Franco Quadri, crítico em movimento

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Quadri, que agora morreu, aos 75 anos, foi o teatro dos últimos 50 anos, o novo teatro que veio depois do pós-guerra

Foi em Roma, há dois anos, numa noite em que chuviscava, que estive pela última vez com o Franco Quadri. Vínhamos de um espectáculo do Davide Enia, e o Franco falava-me do muito que esperava deste rapaz que descobrira. Descemos a pé, passámos pelo Hotel Minerva ("jantava aqui com o Sartre, quando ele vinha a Roma"), ruas sem ninguém, parámos a olhar o Panthéon ("costumava ficar naquele hotel, onde viveu o Ariosto"), deixei-o para lá do Ara Pacis, "é bom passear, em Roma", disse - tinha-lhe sabido bem.

Franco Quadri que agora morreu, em Milão, aos 75 anos, de doença cardíaca, foi o teatro dos últimos 50 anos, o novo teatro que veio depois de Strehler, depois do pós-guerra. Jovem crítico, meteu-se na aventura do Living Theatre, acompanhou-os na tempestuosa passagem por Itália, criou revistas (a histórica Sipario dos anos 60), inventou um novo teatro com Luca Ronconi (o Orlando Furioso, o Laboratório de Prato), foi o interlocutor dos grandes encenadores (lembro-me do terror que inspirava quando, nos anos 80, vinha à Schaubühne), o homem que acompanhou, atentíssimo, todo o trabalho cénico que se foi inventando, a partir dos anos 70. E que sabia tudo, conhecia toda a gente, vira todos os espectáculos, estivera em todo o sítio.

Telefonava-me quando vinha a Lisboa, todos os anos, por causa da École des Maitres, almoçávamos. No Primavera, no Caracol, ele é que dizia. E queria notícias do Luís Miguel, do Teatro Nacional, de outros, sabia tudo. E falava-me de encenadores de quem esperava o renascimento de uma arte (a encenação) que sentia num impasse. Mostrou-me Antonio Latella, o napolitano; e Enrique Diaz o brasileiro. Poucos mais.

É que, nos últimos anos, e com o trabalho da editora que criou, a Ubulibri, no andar em cima do seu apartamento milanês, Quadri voltou a interessar-se pelo texto - e a acompanhar, participando, a renovação que se tem operado.

E ei-lo, a descobrir por toda a Itália, autores. Foi na Ubulibri que descobrimos Scimone, Enia, Tarantino, Paravidino. E Stefano Massini, que ainda não conseguimos fazer. E Franco traduzia. Copi, e, para o seu eterno amigo Ronconi e para o Piccolo, Lagarce e Bond. E editou Heiner Müller mas também Juan Mayorga, os meus amigos. E, de vez em quando, mandava um mail a falar de um autor, de um texto. "Mais um Tarantino, já leste o que ele fez sobre o Gramsci na cadeia? E o Ugo Chitti, de Florença?"

Dizia-me: "eu, que durante anos, só via a encenação, menosprezava a literatura, vivo enredado em peças." Eu gostava desta mudança (sincera) do Franco Quadri, homem que olhava o mundo e intervinha, que via mudarem-se os costumes e queria participar, homem em movimento, atento.

Acho que houve um tempo em que se chamou "intelectual" a pessoas assim. (E era para dizer bem.). Sim, Franco Quadri era um intelectual.

E nós todos o respeitávamos tanto. Admirávamos o seu empenho: tradutor, ensaísta, empresário, instigador de festivais, director de revistas, editor, organizador da École des Maitres, essa Escola de Verão onde juntou tantos jovens (portugueses, tantos, o Nuno Gil, o Elmano Sancho, o Luís Godinho, o Martim Pedroso, a Maria João Pinho, o John Romão, o Nuno Lopes...) com os melhores directores, sempre interventivo.

Essa era, para ele, a continuação lógica do trabalho crítico: esse o seu engagement, queria fazer tudo, a critica é uma moral e não uns quantos caracteres. É uma missão.

Por isso, hoje de manhã, choveram-me mails vindos de Itália - e eram mails tristes, mails de artistas: "Franco è morto."

Todos o tratavam pelo nome próprio, todos o chamavam Franco, todos o receavam, a sua impiedade era conhecida, a sua malícia temida, o seu poder enorme (era, dizia-se, o "Papa Negro" do Teatro Italiano), mirabolante a sua capacidade de manobrar em todo o teatro europeu, e mesmo quando, no La Repubblica onde, durante décadas, foi o crítico teatral, lhe foram diminuindo a regularidade (só às 3as feiras...) e os caracteres (máximo: 3000), a sua pluma era respeitada, temida, agradecida, lida, feroz.

E, sempre com aquele ar de quem já viu tudo e leu todos os livros, sempre vi, enorme, o seu entusiasmo. E os seus desprezos, o seu ódio.

Eu gostava muito dele. E acho que éramos amigos. Para além do teatro, acho. Amigos, assim, aquelas pessoas com quem se vai passear pelas ruas altas horas da noite, a falar do tempo que passou, de lembranças, dos amigos ("que é feito daquele? E daqueloutro?")

Mas não era um homem amável, era temível e temido.

Já estava muito doente quando, na noite romana, descemos da Via Nazionale até ao Lungotevere, demorou muito esse passeio, foi como se estivesse a dizer adeus a Roma.

Marcámos encontro para Milão, cidade de que gosto muito ("tu gostas? É só Berlusconis", dizia-me, resmungando), gostava de passear com ele por Brera, por entre os cafés da sua juventude (nos anos 50), nesse bairro onde ainda agora até os donos dos cafés o tratavam por Franco.

Com ele, com o Franco Quadri, crítico, morre, para mim, uma enorme parte de Itália, a dos anos 60, a que profundamente amei. (artistas unidos)

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