Uma Cinemateca refém de um país

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Miguel Silva/PÚBLICO

Depois do cancelamento inédito de treze sessões na programação de Março da Cinemateca Portuguesa devido a uma portaria do Ministério das Finanças que impede o transporte e legendagem de películas, as piores suspeitas vieram a confirmar-se no final desse mês. A Cinemateca veio a comunicar que a sua actividade para Abril reduzir-se-ia de cinco para três sessões diárias, implicando o fecho de uma das suas duas salas. Do mesmo modo, é posta em cheque a possibilidade de colaborações mais alargadas com outras associações e festivais que definem o panorama da programação cinematográfica de um país altamente vedado a uma distribuição diversificada nas suas propostas. De uma Cinemateca com duas salas para os seus filmes e para os filmes dos outros ficamos com uma sala na honorável Rua Barata Salgueiro, em Lisboa, debaixo de uma nuvem de incerteza quanto ao futuro.

O relativo silêncio que rodeia este ataque das mais altas instituições do poder executivo à actividade daquela que será das suas mais eficientes instituições revela outro sinal preocupante: a indiferença quanto a um progressivo estado de degradação de uma classe política que sucessivamente entrega o país a um empobrecimento não apenas financeiro mas da parte mais profunda do nosso desenvolvimento - o enriquecimento cultural. Se este Governo não será o único responsável pelo eterno caminho de desperdício em que Portugal repetidamente cai na história da gestão dos seus recursos, essa ruína deve-se, sobretudo, a uma classe política que não vê a cultura como potencial para um desenvolvimento sustentável a longo prazo dos seus cidadãos mas apenas como soma de conteúdos destinada a ser cortada para um hipotético enriquecimento financeiro a curto-prazo exigido como resposta à incompetente gestão da nossa tesouraria. Assim, pior que o espanto de se achar que o impedimento da exibição de filmes pela Cinemateca poderá salvar Portugal da bancarrota será a incapacidade de compreender o reverso desta medida: a censura de um serviço público exclusivamente suportado pela Cinemateca (visto que a televisão pública não o cumpre) sobre uma parte essencial da compreensão e uso das imagens que alimentam e produzem o nosso pensamento.

Mas para uma classe política que recusa assentar o nosso desenvolvimento numa estratégia de crescimento a longo prazo não se poderá esperar outro sinal a não ser o desapreço por locais de crescimento e de aprendizagem tão essenciais como a Cinemateca. Do mesmo modo, uma passagem pela presente edição do festival Panorama bastaria para compreender, entre os documentários das agitações pós-revolucionárias do nosso país, alguns dos eternos problemas e decisões que assolam a nossa democracia e que mostram como o seu modelo de desenvolvimento, assente no favorecimento da ignorância e da falta de aprendizagem cultural de governantes e governados, mantém-se como a base dos problemas que assolam o regime e corrompem o progresso da nossa população.

Fosse uma estratégia para o país feita a partir do enriquecimento de ideias e culturas como as que nos são apresentadas pela Cinemateca e pelo cinema - arte da compreensão dos progressos e falhanços da nossa história -, e estaríamos, seguramente, melhor entregues.

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