Independente, alternativo e português - eis o teatro de revista

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Acusado de já não fazer sentido, o teatro de revista persiste em apresentar-se no Parque Mayer, em Lisboa. O que agora lá encontramos é uma realidade feita de um elenco renovado, de um público que se quer divertir e de uma história que não se quer esquecida. Hoje é Dia Mundial do Teatro.

Quando os encontramos, já o dia vai a meio e outro tanto ainda os espera. São quase 50 passageiros e desde as oito da manhã, quando o autocarro os apanhou em Porto de Mós, Martingança, Moita ou Alcobaça, em direcção primeiro ao Palácio de Queluz, depois ao Parque das Nações, onde os apanhámos no fim da hora de almoço, que esperam pela chegada ao Parque Mayer, onde vão à revista.

É um dia fora do normal, "uma festa", dizem. Vão ao Parque Mayer, que uns conhecem há anos, muitos mesmo antes da revolução. Vêm em excursão porque é uma forma de conviverem e de se distraírem. Vestiram os seus melhores fatos. É um dia diferente. As horas de autocarro compensam a fadiga que vão levar para casa. "Mas o que é que isso interessa?", pergunta-nos uma delas.

São na sua maioria reformados. São na sua maioria mulheres. Vieram em excursão, arranjada como são arranjadas outras do género, na sua maioria para verem espectáculos ditos de massa, espectáculos populares. "Levamo-los a ver o que sabemos que eles gostam", explica-nos Alexandrina Leitão, promotora.

É só uma entre várias excursões que criam para este fim. E o cenário repete-se em todas as sessões da única revista ainda em cena no Parque Mayer, em Lisboa. Chama-se Vai de em@il a pior!..., foi escrita por Francisco Nicholson e musicada por Mário Rainho e estreou-se em Outubro do ano passado. É hoje a única revista no Parque Mayer e está previsto que esteja em palco até Maio.

O que vêm ver não sabem. Trazem as memórias de outras peças. Muitos deles falam do teatro de revista colocando-o no mesmo patamar de musicais como os que são produzidos por Filipe La Féria, ou dos espectáculos no Coliseu dos Recreios, a que também vêm assistir com frequência.

Não lhes interessa a discussão sobre o lugar do teatro de revista, se já perdeu ou não a actualidade, se faz ou não sentido. Para eles, o dia é para ir ao teatro. E o teatro que têm como referencial é o de revista.

"Rir faz bem à saúde", diz Judite, 65 anos, professora aposentada. Rir é um dos principais argumentos. Assumem-no sem pudor. "A censura já não existe, mas os tempos não são mais fáceis", diz o marido, José, advogado, 63 anos.

"Façam o favor de ser felizes", dirá, mais tarde, o actor Paulo Vasco, depois de apresentar os grupos que os visitam. É isso que os leva ali. Fernanda, 68 anos, diz que esmoreceu depois de ficar viúva e que encontrou nestes grupos uma forma de passar o tempo. Maria do Carmo, 54 anos - ou Carmita, a mulher de 25 anos que diz habitar dentro de si após o ultrapassar o cancro -, diz que depois da doença descobriu que não valia a pena ser triste. Idalina, 65, quer ouvir "as tacadas que se vai dar no Governo". Não perderam o sentido crítico. Talvez não o possam perder, ou não o saibam expressar da forma mais evidente. Ir à revista acaba por ser, afinal, um gesto de inconformismo, de acção cívica. "Uma forma de mostrarmos que importamos", dirá um deles.

Eles são, no fundo, a razão de ser de uma estrutura que consome 450 mil euros por mês. Montar esta máquina "é uma aventura", diz Hélder Costa, empresário de revista em nome próprio desde 1975. É o último dos empresários e há nele algo de romântico e de solitário cavalheiro. "É uma família o que aqui está", diz-nos. "Há pessoas que, se isto parasse, ficavam em muito maus lençóis". Ao todo contamos mais de 30 pessoas no Maria Vitória e, no fim do mês, garante, "são todos pagos"."Este é o primeiro ano em que temos dívidas. Mas quem é que não as tem hoje", pergunta. "A herança foi pesada no ano passado e, às vezes, um mês pode arruinar-nos as previsões. Tudo pago pela bilheteira e uns apoios financeiros pequenos".

