Padura e o homem que gostava de cães

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Leonardo Padura escreveu um romance sobre um homem que fez História, Trótski, e um homem que entrou na História porque o matou, Ramón Mercader. Ao contar esta história real, por onde passa a perversão da utopia socialista pelo estalinismo, o povo cubano nunca lhe saiu do pensamento.

Na última Feira do Livro de Cuba, que decorreu em Fevereiro, em diversos locais de Havana, o novo romance de Leonardo Padura, "O Homem que Gostava de Cães", esgotou. Uma multidão esteve horas na fila para conseguir um exemplar. E nos dias seguintes, em várias livrarias da cidade, houve um papel colado nas portas a dizer: "Já não temos livros do Padura".

O romance que trata do assassinato de Trótski e da história do seu assassino saiu primeiro em Espanha, em 2009. Apesar do preço, muito alto para um cubano o poder comprar (22 euros, que é mais ao menos o que ganha num mês um médico na ilha de Fidel), muitas pessoas conseguiram ter o livro, enviado por algum amigo ou por outra via. "Muita gente tinha lido o livro, outros tinham notícias dele, e foi criada muita expectativa", explica o escritor cubano que esteve no festival LeV- Literatura em Viagem, em Matosinhos, a lançar o romance. Foi assim que uns 200 ou 300 exemplares da edição espanhola circularam em Cuba antes de o livro ter uma edição cubana de quatro mil exemplares, vendidos a 30 pesos (cerca de um euro, que é ainda um preço alto para um país onde o salário médio ronda os 450 pesos).

Muitas das pessoas que em Cuba têm lido o romance agradecem ao escritor tê-lo escrito. Leonardo Padura tem uma explicação para este sentimento: "Conta uma história que tem muito a ver com os cubanos, mas que é muito desconhecida para nós. Sobretudo quando aborda a perversão estalinista do ideal socialista: sabia-se em linhas gerais como tinha decorrido todo o processo, mas não se sabiam detalhes. Por isso foi-se criando uma expectativa em relação a esta obra."

Padura escreve sempre em primeiro lugar para os leitores cubanos, porque os considera o seu "público natural". Neste romance isso aconteceu-lhe mais do que em qualquer outro. "Ainda que as histórias se passem no século XIX ou em outros lugares, como na Turquia, país onde Trótski esteve exilado, tudo na minha literatura tem a ver com a vida em Cuba, com o presente em Cuba, com a minha experiência como ser humano em Cuba e, sobretudo, com a experiência da minha geração. É sempre uma literatura focada no que foi o sonho e no que têm sido as frustrações da minha geração", afirma.

Desta vez, Padura criou uma história que se passa em cenários muito diferentes e com personagens muito pouco conhecidas em Cuba. "No momento de escrever, eu não podia dedicar-me a ficcionar e, de alguma maneira, também tinha de explicar a um potencial leitor cubano quem foram estas personagens: quem foi Trótski, o que se passou na disputa entre Trótski e Estaline, o que se passou no estalinismo dos anos 30. O leitor cubano viveu todos estes anos voltado de costas para essa informação. As pessoas em Cuba agradecem-me porque lhes ensinei uma história de que eles fazem parte e que lhes foi escondida durante muitos anos."

"O Homem que Gostava de Cães" pretende explicar um dos episódios que evidenciam a perversão da utopia socialista. "Creio que o assassinato de Trótski tem um carácter simbólico muito grande dentro da perda dessa utopia socialista. O meu livro mostra como a União Soviética, a partir da época de Estaline, sofreu um acelerado processo de dogmatização, de perversão, que acabou por converter o país numa autocracia onde só Estaline decidia. Não decidia só o que acontecia na União Soviética, decidia o que acontecia no resto dos partidos comunistas do mundo. Quem não correspondia a essa ortodoxia ficava de fora", acrescenta o escritor cubano.

"O sentido de perda de identidade, de perda de independência, de perda de espaço para se poder pensar, para se poder decidir, é um dos elementos mais dramáticos desta perversão da utopia socialista, que tinha como princípio criar uma sociedade onde houvesse o máximo de liberdade com o máximo de democracia. Digo o mais dramático porque não devo dizer o mais terrível; o mais terrível é o que matou mais de 20 milhões de pessoas. Entre um escritor ou um pensador que tem de deixar de escrever ou de pensar e uma pessoa que morre, é muito mais dramática a morte. Mas não foi só uma pessoa, foram milhões de pessoas, por isso há uma diferença importante", sublinha. Além de mostrar como se perverteu essa utopia, "O Homem que Gostava de Cães" mostra também a experiência de Cuba quando adoptou o modelo soviético. "O modelo soviético desaparece nos anos 90, mas Cuba manteve-o e continua a mantê-lo até hoje. Neste momento, hoje mesmo [a entrevista foi realizada no dia 16 de Abril], o Partido Comunista Cubano trata de afastar-se do que significou esse modelo, trata de propor um modelo social e económico diferente. Como vão conseguir fazê-lo, e se a burocracia vai permitir que esse afastamento seja possível ou não, é algo que só o futuro dirá. Mas é evidente que mesmo os mais altos dirigentes cubanos se deram conta de que tinham cometido um grande erro ao importar um sistema que já vinha doente, que já estava pervertido."

