Islandeses ameaçam dizer "não" aos credores pela segunda vez

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Contra o pagamento da dívida, em nome de "um futuro humano" BOB STRONG/REUTERS

Qual David contra Golias, a ilha de 320 mil habitantes revolta-se contra os governos que a querem fazer pagar pela irresponsabilidade dos bancos. Talvez tenha razão

Esqueçam as manifestações violentas nas ruas de Atenas, a nuvem negra que cobria o rosto do ex-primeiro-ministro irlandês ao anunciar que o seu país se rendia a pedir a ajuda para a qual as agências financeiras o estavam a impelir. Podemos até pôr de parte, por momentos, a nossa Geração à Rasca. A revolta, na Europa, vem de uma ilha perto do Árctico, a Islândia, que se prepara, provavelmente, para rejeitar hoje pela segunda vez um acordo para reembolsar o Reino Unido e a Holanda do dinheiro que pagaram aos seus cidadãos que investiram na conta Icesave.

Uma sondagem publicada quinta-feira pela Capacent Gallup dava o "não" com 52 por cento, e outra pelo jornal Frettabladid com 54,8, diz a agência Bloomberg. A 6 de Abril, o canal 2 da televisão islandesa apontava para um resultado de 56,8 para o "não". Nenhuma destas sondagens apresentava as margens de erro.

Muitos islandeses estão zangados por terem de ser os contribuintes a pagar pelo comportamento irresponsável dos bancos. "Na semana passada, tinha-me decidido a votar no "sim", mas agora vou votar "não"", disse à Reuters Bragi Baldvinsson, um engenheiro de aeronaves de 42 anos.

Do que se fala é do caso da conta de poupança online Icesave, comercializada agressivamente no Reino Unido e na Holanda pelo banco Landsbanki - que foi o segundo maior da Islândia -, prometendo juros acima de seis por cento. Cerca de 400 mil investidores depositaram lá o seu dinheiro e, em 2008, quando os três maiores bancos islandeses faliram, não conseguiram reavê-lo.

O sector financeiro islandês cresceu como uma bola de sabão, expandindo-se para o estrangeiro, durante o boom do crédito: chegou a ser 11 vezes maior do que a economia do país, adianta a Reuters. Estes bancos eram demasiado grandes para serem salvos pelo Estado - a Islândia distingue-se por ter sido o país que deixou os seus bancos falir. Apenas conseguiu garantir os depósitos nacionais, quando o país se transformou no primeiro da Europa Ocidental a ter de pedir ajuda ao Fundo Monetário Internacional na actual crise.

Os depósitos de estrangeiros foram reembolsados pelos respectivos governos - 3,9 mil milhões de euros -, que agora os querem cobrar a Reiquejavique. O acordo que poderá ser rejeitado permite escalonar o pagamento da dívida até 2045, com uma taxa de juro de 3,3 por cento ao Reino Unido e de três por cento no caso da Holanda. Uma parte será paga com a venda dos activos do Landsbanki, mas não se sabe ainda quanto será - embora os partidários do "não" defendam que deveria chegar para o reembolso.

Governos e mercados

Os partidários do "não", que têm como principal porta-voz o siteadvice.is, citam editoriais e comentadores do Wall Street Journal e do Financial Times para justificar a sua posição. Um exemplo do jornal britânico, de Dezembro de 2010: "A Holanda e o Reino Unido vão manter reféns os contribuintes islandeses até recuperarem o seus custos. (...) Neste caso, a necessidade de garantias não tem grande sustentação legal e muito menos em termos de justiça: estes governos nunca honrariam a exigência de pagamentos equivalentes a um terço da sua produção económica anual se um dos seus bancos falisse".

Defende-se que os seguros de depósito seguidos pela banca islandesa seguiam a legislação da União Europeia antes do colapso do sistema financeiro - que não exige uma garantia soberana (assegurada pelo Governo). Portanto, a exigência da Holanda e do Reino Unido de compensação pela despesa que tiveram com os seus cidadãos que investiram na Icesave não tem "mérito legal na lei islandesa ou europeia".

