O fulgor de Maria Gabriela Llansol contado pelos seus amantes

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Criadores contemporâneos (llansolianos assumidos ou não) falam ao Ípsilon da sua relação de encantamento com Maria Gabriela Llansol, um "animal de escrita" que permanece misterioso. É já no domingo que o Centro Cultural de Belém inaugura a exposição Sobreimpressões"

Sobre Maria Gabriela Llansol (1931-2008) disse Eduardo Lourenço que será, depois de Fernando Pessoa, "o próximo grande mito literário da literatura portuguesa": "Nunca será uma autora fácil e consensual. É uma espécie de fenómeno misterioso. Alguém vindo de uma outra espécie de planeta. Quem a encontra é difícil não ficar fascinado por essa escrita."

Esse fascínio é partilhado pelos escritores, artistas e cineastas com quem o Ípsilon falou sobre Maria Gabriela Llansol - leitura de cabeceira à qual recorrem, encantados pelo fulgor do texto, por um universo único, ou pelo desafio de ler em liberdade desafiando os cânones.

O que é ser llansoliano (ainda que poucos admitam sê-lo)? O llansoliano não é só o académico que estuda a obra ou que pertence ao Grupo de Estudos Llansolianos, criado em Sintra ainda a escritora era viva, e que hoje preserva e divulga o seu espólio. Como explica João Barrento (um dos responsáveis pelo Espaço Llansol), ser llansoliano "é ter aderido a um determinado universo e a um modo de estar no mundo".

E que mito é este em torno da figura de Maria Gabriela Llansol? Diz-se que lia à luz das velas e que escrevia em torrente como um "animal de escrita" (Barrento). Da impossibilidade separar o real e o texto ficou a aura de escritora inacessível, inclassificável, figura silenciosa, rodeada por um pequeno grupo de admiradores a que Eduardo Lourenço chamou "uma espécie de seita".

Hoje Llansol continua a ser uma (quase) ilustre desconhecida em Portugal e no estrangeiro. Mas talvez a exposição que se inaugura no Centro Cultural de Belém (CCB) este domingo (que será "Dia Llansol", com leituras e música) contribua para levantar o véu sobre esta escritora misteriosa. "Sobreimpressões. Maria Gabriela Llansol: Uma visão da Europa" é um roteiro por algumas das principais figuras europeias e pelos lugares da obra (e alguns da vida) de Llansol. Paralelamente, haverá em Abril, na Cinemateca, um ciclo sobre algumas dessas figuras. E Llansol continua, com uma exposição de Ilda David que acompanhará a reedição de "O Livro das Comunidades", e o lançamento de um volume sobre a temática da Europa (Assírio & Alvim) e de outro compilando as principais recensões na imprensa da época (Mariposa Azul).

Na exposição estarão trabalhos de artistas com ligações à obra da Llansol, como a peça de Rui Chafes sobre a figura de Fernando Pessoa, ou a de Pedro Proença sobre a metamorfose de D. Sebastião. E o texto, explica Barrento, "vai estar lá em fragmentos, com muitos papéis avulsos, peças originais dos cadernos, algumas nunca vistas", à mistura com "peças da casa da autora e objectos relacionados com os seus livros".

Culto e afecto

Hélia Correia, escritora: "Llansoliana não sou porque isso implicaria uma prática de trabalho de estudo e de relação mais operacional com aquele texto, que não é a minha. Não sou uma estudiosa da obra da Llansol, mas sou uma amante, isso dá-me muito mais liberdade."

Miguel Gonçalves Mendes, realizador: "Não sou llansoliano, de todo. Para mim, a Llansol é um autor que escrevia livros de que eu gosto. Há um lado de mitificação das coisas que acho até muito doentio e nem sei se ela própria simpatizaria com isso."

André e. Teodósio, encenador: "Sou um llansoliano. Reescrevo, aproprio-me de frases dela. É uma das figuras que convoco sempre. Sou contingente dela. Os llansolianos podem querer tampar-me a boca, mas eu não posso fugir a isso."

Paula Sá Nogueira, actriz: "Não diria que sou llansoliana. Sou leitora. A minha aproximação ao mundo é olhar: a Llansol é uma das coisas para que eu olho."

Aqui: afirmação e negação do que é ser llansoliano. E ainda assim todos se dizem amantes fascinados por essa força fulgurante do texto. Não é uma contradição. Como diz Hélia Correia, o culto, a ser feito, sê-lo-á "sobre o esplendor do seu texto, tão vivo como uma árvore, atravessada por uma seiva, com tanto alimento do espírito que será impossível e até indesejável que haja um controlo a respeito dele. O texto não pede isso. Que o culto seja um culto de luminosidade, de afecto generoso".

