No Porto há uma rua que é um caso de estudoÁlvares Cabral

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Apesar de alguma degradação visível em vários edificios, na Rua de Álvares Cabral há património a preservar Fotografias adriano miranda

A Álvares Cabral é uma artéria aberta há apenas um século e encerra um património representativo do que foi a construção na viragem dos séculos XIX-XX. Tema de investigações académicas, tem pendente uma proposta de classificação. Por Sérgio C. Andrade

a A decisão da Secção Regional do Norte da Ordem dos Arquitectos (SRN/OA) de instalar a sua futura sede na Rua de Álvares Cabral, após a recuperação de duas vivendas geminadas centenárias, veio chamar a atenção para esta artéria no centro do Porto, que não só tem uma história muito especial mas que é também um caso de estudo do ponto de vista patrimonial, arquitectónico e urbanístico.

Quem sobe a rua de carro, no sentido (actualmente único) Cedofeita-Praça da República, com acesso depois à Baixa da cidade, reparará apenas numa certa uniformidade arquitectónica do lado esquerdo (passeio norte) em contraste com a sucessão de vivendas que se alinham no passeio sul. E também no ar degradado de muitas das casas, quadro que culmina com as ruínas do palacete no topo, que, durante anos, foi sede do Instituto Francês do Porto, e em 2008 foi destruído por um incêndio. Alguns prédios de múltiplos andares construídos nas décadas mais recentes mostram ainda a perda de identidade que a cidade foi sofrendo em muitas das suas artérias históricas.

Apesar de tudo isto, a Rua de Álvares Cabral é um caso à parte no mapa urbano portuense. A sua classificação patrimonial como "conjunto de interesse público" está em estudo; foi tema de investigações académicas; e tem vindo a ser redescoberta tanto por empresas que aí procuram a patine arquitectónica para instalar as suas sedes como por famílias e novos habitantes que apostam no regresso ao centro histórico.

Vale a pena começar por recordar a história da abertura da rua, e de como o seu nascimento contrariou o modelo tradicional de criação de cidade.

No final do século XIX, a poente do então Campo da Regeneração (antigo Campo de Santo Ovídio e actual Praça da República), onde desde o final do século anterior pontuava já o quartel-general, existia uma quinta de grandes dimensões que descia até à Rua de Cedofeita. Desde o século XVII, foi sucessiva e/ou simultaneamente conhecida como Quinta de Santo Ovídio, dos Figueiroas, dos Pamplonas, ou, já no século XIX, dos viscondes de Beire e dos condes de Resende. Era encimada por uma casa apalaçada (século XVIII), de arquitectura sóbria mas afirmativa do poder da aristocracia fundiária, e ostentava um extenso jardim e boulevard, que tinha vista para a igreja românica de Cedofeita, e a dada altura era mesmo franqueado como passeio público. Era "uma quinta de recreio e rendimento de amplo espaço aristocrático", assim a descreve a historiadora de arte Maria do Carmo Pires, autora de uma tese académica intitulada Rua Álvares Cabral (1895-1940), Formas de Habitar, apresentada na Faculdade de Letras do Porto (2000). A autora cita a descrição que dela fez o historiador Pinho Leal (1816-1884), que a classificou como "a mais agradável vivenda do Porto, a maior do interior da cidade", e que se localizava na zona onde a política urbanística dos Almadas, no final do século XVIII, tinha feito chegar o rompimento da cidade fora da muralha medieval.

Mas, no final de Oitocentos, na posse dos condes de Resende - e reflexo dos tempos de falência da aristocracia -, esta família deparava-se com graves problemas de liquidez. Manuel Benedito de Castro Pamplona, 6.º conde de Resende (e sogro de Eça de Queirós), fez, então, uma proposta inesperada ao município: abriria no percurso do boulevard da quinta uma nova rua, que, sacrificando o palacete, faria a ligação pública entre o Campo da Regeneração e Cedofeita. O conde via aqui uma oportunidade única de valorizar a sua propriedade, que assim passaria a conter duas novas frentes urbanas, que ele iria saber explorar convenientemente.

Não era esta a via que tinha sido prevista no plano ordenador da zona, mas depois de três anos de debate na câmara e de formalidades judiciais, em 1895 o município autoriza a abertura da rua. O conde de Resende avança com a obra e, simultaneamente, com um célere processo de loteamento da nova artéria - inicialmente, é chamada dos Pamplonas -, subdividindo-a em 144 fracções de seis metros de largura, a medida-padrão que vinha do tempo medieval e assim "democratizava" o acesso à frente urbana.

