O pão casher é muito mais que pão

Foto

Há já vários produtos casher feitos em Portugal. Vinho, sumos, azeite, queijo e até alheiras. António Marujo (texto) e Paulo Pimenta (fotos) foram ver como se faz o pão consumido pelos judeus de Belmonte. E descobriram os sentidos escondidos da alimentação casher

Tome-se uma vulgar receita de pão, acrescente-se-lhe as mãos e o olhar de um rabino judeu e teremos como resultado um delicioso pão casher.

Para cozinhar um pão, é esta a receita: meia colher de chá de sal; meia colher de sopa de açúcar; quatro a cinco xícaras de farinha; quinze gramas de fermento biológico; meia xícara de água morna; meia xícara de azeite; um ovo. Se se quiser que o pão saia levemente adocicado, adiciona-se meia xícara de mel.

Quando sai cozido do forno da panificação de José Alves Paulo, em Belmonte, o pão já não é apenas pão. Quando for saboreado, será muito mais que pão.

"Uma pessoa pode subsistir a pão e água; mas se lhe tirarmos isso, tudo se complica", diz o rabino Elisha Salas, da Comunidade Judaica de Belmonte. No caso do judaísmo, o ritual da comida casher (casher e não kosher? - já lá iremos) acrescenta um sentido à necessidade da alimentação: "O judaísmo não tem lugares sagrados, mas tem momentos sagrados."

O mais importante, de ritmo semanal, é o Sabat. Ao sábado, desliga-se a televisão, a rádio, o telemóvel, guarda-se o dia para a família. O pão e o vinho participam desses "momentos íntimos, religiosos, com a família e os amigos". Para distinguir o momento comum do tempo sagrado, faz-se o kidhush, uma breve oração de santificação em que se utiliza vinho, explica o rabino Salas, chileno, de 53 anos, que está em Belmonte desde 2009, depois de uma primeira experiência em 2003-04.

O casherut, conjunto das regras da dieta judaica, regula todos os processos e ingredientes que entram na confecção dos alimentos. "Mas tem também um aspecto espiritual, o de afirmar que somos alma e corpo."

Como se procede então para que determinado alimento seja casher? Tudo depende do que se está a falar, mas há algumas regras básicas. Entre elas: no abate de animais, tenta-se que o animal sofra o menos possível; misturar carne com leite é interdito; deve evitar-se que haja impurezas na confecção de qualquer produto.

A preparação do vinho, por ser o produto que mais participa nos momentos sagrados, tem que ser acompanhada sempre por judeus. Desde a recepção da uva até ao engarrafamento.

Essa é uma das razões para tornar mais caro o Terras de Belmonte Kosher, da Adega Cooperativa da Covilhã. A outra é porque a identificação casher tem que ser certificada por uma entidade reconhecida para tal.

À procura de mercados

Parêntesis, então: casher (lê-se "cashér") é o termo usado desde há séculos pelos judeus sefarditas, da Península Ibérica; deve ser, por isso, o termo utilizado em português. Kosher (lê-se "kósher") é usado nos países anglo-saxónicos e é empregado por várias empresas portuguesas para penetrar em mercados de exportação.

O vinho casher fica mais caro, porque o seu manuseamento é feito por judeus. São eles que pegam em tudo, desde o tractor até aos utensílios, explica Francisco Soares, engenheiro agrónomo e presidente da direcção da Adega da Covilhã. Aqui, já houve três colheitas de tinto com produção casher - 2003, 2005 e 2010 (17.500 litros produzidos).

Há duas semanas, foi apresentado o primeiro vinho branco: aproximadamente cinco mil litros e seis mil garrafas, cada uma das quais vendida a cerca de dez euros - para já, em alguns supermercados. Mas o vinho já foi também divulgado no Canadá, Brasil e Estados Unidos. A esperança de Francisco Soares está nos mercados de exportação.

Também a Félix Rocha Vinhos, de Alenquer, tem já mercados abertos na Alemanha, França e Estados Unidos. Em 2010, diz Paulo Rocha, a colheita deu 30 mil litros. Antes, tinha havido produção de tinto em 2004 e de branco em 2005.