Anatomia de uma peça

A história deste empresário, o último, confunde-se com a história deste teatro, e com a do teatro de revista. Despedido do Banco Nacional Ultramarino, respondeu a um anúncio no Diário de Notícias e acabou como secretário, aos 23 anos, de Giuseppe Bastos, veterano empresário do Cineteatro Capitólio. A sua lua-de-mel, a primeira, foi interrompida para poder vir receber a companhia que vinha de África. "O casamento durou pouco tempo", diz. "Quem anda nesta vida do teatro é bom que se relacione com pessoas do meio, é muito difícil". Conta que chegou a dormir nos camarins, na companhia de quase toda a sua roupa. "Impus-me pelo meu entusiasmo".

Após a morte de Bastos, tornou-se empresário da companhia. Estávamos em 1975. Voltou a casar-se mais duas vezes. A primeira com uma bailarina inglesa, "dos tempos em que nem havia escolas de formação de dança em Portugal e as íamos buscar a Inglaterra". A terceira, a actual mulher, foi actriz. "Uma actrizinha", que fez papéis pequenos, "daqueles de candeeiro, de Lisboa antiga e Lisboa moderna".

O Parque Mayer tornou-se o seu mundo. "Habituei-me a isso. Não vim para ficar, nem imaginei fazer disto a minha vida. Gostava de poder passar isto, mas não há qualquer glamour em ter o nome em cima no cartaz. Já dei sociedade várias vezes, mas gerir é um talento. Ser empresário não é pensar no lucro".

E ser empresário teatral de um género permanentemente acusado de ter perdido o seu lugar torna a luta ainda mais árdua. "Quando se abre a porta, o controlo [financeiro] é muito difícil. Nem o Estado consegue controlar-se, quanto mais uma pequena empresa".

Invariavelmente, o trabalho começa em Agosto, com as audições. Desde as audições até ao fim da carreira de um espectáculo, em Maio, podem passar dez meses de salários, dez meses de despesas, dez meses na expectativa de que as contas batam certo. "Fomo-nos adaptando", explica. "Mudámos os horários, cortámos alguns dias de espectáculo, arriscamos ficar mais um mês", mesmo que isso possa ser prejudicial. "Um mês pode estragar-nos o esquema todo". Os quadros - o nome das cenas - já não são pensados como antigamente, em que as noites de estreia entravam madrugada dentro e os números eram cortados ou reorganizados conforme a resposta do público. Hoje a peça quando se estreia está, por assim dizer, fechada. "Quem diz que o teatro de revista já não tem lugar é porque não sabe e gostaria que fosse à sua maneira, porque é mais fácil encher chouriços. É mais fácil meter uma canção e uma dança moderna do que escrever um texto", riposta Hélder Costa.

Nesta revista confundem-se a sátira política, nacional ou internacional (A Tasca da Assembleia, A Candidata a Fadista, Ossama bin Lábia ou Pinócrates) com referências a filmes ou figuras de ficção (Sherlock Holmes, Os Vampiros Nacionais, Avatar). Mantêm-se as atracções do fado, os momentos de dança e a única coisa que é proibida, para além das habituais restrições ao uso de telemóveis ou fotografias, "é fazer espectáculo na plateia". "É uma das formas de comunicar com o público", ri-se Hélder Costa. É uma forma de prolongar uma relação antiga que se percebe quer através das cadeiras, onde a memória de um tempo que já não existe se inscreve permanentemente nos nomes que fizeram a história do teatro de revista e que nelas estão gravadas: Elvira Vellez, Laura Alves, Igrejas Caeiro, Beatriz Costa, Anita Guerreiro, Fernanda Baptista, Deolinda Rodrigues... são fadistas, actrizes, cantoras, encenadores e cenógrafos. São nomes que evocam uma história que, ao longo dos anos, foi sendo marginalizada mas que, durante décadas, serviu de fronteira ao teatro.

Maria Vitória, o resistente

O Parque Mayer fica a meio da Avenida da Liberdade, em Lisboa, permanentemente a ver passar as manifestações que reclamam melhores condições de vida para quem protesta. A melhoria das condições de vida do Parque parecem, contudo permanentemente adiadas.

Aproveitando a abertura dos jardins do palácio Mayer, onde hoje fica a Embaixada de Espanha, em 1925 instalou-se ali a Feira de Agosto e chegaram a funcionar quatro teatros ao mesmo tempo. O Maria Vitória é o único teatro resistente do projecto original e é mesmo anterior à inauguração oficial do parque, tendo sido construído em 1922. Os outros, o Variedades, de 1926, o Capitólio, de 1931, e o ABC, de 1931, já estão fechados ou, no caso do Capitólio, já nem existem como tal. O Capitólio foi esventrado, rebentadas as paredes, e é nele que se concentra a maior expectativa na recuperação do Parque Mayer. Irá chamar-se Teatro Raul Solnado e para ele projecta-se um bar e um cinema ao ar livre no telhado. Os outros, ou foram emparedados, como o ABC, ao lado do Maria Vitória, ou esquecidos, como o Variedades.