Hélia Correia conheceu Maria Gabriela Llansol por via de uma amiga comum. Esse encontro "abriu caminho a uma relação muito especial e muito privada": "Uma relação muito forte e muito preciosa para mim", conta. Também com o texto de Llansol a relação é "de uma grande intimidade": "É um texto a que volto sempre. Já há muito tempo que isso não significa ler um livro completo, é abrir um livro aqui e acolá, ler passagens, como fazíamos quando nos encontrávamos. É um texto que está sempre presente. Não faço isso com mais texto nenhum."

A escritora admite que a existência de culto à volta do texto e da figura de Llansol não lhe "parece ofensiva" ("Compreendo e não sinto como abuso"), mas acrescenta que "essa personagem adorada é já uma outra". A imagem projectada por Llansol, explica, "é tão rica e tão textual, e dada a várias leituras, que há realmente uma imagem dela que se pode projectar como imagem de culto". Hélia Correia, contudo, quer preservar o espaço íntimo da sua relação com Llansol, até fisicamente: "Defendo como um cão de guarda o meu espaço, do qual sou muito ciosa e que não quero ver atravessado por visitantes ou apreciadores da obra dela. Aí está a grande diferença entre a minha felinidade e o espaço dos estudiosos, que fazem um trabalho grandioso a que estou infinitamente grata".

Um texto que espicaça

É esse afecto que une a leitora Hélia à obra "Amar um Cão": "Nem preciso de dizer que é o meu texto. Apropriei-me dele. É com ele que há uma relação de afecto, de memória." Para além de Melissa, uma das gatas de Llansol que Hélia adoptou, tudo o que era do Jade (o cão de Llansol) ficou com ela. "Esse texto sai do conjunto grandioso da alta e perturbadora literatura que é a obra da Maria Gabriela, que eu peguei ao colo e trouxe para a minha salinha, como a Melissa e outras memórias e objectos", diz.

Para o compositor João Madureira, 39 anos, autor da ópera "Metanoite" (encomenda da Gulbenkian em 2007, com libreto de João Barrento e encenação de André Teodósio), "Amar um Cão" também é a obra de eleição, "pela forma como combina simplicidade e um lado mais enigmático e reflexivo da sua escrita, que parece aí encontrar um equilíbrio muito especial." O que mais o atraiu em Llansol "foi a convicção de que a língua portuguesa necessitava absolutamente de uma reinvenção formal para exprimir as suas ideias". Estava perante alguém "que não reinventava a língua em que se exprimia por puro prazer ou capricho académico, mas por uma consciência profunda de que a língua com que nos exprimimos habitualmente condiciona aquilo que queremos dizer". Musicalmente, sublinha, o texto de Llansol é muito estimulante também, "tanto no seu aspecto sintáctico, como no seu aspecto formal: por vezes ele parece articular-se como colecção de fragmentos vários constituintes de um todo, e não de uma forma puramente linear".

Este é o legado do texto de Llansol: mais do que as figuras que invoca ou do que os espaços que habita, é o processo de escrita do texto, literalmente com as costuras à mostra, que faz com que muitos vejam nela uma fonte de inspiração ou de desafio. A realizadora Cláudia Tomaz, 38 anos, por exemplo, tem há vários anos o projecto de documentário "Os Vivos", sobre a obra de Llansol. "Criar um filme completo que trate toda a extensão da obra de Llansol é impossível. À extensão, prefiro a profundidade. Quero fazer uma obra humana seguindo o percurso da escrita de Llansol. Filmar, com o mesmo olhar com que ela escrevia. Vejo uma imagem nómada, silenciosa, de uma estranheza íntima", explica. Não é fazer simples "ilustração nem colagens poéticas": "Para mim a poesia tem que vir de dentro e é nesse caminho que encontro Llansol."

O mesmo se passa com Paula Sá Nogueira, 55 anos, do grupo de teatro Cão Solteiro: "Há uma série de autores que lemos e que formam uma espécie de universo que acaba por ir parar aos espectáculos [da Cão Solteiro]." Demorou imenso tempo a lidar com a espiritualidade da autora: "Não sou católica e faço reacção a tudo o que o seja. Mas comecei a perceber que aquele texto é de uma profunda espiritualidade." É a liberdade do universo de Llansol que a convida a entrar: "Gosto da reacção química que aquele universo provoca com o meu. Não me preocupo em saber se aquilo que estou a ler é o correcto. A escrita dela tem tanta liberdade que me permite fazer isso. Se não tudo aquilo parece um universo fechado, com metáforas difíceis. Essa é a postura de quem pega num livro para lhe explicarem alguma coisa. Isso não acontece com ela. Os livros dela espicaçam-me."

