"Os partidos e o Governo têm muita culpa pelo que fazem da RTP"Entrevista Paquete de Oliveira

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daniel rocha

Não quis que o provedor fosse usado como "muro das lamentações" e prefere falar de "mensagens" dos telespectadores e não de "queixas". Depois de Paquete de Oliveira ter batido com a porta, a RTP ainda não o substituiu.

O único provedor do telespectador da RTP bateu com a porta no início do mês. Um ano depois de ter terminado oficialmente o seu segundo mandato. Cinco anos depois de ter ocupado o cargo. O sociólogo José Paquete de Oliveira queixa-se de que o actual Conselho de Administração (CA) da RTP está apenas preocupado com as audiências e as finanças, ao mesmo tempo que comenta a saída de José Alberto Carvalho e Judite de Sousa para a TVI - "foi uma bomba que rebentou ali"-, o caso Marcelo e o peso simbólico do Estado e do Governo na estação pública.

O ex-provedor - cargo ainda por ocupar, depois de o Conselho de Opinião (CO) ter vetado o nome de Felisbela Lopes - sente que o cargo é, sobretudo, uma forma de descansar consciências.

Na conversa com o P2, e com o relatório de 2010 sempre na mão, preferiu falar em "mensagens" dos telespectadores do que em "queixas". Recordou que a política, o futebol, mas também questões de moral conservadora levantadas pelos programas de humor foram os principais eixos das mensagens do público, sobretudo instigado por Prós e Contras e Trio d"Ataque. Paquete de Oliveira quis "cortar com a ideia de o provedor ser o muro das lamentações" e faz um balanço "misto" do mandato.

Crê que o público português se revê na RTP que tem?

O escrutínio muito maior que é feito sobre a RTP do que sobre os outros canais significa que o público ainda se revê naquela televisão. Mas, para grande parte do público, a RTP é igual às outras [canais comerciais, privados]. Posso defender por que é que acho que não é, mas é a própria RTP que tem responsabilidade por ser isso. O que deriva sobretudo de aspectos da sua política informativa e programativa. A RTP, por ser pública, tem de ter bem claros, bem evidenciados, os "sinais distintivos" de serviço público. Quando a RTP1 tem programas com sinais distintivos, esconde-os ou trata-os mal. Programas como B.I. ou Nós dão ao domingo ou ao sábado de manhã.

Porquê?

Obviamente que há o problema das audiências. Não sou defensor de que a televisão pública não deve ter público, porque se não tem público é melhor fechar, não tem sentido. É preciso haver uma gestão bem combinada entre os programas distintivos e os outros.

A interacção com o provedor é interessante - como li no livro do provedor do New York Times, mesmo que emendem algo nunca vão dizer que foi por causa do provedor. Várias vezes discuti com o José Alberto Carvalho a duração do Telejornal e depois passou a acabar sempre às 21h00. Estas pequenas modificações acontecem. Os produtores do Portugueses no Mundo diziam-me que foi depois de eu falar que fixaram o horário na grelha... Mesmo o Prós e Contras, tido como um programa-tipo de serviço público: das poucas coisas de que tenho consciência que consegui alterar foi o seu horário e duração.

Os horários eram, aliás, uma das grandes queixas sobre a RTP...

Foi um dos meus grandes combates do primeiro ano. O não cumprimento de horários tinha o maior número de queixas dos telespectadores. Mas aí houve uma determinação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). Hoje há um melhor cumprimento de horários e tanto é assim que diminuíram as queixas.

Perguntámos se o público se revia na RTP que tem. E acha que a RTP trabalha para o público que tem, ou para o público que pensa que tem?

Todas as televisões trabalham para o público que acham que têm (risos). Eu julgo que a RTP trabalha um pouco também para os critérios do público que tem. Choca-me ouvir dizer que a audiência de televisão da RTP é uma audiência velha, dos 35-45 anos para cima. É evidente que esse é um problema geral: as classes etárias mais jovens consomem muito mais televisão na Internet. Como provedor, fui muito acusado por defender o 5 para a Meia-Noite, mas acho que é uma lança em África no sentido de captar um público mais jovem. E é um caso de estudo, porque acho que têm mais audiência através da Net e das redes sociais do que no visionamento directo. Mas toda aquela ideia que a RTP tem de fazer televisão para a família é muito discutível.