Rua para a classe média

O Porto "tornou-se, durante o século XIX, um importante centro comercial, industrial e financeiro, no qual um poderoso grupo social - a burguesia - visava ampliar os seus negócios e lucros. Durante este século, a remodelação e a modernização da cidade impunham-se, privilegiando o espaço e a circulação, elementos que permitiam percorrer rapidamente o centro, acelerando a mobilidade de pessoas e bens. A cidade ia ganhando a periferia e a rua tornava-se um dos traçados-chave do desenvolvimento económico e urbano da cidade", escreve Maria do Carmo Pires na sua tese. Não se estranha, pois, que a maioria dos compradores dos lotes da nova Rua de Álvares Cabral tenha vindo da classe média, que então procurava aproximar-se do centro da cidade, evitando, no entanto, o risco de se deixar contaminar pelo seu ruído e insalubridade.

Novos grandes e pequenos proprietários, industriais, capitalistas, profissionais liberais (médicos, advogados), brasileiros de torna-viagem, comerciantes e funcionários são os compradores dos lotes. Mas isso acontece com uma curiosa divisão de interesses e programas. Do lado norte, surgem as habitações unifamiliares de três pisos, cuja edificação vai ser uniformizada num estilo austero mas cuidado, que segue o modelo da casa inglesa. "Nessa altura, havia um sentido de urbanidade e de bom gosto, havia um certo sentido comunitário que não se compara com o capitalismo de hoje", realça Nuno Grande, arquitecto, que decidiu recuperar e habitar uma dessas casas (ver texto ao lado).

No passeio sul, começaram a nascer, alternadamente com as mesmas casas unifamiliares, outras tipologias de construção, que já contemplavam a vivenda multifamiliar e até o palacete. "Era uma zona muito ventilada, com grande exposição ao sol, que logo agradou à burguesia", diz a arquitecta Ana Margarida Vieira, autora de uma tese apresentada no ano passado na Universidade Politécnica de Madrid sobre os Critérios de sustentabilidade para a reabilitação urbana (a propósito do projecto Norte 41º, com que a SRN/OA está a lançar os moldes da construção da sua nova sede em Álvares Cabral). Esta arquitecta nota, de resto, que muitos compradores de lotes na nova rua decidiram investir em ambas as frentes: a sul, para as suas vivendas, a norte, para construírem casas de rendimento.

Isto justifica a diferença notória que se observa entre as duas faces de Álvares Cabral, nas casas que maioritariamente foram construídas entre 1897 e 1912. Segundo a contabilidade feita por Maria do Carmo Pires, a norte, 44 das 56 construções respeitam o lote primitivo e apresentam uma grande uniformidade; a sul, apenas dez dos 33 edifícios seguem essa tipologia, e surgem então casas que evidenciam o poder económico da burguesia ascendente ou dos emigrantes regressados com fortuna do Brasil.

Na primeira fase de construção, os projectos são assinados por mestres-de-obras, condutores de obras públicas e também engenheiros, aparecendo os arquitectos apenas mais tarde, e com eles alguma inovação modernista no desenho das casas. "Desta rua, sem um projecto global específico para as suas edificações, resultou um todo no qual cada elemento participava de um cenário idêntico que reflectia o que se fazia na cidade, contribuindo para um efeito de solidez e qualidade de uma zona residencial urbana", escreve Maria do Carmo Pires.

Esta uniformidade é visível nas fachadas da tipologia primitiva, sóbrias na utilização do granito, azulejos monocromáticos (onde o azul é a cor dominante) e ferro forjado nas varandas e nas guardas de portas e janelas. Esparsamente, surgem também motivos art déco, que na época começava a fazer moda em Portugal, e que são mais notórios nas construções assinadas por arquitectos a partir das décadas de 1920-30. Entre os arquitectos que deixaram a sua marca em Álvares Cabral, estão nomes como João Marcelino Queirós, José Ferreira Peneda, Aucíndio Ferreira dos Santos, Rogério de Azevedo (autor do edifício e garagem de O Comércio do Porto, nos Aliados) e Júlio José de Brito (autor do Teatro Rivoli).

"Esta rua tem os melhores exemplares da arquitectura do final do século XIX e da época art déco com algum modernismo, contemporâneo à Casa de Serralves", sintetiza Nuno Grande. Uma rua em relação à qual há a expectativa de classificação patrimonial, já pedida há alguns anos pela Direcção Regional de Cultura do Norte e que está a aguardar parecer do Conselho Nacional de Cultura. Até à decisão, as novas edificações e intervenções na rua ficam condicionadas à salvaguarda do seu património arquitectónico. E começa também já a ser visível um movimento de regresso de habitantes a esta artéria que já teve árvores, e também mais peões do que automóveis.

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