do Laboratório de Física e Engenharia Nucleares.

"Essa ardósia devia estar no museu", diz António Ramalho. "As sensações dessa noite? Não me lembro", refere o primeiro responsável pelo reactor. "Estava mais preocupado em que tudo corresse bem, que fizéssemos bem as contas. Foi mais a sensação de ter cumprido qualquer coisa", acaba por dizer. "Toda a gente ficou muito contente. Essa é a noite de 25 de Abril, um dia bastante conhecido...", brinca Frederico Carvalho.

Hoje, a partir das 14h45, no ITN, vão comemorar-se os 50 anos do reactor. António Ramalho e Cândido Marciano da Silva contarão as suas memórias dessa primeira noite.

Entre outros, Júlio Galvão, responsável pela protecção radiológica, também presente naquela noite, falará do reactor de Sacavém antes de 1961; e Jaime da Costa Oliveira dos estudos sobre reactores nucleares em Portugal ao longo de meio século.

Entre os episódios daqueles tempos, António Ramalho lembra-se de alguns relacionados com a água da piscina, que não só serve como barreira às radiações como é essencial para abrandar os neutrões e permitir que se dê a reacção em cadeia. "A meio de Março, pus-me a fazer as minhas contas e cheguei à conclusão de que precisaríamos de um mês para encher a piscina. A água era tratada num desmineralizador." Tinham de começar logo, e trabalhar de dia e noite. Mas na inauguração não estava cheia: "Alguém abriu uma válvula. Debatemos o problema e houve quem sugerisse que metêssemos água da torneira. Rejeitei: a piscina ficou com oito metros de água, em vez de nove. Não tinha importância, porque íamos trabalhar a baixa potência."

Chegar até à manhã da reacção em cadeia, desde que foi tomada a decisão de construir o reactor e o laboratório, tudo foi muito rápido. O interesse pelo urânio e pelos estudos de aproveitamento da energia nuclear em Portugal começou no início da década de 50. O seu poder destrutivo já tinha ficado bem visível com o lançamento das bombas em Hiroxima e Nagasáqui, em 1945. Mas a libertação da energia contida no núcleo atómico suscitava o interesse dos países para fins pacíficos. Podia ser uma nova fonte de energia.

Foi nesse contexto que, logo em 1952, se criou em Portugal uma Comissão Provisória de Estudos de Energia Nuclear, dentro do Instituto de Alta Cultura. Passados dois anos, em 1954, surgia a Junta de Energia Nuclear (JEN), presidida por José Frederico Ulrich, e que ficava na dependência directa da Presidência do Conselho de Ministros, ocupada por Salazar. Nesse mesmo ano, uma estreia mundial: perto de Moscovo, entrava em funcionamento o primeiro reactor nuclear destinado a abastecimento de energia eléctrica.

Não tardou muito, durante 1955, a JEN e Salazar aprovavam então a criação do Laboratório de Física e Energia Nucleares (LFEN). O estudo de minérios de urânio, a especialização de pessoal no manejo de reactores nucleares e o ensino e a investigação ao serviço das universidades e indústria estavam entre os seus objectivos.

Já se falava da aquisição de um reactor nuclear de investigação pelo laboratório. Essa compra foi autorizada em 1957 pelo Conselho de Ministros, ano em que arrancava a construção do LFEN perto de Sacavém. Pouco depois, adjudicava-se a construção do reactor.

Até ao final da década de 50 também se procuraram, e descobriram-se, reservas de urânio na Beira Alta e no Alto Alentejo. Aliás, no LFEN foi construída uma instalação-piloto para fabrico de urânio metálico a partir dos minérios de urânio portugueses.

Eis-nos então chegados ao dia em que tudo isto - o LFEN, com o seu reactor e a instalação-piloto de fabrico de urânio metálico, que tinham como director-geral Carlos Cacho - estava prestes a ser inaugurado por Américo Tomás, perante convidados estrangeiros, como o director adjunto da recém-formada Agência Internacional de Energia Atómica e os representantes das comissões de energia atómica dos Estados Unidos, Espanha e Itália. Portugal era o 35º país a ter este tipo de equipamento.

O Diário de Notícias punha em título: "O primeiro reactor atómico de Portugal, que é hoje inaugurado oficialmente pelo chefe do Estado, constituirá instrumento precioso para impulsionar o progresso e científico e técnico do nosso país." No artigo, lê-se: "Portugal alinha, assim, graças à acção da JEN, ao lado dos países que se preparam para a evolução científica, técnica e económica que a idade atómica oferece à humanidade."

O Diário Popular citava José Frederico Ulrich na inauguração, para explicar o que iria fazer-se: "Trata-se de um reactor experimental, não destinado a produzir energia, mas a realizar estudos de materiais e das características dos reactores em geral e a facultar experiência da utilização e do controlo destes complexos aparelhos. Em suma: a familiarizar-nos com a tecnologia dos reactores nucleares por forma a podermos acompanhar com conhecimento de causa a sua constante evolução."

Planos mais ambiciosos já transpareciam nos jornais, como no Diário de Notícias, referindo-se a explicações de Ulrich: "O seu funcionamento reveste-se do maior interesse para o futuro aproveitamento da energia nuclear no nosso país. Permitirá formar pessoal habilitado, que não surge com experiência do dia para a noite. Desta instalação se poderá passar a outras mais complexas e evoluídas."

O fabrico de lingotes de urânio não passava em branco, e o Diário de Notícias referia: "Nessa instalação-piloto, foi agora, pela primeira vez em Portugal, produzido urânio metálico puro, extraído de minério nacional e tratado naqueles laboratórios. Trata-se de um perfeitíssimo lingote, com 30 centímetros de altura por 20 de diâmetro e 70 quilos."