Apesar de recente, a produção casher portuguesa tem já outros produtos: sumos de fruta, queijo, azeite, abate de carne. Neste último caso, a Herdade do Pomarinho começou a fazer abates casher em Junho de 2009. Mas, para já, a carne é apenas destinada às comunidades e a judeus de Lisboa, Belmonte, Algarve e Alcobaça.

"As encomendas são feitas pelos próprios clientes", explica Isabel Monteiro, da Pomarinho. A carteira de clientes tem crescido. Para já, como a carne ainda não é vendida em talhos ou supermercados, não há custos de certificação, já que o trabalho é acompanhado pelo rabino Eliezer di Martino, da Comunidade Judaica de Lisboa. Já neste ano, a empresa experimentou fazer alheiras de vitela. "Foram bem sucedidas" e já há exportação para Inglaterra.

Eduardo Leal, um dos administradores da Penazeites, de Penamacor, diz que o azeite Ribeiro Sanches Kosher também se destina sobretudo à exportação - Estados Unidos, Israel, Europa de Leste. O nome homenageia o médico e intelectual enciclopedista originário da região, que morreu em Paris em 1783. A produção começou há cinco anos, o volume de vendas ainda não justificou o investimento. Mas o responsável acredita na abertura de outros mercados.

Na Heart Experience, de Tomar, a produção de azeite também foi iniciada este ano. Mas esta empresa da área turística, explica o seu director executivo Arnaldo Rivotti, pretende fazer uma oferta integrada de vários produtos casher e de outras potencialidades da rota judaica da região.

"Tudo encadeado"

Quando começou a amassar pão, aos 12 anos, José Alves Paulo, hoje com 60, nunca imaginou que um rabino judeu lhe iria propor um dia que também fizesse pão casher na sua panificação. Aceitou a ideia e acha que tem valido a pena.

Desde há pouco mais de um mês, às quatro da manhã de quinta-feira, o rabino Salas desloca-se à padaria para acompanhar o processo. E não só: é ele quem parte os ovos, para conferir que não há vestígio de impurezas ou pinta de sangue - neste caso, o ovo é mesmo excluído, pois essa pinta de sangue "pode ser um pintainho que vai nascer".

O processo fica depois nas mãos do padeiro. "Não lhe posso ensinar nada, só me interessa que as regras religiosas sejam asseguradas", diz o rabino. José Alves Paulo bate os ovos, passa a farinha pela peneira - enquanto o rabino confere também se não passa qualquer impureza. "De forma geral, a farinha está limpa, mas a minha função é que não se esqueça nenhum procedimento", explica o rabino.

Quatro quilos de farinha e uma dúzia de ovos são amassados pela máquina. Junta-se o azeite e o mel enquanto o fermento é deixado em água morna. Junta-se água. Só depois de o fermento estar amolecido é que é posto na massa, misturada de novo durante uns 10 a 15 minutos. E deixada a descansar.

Não sem que, antes, o rabino pronuncie uma pequena oração de bênção. E coloque, depois, um toro de madeira no fogo que irá cozer o pão. "Para o judeu, é vital quem faz o fogo. Trata-se de participar em todo o processo, é uma atitude espiritual."

Falta ainda dividir a massa e pesá-la em pedaços de 380 gramas cada. Faz-se uma bola, que depois é esticada, para a seguir ser partida em três tiras e entrelaçada. A massa dá para 19 pães. No final, cada um ficará com cerca de 340 gramas, que será vendido a três euros cada. Tendo em conta que, em Israel, há uma grande produção e o preço normal é de dois euros, o rabino acha que o preço em Belmonte é razoável.

A massa fica a levedar durante uma hora. "Se descansar o suficiente, o pão durará dois a três dias sem perder qualidade." Só depois irá ao forno durante meia hora. No final, o rabino coloca sementes de sésamo e cada pão é pincelado com um pouco de mel, uma vez que esta fornada é de pão doce.

O processo, explica Elisha Salas, culminará num momento especial. "A produção continua no momento em que a família se junta para jantar e, no final, agradecer. Está tudo encadeado."

Quando o pão é saboreado, é muito mais que pão.

Veja a fotogaleria de Paulo Pimenta em

fugas.publico.pt

Sugerir correcção