O artista plástico Manuel Santos Maia, 40 anos, acrescenta que o que o fascina em Llansol é a forma "quase catalisadora" como ela "fala nos objectos", que "acelera o processo de criação". "É um diálogo que eu encontro com a escrita, que levanta questões e não dá certezas. Esse é que é o desafio." Uma das peças do artista, sobre a questão do exílio e de Portugal, com objectos da casa de Llansol, estará no CCB.

Ler em liberdade

O texto continua vivo, mesmo após a morte (real) da autora. Era isso que interessava ao realizador Miguel Gonçalves Mendes, 32 anos, que, com a coreógrafa Vera Mantero, fez o documentário/performance "Curso de Silêncio" para o Festival Temps d'Images (2007), a partir de "Amigo e Amiga". "Creio que o que interessava mais à Vera era a cena fulgor. A mim, era questão da morte dele [Augusto Joaquim], e de como alguém se confronta com o mundo real e com esse luto." O livro de Llansol permitiu a Mendes trabalhar "as contradições da mente humana": "Estamos a falar de alguém com aquele universo particular que a morte do marido põe em causa. É isso que torna esse livro especialmente bonito. Ela não se nega a si própria. Continua na sua procura do belo através do processo de criação. Faz o luto através do livro."

Em Llansol, o realizador admira "a recusa de metáforas". Nesse sentido, Mendes reconhece que a leitura do texto llansoliano foi útil para o seu trabalho: "Naquele filme, senti que estava realmente livre através da exploração da intensidade da imagem, dessa explosão visual. A liberdade é o gozo que a literatura dela dá, consegues ler uma página, um fragmento, e aquilo vive por si. Ler fragmentariamente é ler em liberdade."

Mas Llansol não é só livre: é real. "A escrita dela é fantástica, ensaística, poética, artística: é a pós-modernidade ao máximo. Não é ficcional, é monstruosamente real. Tem a ver com a constatação do mundo, as artimanhas ficcionais do mundo e a sua monstruosidade. Está-nos sempre a tirar o tapete, para nos pôr a pensar, para nos abstrairmos. Não há voto, não há discurso; o prosaico sobre o mundo não está ali, não é metafórico", diz André Teodósio. Os livros de Llansol, continua, não se podem ler "como se lê uma tese, como quem procura a forma canónica da poesia ou uma fórmula matemática". Precisamente porque o texto é livre, não se pode instaurar uma maneira de o ler. "Ela não diz: é assim. Ela constata. Sabe que o mundo está em colapso. Não usa artimanhas intelectuais." Para Teodósio, Llansol é como Adília Lopes, "é o mesmo tipo de raciocínio e de posição no mundo, estar no mundo de uma forma contemporânea mas sem tempo, porque o tempo delas é o de deus".

Esse tempo de deus, um espaço místico espiritual, também seduz o actor Miguel Loureiro, 40 anos. Descobriu Llansol aos 24, com "uma paixão que vivia na altura, com quem trocava livros dela". Comprava-os num alfarrabista, num vão de escada ao pé do Teatro da Trindade. Foi então que descobriu que havia "alguém no romance português que falava de uma série de coisas próximas de deus". Para Loureiro, "Llansol é um lugar muito repousante". Quando a leu, sentiu "um enorme descanso relativo a tudo o que tinha lido antes, mas ao mesmo tempo um sentimento de inquietação. Parecia que estávamos dez anos atrasados em relação ao que andávamos a ler. Aquela escolha de palavras, a linguagem, dava a sensação de que ela estava a sabotar tudo o que escrevia." Llansol ficou-lhe como uma reserva, não como referência: alguns dos seus textos estão lá, "ao pé da cama, para adormecer, para voltar a ler, para voltar a aprender". A sua obra, diz, "é uma oferenda ao leitor": "Cada vez que a leio encontro sempre coisas novas".

No fundo, é só preciso deixar de ter medo. "Quando comecei a ler senti uma certa frustração: o meu entendimento falhava, mas continuava a seguir as linhas. Lembro-me do que ganhei quando deixei de me preocupar em perceber. Vinha formatado pela narrativa. Tinha de aprender a estar no texto", diz.

Maria Gabriela Llansol esperou sempre pelos que estão do outro lado. Tinha um desejo: "Encontrar alguém que me ame com bondade, e saiba ler. (...) Alguém que deixe espaços entre as palavras para evitar que a última se agarre à próxima que vou escrever. Alguém que admita que a cartografia dos animais e da pontuação não está ainda estabelecida. Alguém que eu possa ler diferentemente depois de me ler."

Ei-los aqui, amantes do fulgor do seu texto.

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