Quase um ano após a primeira reacção em cadeia, a 9 de Abril de 1962, o reactor atingia a potência máxima: um megawatt, o equivalente a mil aquecedores a óleo domésticos de um quilowatt. "Atingida a potência máxima, o núcleo do reactor apareceu envolvido por forte luminosidade de cor azul-celeste, de rara beleza, que aliás já começa a notar-se, embora com menos intensidade, à potência de dez quilowatts", dizia o Diário de Lisboa.

Este azul luminoso, tranquilizador até, que emana do coração do reactor pela água da piscina, resulta do efeito de Cherenkov, o apelido do cientista russo que descreveu esse fenómeno e pelo qual ganhou o Nobel da Física em 1958. Ao escaqueirarem-se os átomos de urânio, resultam outros elementos, cuja posterior desintegração origina a emissão de electrões e outras partículas electricamente carregadas. A luz azul, tão característica do núcleo dos reactores nucleares, resulta do facto de essas partículas carregadas se deslocarem a uma velocidade superior à da luz na água.

Planos para as centrais

"Deu-se assim um passo muito importante no sentido da exploração do reactor da mais diversa natureza, designadamente na produção de alguns isótopos radioactivos para aplicações em medicina e agricultura", continuava o Diário de Lisboa. "Corresponde também a um passo significativo num processo que principia com este reactor e termina nas centrais nucleares que, no futuro, vão ser utilizadas no país na produção de energia eléctrica."

Por esta altura, já tinha sido criada a Companhia Portuguesa de Indústrias Nucleares, uma parceria de várias empresas (durou de 1958 a 1964). Numa memória descritiva desta companhia, A Energia Nuclear na Produção de Electricidade em Portugal, de 1961, referem-se nove estudos sobre a construção e exploração de uma central-piloto.

Por sua vez, José Veiga Simão, consultor da JEN entre 1959 e 1963, já mencionou os planos de construção de uma central nuclear luso-espanhola junto ao Guadiana. No testemunho no livro O Reactor Nuclear Português - Fonte de Conhecimento, de Jaime da Costa Oliveira (2005), Veiga Simão conta que a então Empresa Termoeléctrica Portuguesa e a Companhia Sevilhana de Electricidade entregaram essa proposta aos governos dos dois países em 1967.

A energia nuclear surgia referida em 1973, já Salazar tinha morrido e era Marcelo Caetano o presidente do Conselho de Ministros, no relatório preliminar do IV Plano de Fomento para 1974-1979. Nesses investimentos a médio prazo no país, lá estava a produção de energia eléctrica por via nuclear, referindo-se que os estudos feitos desde 1968 sobre o fabrico próprio de combustíveis nucleares e a instalação de centrais estavam quase terminados. Estudos que tinham concluído que era competitivo incluir as centrais nucleares na rede eléctrica até ao final da década de 70. Mais: iria seguir-se uma segunda fase de actividade, destinada a resolver problemas com o licenciamento e a segurança das centrais, bem como a participação da indústria portuguesa nas centrais.

O fim da ditadura, a 25 de Abril de 1974, não significou o fim dos planos nucleares. Em 1976, o Governo nomeou uma comissão técnica de redacção do Livro Branco sobre Centrais Nucleares, coordenada por Jaime da Costa Oliveira, que abordasse aspectos económicos, ecológicos e sanitários. Mas nesse ano, a população de Ferrel, concelho de Peniche, já tinha marchado, no local dos trabalhos preparatórios de uma central, contra a opção pela energia nuclear. O livro foi entregue em 1977. E a opção nuclear veio a constar do Plano Energético Nacional de 1984, que defendia a construção de quatro centrais no país, mas acabou rejeitada pelo Conselho de Ministros, contra a vontade de Veiga Simão, à época ministro da Indústria e Energia.

Para lá dos avanços e recuos pela opção da energia eléctrica por via nuclear, o reactor de Sacavém foi-se mantendo a funcionar até hoje. E foi sofrendo renovações, como a de 2007, em que o urânio altamente enriquecido do núcleo foi trocado por outro de baixo enriquecimento.

Para que quer um país, que rejeitou os projectos das centrais nucleares, um reactor de investigação? Único do género na Península Ibérica, com uma equipa de sete cientistas, incluindo José Marques, o actual responsável, e oito técnicos, a radiação e os neutrões que produz têm diversos usos - desde testes à resistência de circuitos electrónicos que vão para o espaço até ao estudo da forma de moléculas, passando pela caracterização da estrutura de certas peças, para verificar se têm falhas internas. Serve ainda para investigação fundamental médica, por exemplo produzindo elementos radioactivos. Ou, ainda, para identificar vestígios de determinadas substâncias, o que é importante em estudos ambientais e de ciências da Terra. E há a vertente de formação: "Recebemos alunos de todas as universidades portuguesas. Esta casa sempre foi um sítio de formação", frisa José Marques, de 45 anos. Além de dezenas de alunos universitários, que realizam ali estudos experimentais, há as visitas de alunos do ensino secundário. "Vêm visitar o reactor 2500 alunos do ensino superior e secundário por ano", diz José Marques. Como professor universitário, reencontra mais tarde alguns nas aulas, que lhe dizem: "Fui ver o reactor. Não me lembro de nada, só da luz azul."

A quem vier visitar o reactor, o seu primeiro responsável sugere: "Com as luzes do edifício desligadas, toda aquela beleza, aquele azul, ressalta muito mais."

Poderá ver-se pelo menos até 2016, quando terá de voltar a mudar-se o urânio que tem no coração.

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