O clima na Islândia tornou-se agreste para banqueiros. Há um ano, um outro acordo, ainda menos favorável, tinha sido rejeitado com uma esmagadora maioria (93 por cento): previa uma taxa de juro de 5,5 por cento e o pagamento em 15 anos. Em 2010, tal como em 2011, o acordo foi enviado para referendo pelo Presidente da República, Ólafujr Ragnar Grímsson.

Ólafujr (os islandeses tratam-se pelo primeiro nome) cumpriu o que diz a Constituição, porque houve uma petição que mobilizou mais de 20 mil pessoas em Fevereiro, quando a lei foi aprovada pelo Parlamento, para que houvesse um referendo (tal como aconteceu em 2010).

Se há uns anos o Presidente falava do "capitalismo viking" e de um punhado de jovens banqueiros "prontos para conquistar o mundo", agora, em entrevista ao El País, nota-se que o voto que vai hoje depositar na urna não será garantidamente um "sim": "O fundamental é que a Islândia é uma democracia, não um sistema financeiro, e que esta não é apenas uma crise económica, é uma crise política. Os governos não podem continuar a ser arrastados pelos mercados".

"Em vez de deixar que as pessoas que fizeram depósitos perdessem o dinheiro ou esperassem por compensação através da venda do património do banco falido, Reino Unido e Holanda decidiram reembolsar os seus cidadãos. O reembolso foi da soma depositada e os altos juros procurados por estes investidores de alto risco foi incluído também, como bónus", escrevia ontem no Guardian a juíza francesa Eva Joly. A juíza foi conselheira especial do procurador especial que está a investigar o crash dos bancos. Também ela diz que as directivas citadas para exigir compensação à Islândia têm "bases legais duvidosas, e ainda mais duvidosas bases morais".

Promessas da Moody"s

O "sim" é representado no siteafram.is, e tem por slogan "Sim, é ir em frente". É apoiado pelo Governo de centro-esquerda e pelo maior partido da oposição. Defendem que o acordo limita custos e riscos para o país, face ao provável próximo passo desta novela de capitalismo e revolta dos tempos modernos: o tribunal da Associação Europeia de Livre Comércio.

"As consequências para os islandeses serão consideráveis", se o país perder o seu caso neste tribunal, disse à AFP o economista da Universidade da Islândia Gudmundur Olafsson. Além de protelar a espécie de limbo financeiro em que se encontra a Islândia.

"O voto no "não" é uma receita para a incerteza nos próximos dois anos", disse a primeira-ministra, Johanna Sigurdardottir, que ganhou a alcunha de "Santa Joana", à frente do executivo formado pelos seus sociais-democratas e a aliança Esquerda-Verdes. Não é provável que o Governo caia, mas pode não chegar ao fim do seu mandato, em 2013, disse à Bloomberg Birgir Gudmundsson, da Universidade de Akureyri: "O Governo tem dito repetidamente que o resultado do referendo não será um factor decisivo para a vida da coligação. Mas há fortes hipóteses de eleições antecipadas."

O Governo, que deve começar a negociar a adesão à UE em Junho, tem para mostrar a vitória de ter feito o país sair da recessão: o Produto Interno Bruto (PIB) subiu 1,2 por cento no terceiro trimestre de 2010 e a taxa de juro desceu 4,5 por cento, quando chegou a ser de 18 por cento.

Consequências imediatas da vitória do "não" devem ser a descida na nota do país dada pelas muito criticadas mas sempre escutadas agências de rating. A Moody"s disse já no fim de Fevereiro, após a convocação do referendo, que devia fazer descer a notação do país para um nível de "lixo", Ba1 ou ainda mais baixo, a partir dos actuais Baa3, se o acordo Icesave fosse rejeitado, recorda o Wall Street Journal. Em causa estavam "repercussões na normalização económica e financeira do país".

Sublinham ainda que o colapso dos bancos islandeses está sob investigação criminal e que o Landsbanki, em especial, está a ser investigado no Reino Unido pelo Gabinete de Fraudes Graves, por suspeita de ter transferido grandes somas para outras instituições horas antes de ter aberto falência.

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