Projectos houve sempre. Hélder Costa diz que em 1968 um deles prometia trazer o metropolitano para dentro do parque. "Nunca avançou". O último, depois de um concurso de ideias para o complexo, relaciona o Parque com o Jardim Botânico e a Avenida da Liberdade. O concurso camarário para a requalificação do Parque Mayer foi ganho pelo projecto do atelier de arquitectos Aires Mateus e assenta, segundo a sua memória descritiva, "em três vectores fundamentais": "o Jardim Botânico enquanto elemento central a ser protegido", "criar ligações entre os diferentes níveis da cidade" e "o desenho do espaço público".

O actor Mário Queiroz, que esteve na apresentação do projecto, diz que "a dada altura alguém se lembrou de perguntar: "Então e o parque no meio disso?". Só ouvi falar do Jardim Botânico".

De facto, de acordo com a mesma memória descritiva do projecto arquitectónico, "há a praça em torno do Capitólio que lhe confere dignidade e as praças e ruas pedonais que fruem dessa densidade. Trata-se aqui de uma cidade compacta por oposição à cidade aberta que é o Jardim Botânico. Esta relação prevê uma inclinação a menos de seis por cento e o recurso a meios mecânicos que permitam utilizar a cidade como um todo". E, ao nível das funcionalidades, "prevê-se a incidência em grandes equipamentos culturais-âncora: a recuperação do Capitólio, o manter da caixa do Variedades e a construção de um equipamento teatral de maior escala".

Depois do espectáculo, os apertados e alcatifados corredores do Maria Vitória ficam desertos. No bar, Filomena e Paulina têm opiniões diferentes sobre o destino do Parque. Uma acha que tudo se vai resolver, mas Paulina, há 12 revistas no Maria Vitória, acha que é "uma questão política". "Daqui a quantos anos é que vai estar pronto?"

Diz o empresário: "Eu acredito e apoio tudo para as coisas avançarem. Mas depois fico à espera. Esta luta vai para além do meu tempo, vai de promessa em promessa, de projecto em projecto. Às vezes vejo muito pessimamente o futuro, mas não me entristece deitar abaixo o teatro. Isto não é a minha casa, o teatro é velhinho, não tem as mínimas condições para prosseguir com um futuro brilhante. Mas eu bato-me pela garantia de que a companhia continue. Uma coisa é aprovar um bolo, outra é aprovar o recheio lá dentro".

O actor num teatro em queda

"Tem que se ser um actor completo", frisa Hélder Costa. "O actor é dirigido até estreia e depois, na contra-cena com o público, tem que ter argumentos para não se deixar vencer. É um improviso para o qual tem que estar bem preparado".

David Ventura, 38 anos, faz teatro há dez e estreou-se no musical Amália, de Filipe La Féria. É professor de educação visual e tecnológica. Tudo o que sabe de teatro, diz que o aprendeu a fazer. Quando passou na audição perguntou-se o que fazia ali, no Parque Mayer: "A que propósito venho para aqui, se estes teatros estão a cair e o Parque Mayer tem os dias contados?"

O mesmo se perguntam os bailarinos que encontramos no corredor, numa pausa maior que não os requisita em palco - na qual percebemos que o ambiente não é diferente de qualquer teatro, nem o que se pede a quem nele trabalha se distingue de qualquer outro espectáculo. Enquanto o público vê as entradas e saídas dos actores, nos bastidores muda-se de roupa, fumam-se cigarros, enviam-se mensagens, discute-se sobre tudo. "É uma forma de visibilidade", diz Carla Maximum, 21 anos, que estudou na Escola Superior de Dança e vê a sua participação na revista, a primeira, como "um ponto de partida". É também assim que o vê Sofia Loureiro, 23 anos, que estudou em Inglaterra e que também nunca se imaginou na revista. "Mas não há contratos em lado nenhum e aqui vamos trabalhando".

