"Como é que eu encontro a minha maneira de pensar?"

Cem anos de história dariam certamente um documentário rico em experiências. Mas Catarina Alves Costa não quis limitar o filme que fez para o centenário da Universidade de Lisboa a isso: filmou, nos rostos e palavras de alunos e professores, o "desejo do saber"

A Universidade de Lisboa (UL) tem uma história já longa, que passa por muitos professores, muitos alunos, muitas aulas, centenas de milhares de horas a falar, a mostrar como se faz, a transmitir conhecimento, a procurar o saber. Quando a realizadora Catarina Alves Costa recebeu o convite para fazer um filme sobre a Universidade - que será exibido hoje, às 19h00, na Aula Magna da Reitoria da UL, no âmbito das comemorações do centenário da instituição - pensou que "escolher uma perspectiva única seria sempre redutor". E quis abrir possibilidades - afinal, não é exactamente isso que a própria Universidade faz?

Por isso optou por "construir o filme mais como um ensaio" e chamou-lhe O Desejo do Saber. Universidade de Lisboa 100 anos. Estão lá (o filme é organizado em blocos) a história da UL, "a universidade como lugar de transformação da sociedade, lugar de renovação", imagens das revoltas estudantis (novas, encontradas no arquivo do Arquivo Nacional das Imagens em Movimento) do Dia do Estudante, na Cidade Universitária, outras da entrada à força da Pide nas instalações da Associação Académica de Medicina onde se imprimiam clandestinamente folhetos e jornais.

Está lá a sala onde ficaram esquecidos os canudos com os diplomas de tantos alunos que nunca os foram buscar - cada cor a indicar um curso. E a sala onde se guardam os sumários das aulas - com o caderninho da cadeira de Finanças em 1973-74, dada pelo professor Sousa Franco, que no dia 25 de Abril deixou escrito: "Ausência colectiva por motivo de força maior (revolução)."

Um mundo subterrâneo

Está lá todo o património da Universidade, a história do trágico incêndio da Faculdade de Ciências, na Politécnica, e dos seus museus, e todas as preciosidades guardadas em arquivos, e salas de reservas - os instrumentos antigos de laboratório do Museu da Ciência, as aves empalhadas, os ninhos e ovos do Museu de História Natural, o arquivo vivo que é o Jardim Botânico, os livros dos naturalistas com peixes exóticos minuciosamente desenhados no século XVI. Este é, diz Catarina Alves Costa, "um mundo um pouco subterrâneo que mostra que o conhecimento se faz por acumulação".

E está lá o futuro, a investigação, a procura de saber mais, de ultrapassar as barreiras - "em cada época queremos sempre quebrar as barreiras que existem", diz um astrónomo. As fronteiras avançam, ficam lá mais à frente, mas a ideia é sempre chegar lá, e mais além. O mesmo fazem, por exemplo, os investigadores do Instituto de Medicina Molecular que estudam a capacidade de regeneração de organismos como o dos peixes-zebra para perceber como isso pode ajudar a saúde humana.

"Agora como antes a mesma vontade do todo, só que sem a certeza da utopia iluminista", diz Jorge Ramos do Ó, historiador e professor do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, cujos textos pontuam o filme. "No tempo presente, a síntese advém da diferença máxima e já não tanto de ligações causa-efeito ou da procura de uma essência. Em cada problema voltamos ao zero. Sucede-nos que uma invenção abre sempre para uma infinidade de invenções possíveis."

Como se aprende?

Mas, sobretudo, está lá - e é isso que mais interessava a realizadora - a ideia de transmissão de saberes. Como é que se ensina? Como é que se aprende? Citando novamente Jorge Ramos do Ó: "A Universidade é a instituição de ensino em que se sabe aprender e se aprende a saber. Por essa via a razão se liga ao próprio ser que se dispõe a conhecer. Sejam quais forem os saberes disciplinares, as técnicas ou as armas retóricas envolvidas na relação entre professores e alunos, o certo é que o desejo do saber permanece intacto no coração da Universidade."

E onde o filme melhor capta esse desejo do saber é nos rostos, gestos e palavras de alunos dos diferentes cursos. Aula na Faculdade de Direito: distribuídos pelo anfiteatro, os alunos percorrem grossos livros, marcados com post-its coloridos. Um aluno, de origem africana, explica que escolheu o curso muito por influência da família: "Na minha família não há nenhum jurista. A minha mãe dizia sempre "o meu advogado, o meu advogado", e isso também ajuda, incentiva a pessoa".

"Não sei nada disto"

O saber está nos livros - mas aprender é muito mais do que isso, sublinha Martim de Albuquerque, professor. "Digo sempre aos meus alunos: não se limitem a ler e a tentar decorar, porque estão perdidos. Leiam e tentem perceber. E uma vez percebido não basta dizer "está percebido e é assim". "Está percebido. Será assim?" Exerçam a vossa capacidade crítica."

O mesmo dizem dois estudantes de Medicina. "Se me perguntassem no terceiro ano "quando chegares à enfermaria como é que vai ser?", eu dizia "vai ser fantástico, vou curar toda a gente, vou saber tudo, é tudo como nos livros". Agora, no quarto ano, eu penso "não sei nada disto". Vamo-nos sentindo cada vez mais pequenos e é isso que é o conhecimento, é ter consciência do que temos para crescer.". Ao lado, o colega acrescenta que saber o que está nos livros "é o requisito mínimo", e conta como aprendeu verdadeiramente quando viu a primeira pessoa morrer à sua frente, e quando viu a primeira nascer.

Em Belas-Artes, diz uma aluna: "Não saímos daqui com certezas. Aliás, os nossos dias são incertezas completas - como é que eu encontro a minha maneira de pensar, a minha maneira de mostrar, a minha cabeça nas coisas que faço? É uma batalha por ter alguma coisa que valha a pena os outros verem." E outra, em Linguística: "A única coisa que se pode fazer para se ler um texto é lê-lo muitas vezes e voltar a lê-lo através do tempo, e quando se acha que já se percebeu, voltar a lê-lo."

É esta a luta que vivem todos os dias milhares de alunos, dentro das universidades - procurar o conhecimento nos livros, entendê-lo, e depois superá-lo, procurar neles próprios mais alguma coisa, avançar, acrescentar pensamento ao pensamento, melhorar, crescer. E é esta a verdadeira história da Universidade.

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