E a porta começou a abrir-se

a António Ribeiro. Pedro Cunha. Rosa Maria. Três nomes que saltam à memória, quando a palavra Trumps é pronunciada. Rosa Maria, a dona do Trumps, a cara do Trumps, senhora que marcou o início da década de 80 em Lisboa. Conhecidos antes e fora do Trumps, quer o António, que lá se estreou como Variações, quer o Pedro, um homem raro, culto e sensível, um pensador e um poeta, que entre mil coisas foi também porteiro do Trumps e que a sida matou precocemente, são nomes que não deixam de estar associados ao Trumps.

Até porque são, a seu modo, duas figuras representativas do que era o universo homossexual de Lisboa naquela época. O universo homossexual de elite social e cultural, que esteve na fronteira da transição para a identidade gay em Portugal. É que o Trumps é isso: uma fronteira, uma ruptura, um marco na mudança no que é a noite homossexual lisboeta.

O Trumps é o primeiro sítio na noite homo que não é um lugar apenas estigmatizado. Não é igual aos que havia até aí, lugares mais ou menos guetizados, mas todos absolutamente estigmatizados, enquanto espaço de encontro de homossexuais. Claro que isso acontece não pelo Trumps em si, mas pelo que ele simboliza do que foi o momento histórico de democratização da sociedade portuguesa, há 30 anos. Resultando na revisão do Código Penal de 1982, em que a homossexualidade deixa de ser crime em Portugal, vivem-se então acontecimentos como os Encontros Ser (homo)sexual, organizados, em 1982, por Helena Vaz da Silva, Isabel Leiria e José Calisto.

Não era ainda a fase da luta pela conquista de direitos para gays, lésbicas, transexuais e trangéneros. Mas a construção de identidade gay começa então a mostrar querer caminhar na sociedade portuguesa pela mão da geração que nasceu para a idade adulta com o 25 de Abril, a geração do António e do Pedro e de muitos outros que não corporizaram a fase posterior de luta por direitos, porque a sida ou o consumo de drogas os levou cedo de mais.

Para as gerações mais novas que hoje vivem a sua sexualidade numa sociedade mais democrática, que podem casar-se com pessoas do mesmo sexo, que podem passear de mão dada e beijar em público os seus namorados ou namoradas do mesmo sexo, que frequentam, por exemplo, em Lisboa, no Bairro Alto e no Príncipe Real, espaços gay ou gay friendly, quer para gays, quer para lésbicas, é difícil perceber o que era o mundo homo português até ao Trumps.

Um mundo em que as lésbicas se reservavam ao espaço estigmatizado do Memorial, ou estavam escondidas na invisibilidade das festas particulares, das casas privadas, dos hotéis e dos passeios de automóvel. E em que os homens homossexuais estavam reduzidos e contidos em espaços como o elitista Bric-a-bar - apenas mais discreto e glamouroso porque frequentado pelas upper classes, mas tão estigmatizado como eram locais de bas-fond como a Cervejaria Reimar.

Para quem tem menos de 40 anos e hoje circula com as namoradas ou os namorados por sítios como o Estrela da Bica, o Bota Alta, o Maria Lisboa, o Purex, o Salto Alto, o Woof, o já velhinho Finalmente, e, claro, o Trumps de hoje, é difícil ou mesmo impossível imaginar o que era o mundo em que a homossexualidade era crime e doença.

Esse mundo que nasceu em Portugal com a I República, ao ser introduzida na Lei sobre a Mendicidade, em 1912, a penalização criminal da "prática de vícios contra a natureza", essa versão jurídica da doença homossexualidade, cuja tipificação em Portugal foi feita, propagandeada e ensinada por médicos como Egas Moniz, Adelino Silva, Arlindo Camillo Monteiro e Asdrúbal António d"Aguiar. Até então e desde a adopção do primeiro Código Penal, aprovado em 1852, a sodomia era punida enquanto atentado ao pudor, tal como qualquer acto sexual em público, fosse entre pessoas do mesmo ou de sexos diferentes.

As relações afectivas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo passaram a ser perseguidas em moldes estatais civis. E a sexualidade foi roubada ao domínio de Deus - onde era condenado o pecado da sodomia - e em que a homossexualidade passa a ser vista como desvio ao modelo dominante de família nuclear burguesa, heterossexual e procriativa.

Uma nova moral social vai-se instalando, até aos anos de chumbo da década de 50, enquadrando ideologicamente a mentalidade e o movimento social que vai tornando invisíveis as lésbicas e empurrando para guetos os homossexuais. Guetos esses que vão desde lugares públicos como estações de comboio ou urinóis, até ao Bar Z, na Rua de São Pedro de Alcântara.

O Z foi o primeiro bar homo português nascido no início dos anos 60 - mais tarde passou a chamar Harry"s -, seguido por outros espaços estigmatizados e guetizados, frequentados por elites sociais e culturais lisboetas. Até que, há 30 anos, o Trumps sinalizou que, em Lisboa, os homossexuais começavam a assumir-se como lésbicas e gays. O Trumps é, portanto, o momento do início do coming out, quando, em Portugal, se começa a entreabrir a porta do armário.

Jornalista (sao.jose.almeida?@publico.pt)

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