Trabalham a recibos verdes, recebem em média mil euros, tal como os actores mais novos, alguns deles vindos de escolas profissionais de teatro, e não há férias, não há feriados, não há fins-de-semana. Isso aproxima-os dos restantes profissionais do teatro em geral. Mas isso não parece incomodar estes bailarinos, escolhidos por audição. Cláudio Domingos, 21 anos, veio das danças de salão, "uma modalidade de competição que não tem apoios" e esta é a sua primeira revista, tal como para Daniel Cecílio, 27 anos, formado em Exercício e Saúde e que veio da competição acrobática. A sua experiência em coreografia era reduzida antes desta peça. David Costa Pinto, 26 anos, é chefe dos bailarinos e recebe um pouco mais, mas isso não lhe dá direito a folgas. Dizem todos estar a adorar a experiência, sem que nenhum saiba o que se vai passar depois de Maio.

"Podemos ser convidados directamente [pelo empresário para outra peça], se o fizerem e puder, aceitarei", conta David Ventura, para quem o teatro de revista "vale a pena continuar a fazer porque é a nossa linguagem e a nossa forma de entendermos uma série de coisas. É a forma de chegarmos ao público português".

É também de público que fala Joana Baeta, 20 anos, atracção do fado - o nome que se dá a quem canta. Há dez anos, Joana já ouvia falar do fim do Parque Mayer e tudo o que sobre ele ouviu já era um discurso de resistência em defesa do ethos da revista. "Mas isso passa muito pela educação", diz. "Os meus pais traziam-me e sempre me falaram dele com imenso respeito". "Para mim é impensável enquanto artista e portuguesa, o Maria Vitória estar fechado".

De discurso maduro e voz certa, está ciente de que é "muito velha para a idade que tem". Diz ter saudades do que não viu. "Quando tinha 12 ou 13 anos imaginava isto tudo cheio de cor". O Parque Mayer que encontrou foi outro, mas isso não lhe retirou um grama do "muito orgulho e grande responsabilidade" que sente. "A revista à portuguesa já não é o que era", admite ela, que apesar de ter vindo ao Parque antes, da memória colectiva só conhece o que ouviu e leu. "Mas o peso continua a ser grande. Muito do público que cá vem, mesmo que sejam mais novos, viu a Fernanda Baptista, a Beatriz da Conceição e eu sinto-me atirada aos leões. Mete muito medo pensar que tenho 20 anos e estou como atracção na revista".

Canta o fado há dois anos. Viu o musical Amália na televisão e nunca na vida imaginou vir a cantar numa revista. Mas ei-la aqui. "Eu olho para mim e sinto-me fadista. Hoje compreendo que o fado fez sempre parte da minha vida. Não é só fadista quem canta, mas também quem sente". E acrescenta: "É uma maneira de olhar para o mundo, para as relações e as pessoas". É por isso que esta estudante de Marketing, que aproveita as pausas na peça para estudar, diz que é através dessa relação de proximidade com o público que o teatro de revista deve prosseguir. "A geração dos meus pais quis romper tudo. As da minha idade vêem tudo, o bom e o mau. As da minha idade estão a conhecer melhor a quem nos opomos, onde estamos, porque não sabemos onde vamos".

Diz ainda: "Hoje podemos pegar nisto e fazer reviver a tradição". E dá um exemplo: "Há 10 ou 15 anos a world music tinha dois ou três tipos de música, hoje em dia tem imensas. O caminho do teatro de revista deve ser esse". A busca de um novo estatuto.

Florbela, do Tibete à revista

Entra Florbela. "Alguém viu o meu estatuto?", pergunta dirigindo-se ao público. "O meu estatuto? Alguém o viu? Se fosse um bilhete para ganhar da lotaria já tinham todos levantado o rabo da cadeira", atiça. Florbela é Florbela Queiroz, actriz que foi capa de disco em 1961, que fez os sonhos dos soldados que combatiam na guerra colonial.

José Araújo, 67 anos, era militar na última vez que foi à revista. "A Florbela era uma mulher muito bonita, muito elegante. É isso que quero ver".

Mas Florbela diz que tinha medo. E foi isso que escreveu no programa: "Tinha medo de já não ter piada nenhuma, medo de já não me mexer como antes, medo de já não ter o ritmo que este tipo de espectáculo requer e até medo de já não desafinar "como antigamente"". O público parece não lhe reconhecer esse medo e reage entusiasmado à sua entrada. E ela, no intervalo da peça, vestida de Pinócrates mas sem nunca deixar os anéis ou um fio que guarda junto ao peito, chega mesmo a dizer: "Não tinha a menor intenção de voltar. Já tinha tirado isto da minha cabeça".