Acha que a RTP está demasiado envolvida na guerra das audiências?

Quando vejo o presidente do CA [Guilherme Costa], numa reunião pública no Palácio Foz [em Lisboa], e vejo que o sucesso da gestão dele é o vector das audiências e o vector de a televisão ter dado lucro... Se houve um critério para dizer que houve sucesso, é o critério das audiências.

Tem de haver preocupação com as audiências, não se pode estar a fazer televisão para um nicho, sobretudo com a oferta que existe [na TV por subscrição]. Mas com preocupação com o serviço público - longe de mim dizer que a televisão tem de ser a educadora do povo, isso é a função da escola e de outras instituições -, a televisão pública será sempre responsável pela tal distinção e pela qualidade do seu produto. Aí julgo que há a rever algumas estratégias.

A RTP está sujeita a um escrutínio extra - no caso da informação, a governamentalização é um fantasma constante, sobretudo numa altura de mudanças nas redacções e no poder político. Como é que vê a realidade nos corredores da RTP?

Nunca constatei, nem tenho qualquer testemunho para comprovar, interferências. Nas reuniões que tinha [com a direcção de informação] quase me juravam a pés juntos que não havia interferência. Quer se queira, quer não, a RTP tem marcado no seu ADN um estigma, por ser a televisão do Estado, de ser a televisão da voz do dono. Quer esteja o Governo amarelo, azul, verde, será sempre assim, enquanto não conseguirem praticar uma política bastante frontal para conquistar o público, por outro lado, demonstrando por A+B que não são assim. Nem sequer é, em quantidade, que a presença de ministros ou secretários de Estado seja maior na RTP do que numa SIC Notícias ou noutros canais. Mas os partidos e o Governo têm muita culpa pelo que fazem da televisão pública. Vivi quatro anos em Itália, mas nunca vi os telejornais com uma tal carga de informação da política partidária. Se me perguntarem sinceramente o que leva o José Alberto Carvalho a sair da RTP, ele muitas vezes, falando comigo, inflectia [sobre] a subjugação, o escrutínio a que estava sujeito...

Era uma pergunta inevitável e várias motivações ali pesaram.

É evidente que se eles [José Alberto Carvalho e Judite de Sousa] saíram foi por terem melhor proposta. E é evidente que pode ser aliciante, neste período da vida deles, trabalhar com uma televisão que não é pública. O José Alberto Carvalho defendia muito que era jornalista, obrigado aos códigos do jornalista, da deontologia, e que estar na televisão pública ou na privada era igual, mas o massacre de trabalhar ali...

O comentador Marcelo Rebelo de Sousa também regressou à TVI em 2010... O que achou do caso?

No relatório do ano passado tive uma posição muito clara: a RTP devia ter procurado por todos os meios evitar que Marcelo saísse. Julgo que, intimamente, o próprio Marcelo não queria sair. Uma coisa é estar no púlpito oficial [com o programa As Escolhas de Marcelo, 2005-10], outra é estar num púlpito que não tem propósitos oficiais. Eu disse à RTP que devia estudar a audiência que o Marcelo tinha na RTP e a que tem na TVI, não obstante a TVI ser o canal líder - por via das telenovelas e outros programas.

E quando se diz uma coisa na televisão pública, tem um efeito que não tem numa estação onde pode dizer-se tudo. Estrategicamente, acho que houve um certo erro de avaliação do José Alberto Carvalho [então director de Informação da RTP]. António Vitorino [que abandonou o seu programa, Notas Soltas] devia ter sido substituído.

Faz sentido existirem canais de serviço público na TV por subscrição, como a RTP Memória ou a RTP-N?

O público protestava por esses canais lhes estarem vedados. Acho que numa linha política não faz sentido. Com a TDT [Televisão Digital Terrestre] isso pode ser alterado, embora se calhar haja outras políticas que vão alterar isso, num contexto do ponto de vista económico.

Em que é que este contexto pode afectar, por exemplo, a RTP2, cuja directora dizia, em 2010, que abaixo de um limiar mínimo de audiências, o canal tinha de ser repensado?