Surpresas durante  a investigação

A investigação que Leonardo Padura foi obrigado a fazer para conseguir escrever este livro foi muito complicada. "A primeira complicação é que em Cuba não existe bibliografia sobre estas personagens ou sobre estes temas. Por isso, parti de um desconhecimento absoluto."

Na época em que Leonardo Padura andou na universidade, era como se Trótski não existisse; de Ramón Mercader, o seu assassino, não se sabia nada. Foi só nos anos 90 que o escritor, que ficou mundialmente conhecido por causa dos seus romances policiais com o detective Mario Conde, começou a ter um pouco mais de informação sobre Trótski e soube que Ramón Mercader tinha vivido quatro anos em Cuba, de 1974 a 1978, e que tinha morrido em Havana. "Com estes conhecimentos, em alguma parte da minha cabeça começou a formar-se a possível ideia de fazer um romance. Passei dois anos a investigar, não fazia mais nada. Li muito, sistematizei o meu conhecimento e quando já tinha capacidade para poder movimentar as personagens na história comecei a escrever. Isso aconteceu três anos antes de terminar o romance." Mas durante o tempo que demorou a escrita nunca deixou de investigar: "É uma história praticamente nova que estamos a ler, porque, embora conheçamos os pontos fundamentais, todo o interior dessa história esteve oculto durante muitos anos nos arquivos de Moscovo. Uma parte importante desses documentos foi sendo trabalhada, divulgada e publicada. Mas como não leio russo tinha de esperar que a informação fosse publicada em inglês ou em espanhol para poder consultar os livros. Esse processo também me atrasou a escrita porque tive de rectificar muitos elementos ou aumentá-los, já que estava a trabalhar num romance histórico."

À medida que ia investigando, Leonardo Padura foi surpreendido por três coisas. Primeiro, os números. Sabia que Estaline tinha deportado muitas pessoas e que nos campos de trabalho muitos tinham morrido, mas sentiu-se horrorizado porque os números se iam multiplicando e eram cada vez mais: mil, centenas de milhar, milhões de vítimas. A segunda coisa que o surpreendeu foi sentir, em todas as personagens desta história, um sentimento de terror, que considera ter sido um dos elementos que Estaline utilizou para aglutinar e governar a União Soviética. E a terceira, talvez "o mais importante de tudo", foi uma mudança total da visão que o escritor cubano tinha do que aconteceu na Guerra Civil Espanhola. "Eu tinha uma visão muito particular da Guerra Civil Espanhola escrita pelo lado republicano, pelos comunistas do lado republicano. Quando se revela uma série de documentos, fica a entender-se como é que estes comunistas espanhóis foram manipulados, governados, dirigidos pelos assessores soviéticos e pelos assessores da Internacional Comunista."

Ficção e dramatismo

No romance histórico que Leonardo Padura acabou por escrever existem três personagens, protagonistas de cada uma das histórias: Trótski (conta-se a sua vida no exílio até à morte), Ramón Mercader (o homem que preparou e cometeu o assassinato de Trótski) e uma personagem completamente inventada por Padura, um cubano que se chama Iván e que reúne todos os elementos desta história e a entrega ao leitor. Estas três personagens têm um carácter completamente distinto. Trótski é uma personagem com uma biografia muito conhecida e todos os acontecimentos de que se fala no livro partem de uma investigação histórica: os incêndios, a morte dos filhos, os lugares onde viveu, é tudo real. No caso de Ramón Mercader, em "O Homem que Gostava de Cães" está contada praticamente toda a sua história conhecida. Mas como aquilo que se conhece sobre este homem não era suficiente para criar a personagem, Padura integrou no livro uma série de elementos de ficção (por exemplo, o momento em que ele é preparado para cometer o assassinato). E quanto a Iván, o cubano aspirante a escritor, é uma personagem de ficção mas corresponde a uma realidade, a uma história, à história possível de um cidadão cubano que quis ser escritor nos anos 70 e 80.