Mas foi porque o filho lhe pediu que acedeu. Ela primeiro disse que não. "Já não tenho paciência", justificou. "Eu modifiquei-me muito. Há dez ou 12 anos que não trabalhava no teatro. Fui ao Tibete, aprendi a fazer coisas que me davam paz, filosofias diferentes, estava outra pessoa", explica, referindo-se ao tarot, aos cristais e ao budismo que abraçou como religião. "Eu faço surf, karaté, meditação, tatuagens, salto de pára-quedas. Não sou a senhora, com a idade que tenho, que devia ser". Tem 68 anos. "Não me dava muito com este ambiente. Deixei de ir ao teatro. Fazia-me saudades. E quando cá vinha as pessoas não prestavam atenção ao que passava em palco, punham-se a falar comigo".

Só quando o filho lhe pediu "Faz por mim", é que aceitou ir jantar com Francisco Nicholson. Impôs condições, negociou, eles escreveram, "acertaram agulhas". "Aquilo gostava mais que fosse assim, isto não gosto tanto, enfim, entendemo-nos muito bem, com quem era importante entender".

Quando começou a ensaiar "foi como se tivesse saído no dia anterior". No dia de estreia, recorda-se de que os outros estavam muito nervosos, mas para si "foi como se tivesse saído para jantar". "É como andar de bicicleta", ri-se. Não deixou que a reverenciassem: "Pedi a toda a gente para não me chamarem de dona Florbela, só Florbela. Não me venham com salamaleques que eu saio porta fora. Ia sentir-me mal".

Diz que descobriu um teatro diferente: "Quando regressei era tudo gente nova, tudo estudantes com quem se podia conversar sem se estar a medir as palavras para as pessoas não pensarem mal. Não têm vícios, não são pretensiosos, não dizem "Eu fiz", "Eu aconteci". É malta que quer aprender". E conclui: "Afinal o outro teatro que tinha em mente já não existe".

Mas, no palco, ainda é do estatuto que anda à procura. "Pedi que me deixassem ir para junto do público, para falar com eles. Já não me viam há tantos anos. Queria aproximar-me deles". E eles respondem. "Do que me lembro, muito vagamente, é que sempre fui de meter buchas, mas agora estou impáravel. Nunca sei o que vou dizer. Estou numa fase em que me atiro". E eles respondem. "São só precisos três minutos. Se não o agarrar [ao espectador], posso estar ali mais dez que não vai valer a pena". É isso que a entusiasma no teatro de revista, ela que foi bailarina clássica - e tira o enorme sapato de desenho animado para mostrar como ainda sabe fazer um coup de pied ("Quem é que consegue fazer isto hoje em dia?") - e fez Brecht, Miller "e todos os géneros de teatro".

"Quando fazia outro tipo de teatro, em que não se pode sair do texto, era um sacrifício tremendo. Ter que dizer aquilo todos os dias, com as mesmas pessoas, num palco, àquela hora, era demais para mim. Eu tenho que ser livre. Ninguém me pode segurar porque eu não deixo".

Explica que o segredo do actor de revista é "ter que trabalhar a vários níveis. Tem que dizer-se às pessoas aquilo que elas têm vontade de dizer em voz alta, mas não dizem, não por medo, mas por receio de não serem bem compreendidas". Nesta peça, Florbela veste-se de Pinóquio para falar de José Sócrates, de cozinheira para desafiar os deputados, de rainha dos avatares para uma mensagem ecológica, é desbragada o suficiente para se lançar em piadas de cariz sexual e se meter com os bailarinos, os actores, os músicos, os espectadores.

"É muito complicado de fazer. Fazer rir é mais difícil do que fazer chorar. E fazer pensar, então...", diz. "As pessoas vêm com a ideia de se divertir e, de repente, estão a rir-se e alguém lhes diz alguma coisa que as faz pensar e, afinal, eh pá, isto é importante". Por comparação, adianta, no outro teatro, "o que está ali é o que os autores pensam e o que se tem para dizer. É taxativo".

Esse devia ser o argumento a usar para a revista não acabar, considera. "Foi sempre o único meio divertido que fazia as pessoas pensar. Essa é a sua função. Televisão é muito fácil, até os cães o fazem. O que se quiser pôr a representar em teatro e cinema, põe-se e consegue-se. Mas ponha isso num palco e diga se consegue. Não consegue". É um teatro que está "mais ligado às pessoas...". É o que dizia o encenador António Pedro, fundador do Teatro Experimental do Porto e figura maior do teatro independente português: "A coisa mais parecida com o teatro em Portugal continua a ser a revista".

tiago.costa@publico.pt

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