É um problema que vai ter de se pôr pelas próprias contingências do momento que se vive. A 2 pode ser vista como um canal de maior qualidade, mas também tem conteúdos que não sei se fazem a obrigação do serviço público. Um dos programas de boa audiência da 2 são as séries internacionais - o serviço público tem o direito de divertir com entretenimento com qualidade, o que se pode discutir é porque é que estão na 2 e não na 1, como se pode discutir porque é que o 5 para a MeiaNoite está na 2. Acho que a filosofia programativa da complementaridade entre a 1 e a 2 tem de ser revista, e vai obviamente ser pensada segundo os ditames políticos.

Também há que dizer que foi sobre a 2 que recebi mais elogios [no cargo de provedor]. O público literato considera a informação da 2 melhor. Também me bati por um serviço informativo nocturno em canal aberto - porque quem não tem cabo, depois das 20h00 não tem informação. É verdade há informação na 2 às 22h00, mas, para muita gente, os programas da 2 não existem. Como serviço público, devia haver um jornal de última hora, por mais reduzido que fosse.

Com o pedido de ajuda financeira externa para o Estado português, parecem inevitáveis as privatizações. O PSD há muito propala a vontade de privatizar a RTP. Acha que agora a possibilidade ganha mais força?

Penso que o momento actual pode ser o factor determinante. Mais até do que uma previsível mudança de partido na condução do país. Historicamente, muitos partidos jogaram para a opinião pública a ideia de privatização quando estão fora da governação; quando chegam lá, repensam. Por outro lado, estamos a falar de uma grande empresa com dois mil e tal funcionários. As incógnitas são mais do que as certezas.

Avisou que sairia da RTP com a aprovação da Lei da Televisão no Parlamento, que podia ter criado nova forma de escolha do provedor mas que manteve o actual formato, e ainda assim não tem sucessor.

Na Lei da Televisão havia uma proposta para modificar o procedimento da aprovação do provedor - a sugestão de três nomes pelo CO, dos quais o CA escolheria um. Eu, que não fui tido nem achado, achei que era o fim da macacada. Primeiro, três nomes - se aconteceu aquilo que aconteceu com a Felisbela [Lopes, que se retirou do processo de indigitação pelo CA, em Setembro, depois de o CO ter recusado apresentar as gravações da sua audição com o órgão], quais são os três nomes que se sujeitam a isto? Por outro lado, se o sentido da lei é proteger a independência do provedor, se a escolha final é do CA, essa pessoa mais acusada será. Quando soube o que a lei dizia [que se mantém o esquema actual de nomeação pelo CA e parecer posterior do CO], escrevi a carta: já não fazia sentido ficar, há um ano que estava neste prolongamento, os senhores façam favor, decidam. Nunca me disseram nada. A administração só agiu quando a imprensa falou.

O cargo parece condenado a uma certa inconsequência interna?

A minha experiência é que não era tanto o que eu dizia nos programas que atormentava a administração. Quando o tema se falava nos jornais era capaz de ter logo uma chamada a dizer "Estamos a tratar disto". O que é interessante...

Apesar de tudo, devo dizer que o Almerindo Marques [anterior presidente do CA] levou mais a sério os meus primeiros relatórios do que a actual administração. E uma das razões pelas quais saí é que isto estava a jogar contra a função, contra o seu estatuto. Às vezes sinto que o Governo criou a função do provedor só para resolver problemas de má consciência (risos). Uma das coisas sobre que me interrogo sempre é qual é a eficácia disto. E sobretudo se a eficácia vale o posto, e contra mim falo. Mas isso é o problema de todos os provedores.

Qual acha que será o futuro do cargo?

Vai passar por vários problemas, o que vai ser a televisão pública face ao contexto do país e face à política do novo Governo. Esta figura institucional do provedor revela uma certa má consciência dos governos, que têm de garantir a liberdade de informação, mas se calhar já não sabem bem como. O provedor só tem razão de ser se é um representante do cidadão. Acho que no serviço público, e se vai continuar serviço público, é melhor ter um provedor, um interlocutor. Como eu dizia, muitas vezes, pelo menos que o provedor funcione como os das grandes multinacionais, que seja ouvido para que a qualidade do produto oferecido seja melhor.

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