Leonardo Padura é fundamentalmente um escritor, apesar de fazer investigações históricas e literárias. Gosta de utilizar a História como componente da ficção porque acredita que "a ficção é capaz de realçar a parte mais dramática da História". "É muito complicado escrever romances históricos no sentido em que os acontecimentos da realidade têm a sua própria dramaturgia e os acontecimentos da literatura têm de ter a sua - que é diferente. Têm leis diferentes. A realidade é realidade, a ficção é ficção, e comportam-se de maneiras dramaticamente diferentes. É complicado tratar o romance histórico tentando ter um respeito pelos factos reais."

Por isso recorreu a um recurso romanesco para contar a História. "A História ocorre paralelamente. Enquanto acontece uma coisa em Portugal, está a acontecer outra coisa no Líbano e há um congresso a decorrer em Cuba em que se está a decidir qual vai ser o futuro do país. No romance, este recurso das histórias paralelas tem a função de suster o desenvolvimento dramático e estrutural de uma história que tem para o escritor um problema fundamental: é que o eixo mais importante do livro é o assassinato de Trótski. E antes de começares a ler o livro já sabes que Trótski foi assassinado no México por Ramón Mercader. Eu tinha que fazer com que isto resultasse interessante para o leitor. Por isso utilizei vários recursos literários, entre eles essa estrutura paralela para que o leitor sinta que a informação não lhe chega toda ao mesmo tempo e que tem de continuar a ler para conseguir chegar a ela."

Na primeira versão que Leonardo Padura escreveu de "O Homem que Gostava de Cães", todas as linhas relativas a Trótski estavam na primeira pessoa. "Queria que o leitor se sentisse o mais próximo possível desta personagem histórica tão complicada e tão esquiva. Depois de ter escrito mais de 200 páginas, dei-me conta de que realmente era incapaz de expressar o pensamento de um revolucionário russo do princípio do século, um homem fanático pelas suas ideias políticas, um homem de cultura judaica e europeia, que viveu uma época e situações históricas diferentes das minhas. Ao narrá-lo na primeira pessoa, não ia conseguir expressar quem era Trótski. Portanto tive de refazer tudo e mudar a sua voz para a terceira pessoa."

No caso de Ramón Mercader, encontrou a solução mais rapidamente. "Mercader não pode contar a sua história. Tem de contar a sua história a alguém e é por isso que há um narrador. Como é uma história que originalmente está contada pelo próprio Ramón Mercader, utilizei uma linguagem mais próxima do espanhol da Península Ibérica. No caso de Iván, o homem que reúne toda esta história e que a expressa, a primeira pessoa pareceu-me a mais adequada. E para mim era muito fácil, porque era um pouco como se eu estivesse a escrever sobre mim."

O lado humano  do assassino

Esta é uma história é feita por homens, mas as personagens femininas, ainda que secundárias, são determinantes nas suas escolhas. "É muito difícil que um homem possa executar alguma coisa se não tiver a seu lado uma mulher. Muitas vezes, ao contarmos a história, esquecemo-nos disso. Nos romances policiais desenvolveu-se muito o herói solitário que vai pela cidade, já meio escura, e a percorre com a solidão às costas. A mim interessa-me muito a relação dos homens com determinadas mulheres, como estas os influenciam, como os ajudam."

Neste caso, historicamente, houve duas mulheres que tiveram uma importância muito forte na formação de Ramón Mercader. De um lado, a sua mãe, Caridad del Río, "uma personagem fascinante, detestável, admirável, repudiante". De outro, África de las Heras, cuja relação com Mercader está exagerada romanescamente. Mas ela existiu realmente, participou na Guerra Civil Espanhola e foi durante anos agente do KGB.

No caso de Trótski, a companhia da mulher, Natália, foi fundamental em todo o processo do exílio, e houve outras que entraram na sua vida, como Frida Kahlo. No caso de Iván, é quando conhece Ana que descobre que a felicidade é possível no meio da maior pobreza e da maior miséria.

Que todos os assassinos têm um lado humano não é novidade. Quem leu "A Sangue Frio", de Truman Capote, não escapa a uma certa compaixão por um homem que matou a sangue frio quatro pessoas. E o título "O Homem que Gostava de Cães" foi "roubado" por Leonardo Padura de um conto escrito por Raymond Chandler onde há um assassino a soldo que ama os cães. "Chandler escolhe este elemento para dizer que um assassino é capaz de fazer festas a um cão e de amar esse cão. Utilizo-o como metáfora da possível união destas três personagens tão diferentes umas das outras: um homem que fez a História [Trótski], um homem que entrou na História porque o matou [Ramón Mercader] e um homem que sofre a História [Iván]."

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