A Companhia Aurifícia é um raro testemunho da era industrial

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O busto do primeiro gerente da Companhia, Joaquim Rodrigo Pinto, está rodeado por um pórtico projectado em 1906 pelo arquitecto José Marques da Silva ADRIANO MIRANDA

A fábrica com fachada para a Rua dos Bragas é um exemplar da industrialização dos velhos ofícios na cidade. Há um projecto para a recuperar associado à abertura de uma nova artéria

a Há no passeio sul da Rua de Álvares Cabral, junto a uma garagem, um muro a delimitar uma propriedade que é a única que ficou por edificar em toda a artéria. São as traseiras da Companhia Aurifícia, cujo nome está, de resto, inscrito no pórtico do portão que dá acesso a um amplo terreno com árvores acabadas de podar. Mas desta fábrica que é das mais emblemáticas do que foi o passado industrial da cidade, os portuenses conhecem sobretudo a bela fachada de desenho clássico, recortada a azulejos vermelhos e portas verdes por entre algumas árvores vistosas, que dá para a paralela Rua dos Bragas.

No imaginário da cidade, a Companhia Aurifícia, actualmente já desactivada, remete para a época de ouro, em que estes e outros metais nobres seriam transportados em vagonetas sobre trilhos, que ainda são visíveis na propriedade. Não seria tanto assim. Ainda que o ouro fizesse parte da matéria-prima com que a fábrica começou a laborar no dia 25 de Março de 1869, ela viria a apostar numa vasta gama de serviços logo nas suas primeiras décadas de laboração. Para além da ourivesaria - a fiada de oito mansardas que ainda hoje se vêem num dos seus edifícios corresponde às bancas de ourives directamente iluminadas pela luz do dia -, a Companhia trabalhava em serralharia, latoaria, pregaria, laminagem, medalhas e peças de arte sacra, mas também em carpintaria, serraria e outras indústrias da madeira.

Maria da Luz Sampaio, da equipa técnica do Museu de Ciência e Indústria, no Porto, que fez já um estudo sobre a história da Companhia Aurifícia, diz que ela se tornou num "nicho de ofícios tradicionais que ali se industrializaram", mas sem nunca ultrapassarem uma certa dimensão. Acrescenta que a fábrica arrancou com uma centena de operários, entre serralheiros e pregueiros, mestres e carpinteiros, serventes e contabilistas, e que, pelo que conseguiu apurar, esse número se manteve mais ou menos uniforme ao longo das décadas seguintes - o crescimento das instalações fabris atingiu em 1892 a planta que ainda hoje permanece.

"A Companhia Aurifícia constitui um retrato bastante fidedigno das condições de produção existentes na indústria portuguesa nos finais do século XIX, revelando sobretudo o pioneirismo dos seus fundadores", escreveu Maria da Luz Sampaio num artigo publicado na revista Arqueologia Industrial (Série 2, Vol. 1 - n.º 12, de 1993).

A Companhia Aurifícia foi fundada por cinco capitalistas da cidade - Joaquim Rodrigo Pinto, Pedro Augusto da Costa, José Dias d"Almeida, Augusto Alberto Corrêa e Miguel Gonçalves Corado e Silva -, que importaram maquinaria de Inglaterra e da Alemanha, mas também contrataram operários ingleses especializados para a instalação da fábrica. O primeiro gerente foi Joaquim Rodrigo Pinto, cujo mandato terminou em 1907, com um sucesso que justificou, no ano anterior, a celebração da sua figura nas próprias instalações da Companhia, com um busto que se diz ter sido esculpido por Teixeira Lopes (autoria que, no entanto, não está confirmada), que foi colocado num pórtico, esse sim, projectado por José Marques da Silva - o famoso arquitecto da Estação de São Bento e do Teatro de São João terá também intervindo noutros melhoramentos da fábrica que acompanharam as sucessivas modernizações (a máquina a vapor chegou em 1897 e a electricidade na década de 1930) que os seus responsáveis foram promovendo.

Alargar até Álvares Cabral

Em 1898, na sequência da abertura da Rua de Álvares Cabral, os proprietários da Companhia decidem aumentar a sua área até à nova rua, adquirindo 22 lotes que lhes deram acesso a uma mina de água indispensável ao aumento de laboração; aí foram também instalados armazéns para a recolha da madeira (depois transformados nas garagens actualmente existentes). A propriedade cresceu para os actuais quase 17 mil metros quadrados, tornando-se numa das maiores desta zona e num pulmão verde na cidade.

Entre a dinastia de administradores da Companhia pontificou, entre 1863-81, Julião de Gouveia Pinto Leite, cuja família está ligada à empresa desde há quatro gerações e que é hoje a sua principal accionista. O filho daquele, Juliano Pinto Leite, é hoje o responsável e "guardião" da fábrica, que deixou de laborar no último dia de 2006, mas que mantém praticamente incólume o seu património arquitectónico, além de inúmeras peças que testemunham os tempos do seu apogeu industrial, como as máquinas de laminagem de chumbo, de pregaria e parafusaria, além de tornos mecânicos e muitas outras peças históricas.

Juliano Pinto Leite alimenta a expectativa de que possa vir a ser concretizado um projecto de reconversão da propriedade que um consórcio constituído pela família e outros investidores, entre os quais o banco BPI, mandaram elaborar e apresentaram à Câmara Municipal do Porto, há uma década atrás. Desenhado pelos arquitectos Graça Correia e Eduardo Souto Moura, o projecto pressupõe a abertura de uma nova artéria de ligação entre as ruas dos Bragas e de Álvares Cabral, que utilizaria em parte propriedade da Companhia.

Salvaguardar o património

"Seria muito interessante que esse projecto pudesse avançar; a rua faz falta a esta zona, e o projecto inclui a salvaguarda do património arquitectónico da fábrica", diz Pinto Leite, mostrando-se, no entanto, um pouco céptico quanto à possibilidade de ver esse projecto sair da maqueta que guarda no escritório da Companhia Aurifícia.

Graça Correia explica ao Cidades que o projecto lhe foi encomendado a si e a Souto Moura aquando da Capital Europeia da Cultura, em 2000-01. "Tratava-se de aproveitar as instalações da fábrica para aí instalar um núcleo museológico mas também estúdios para artistas, galerias de exposições e outras valências que se considerasse interessantes para o lugar". Simultaneamente, a nova rua, que se desenvolveria em duas secções ligadas por uma praça a meio, teria uma frente urbana para novos edifícios de habitação, que "fizessem regressar famílias ao centro do Porto", diz Graça Correia.

A arquitecta recorda que o projecto foi, na altura, aprovado pelo Instituto do Património (Ippar), que, através de um documento elaborado por Deolinda Folgado, considerou a Companhia Aurifícia um caso de "raridade, exemplaridade e autenticidade representando um modelo de industrialização oitocentista tão importante para a compreensão da actual História Ocidental". E foi também "muito bem recebido" pelo gabinete de urbanismo da Câmara do Porto. Mas não teve os desenvolvimentos esperados. O gabinete de imprensa da autarquia não nos respondeu, agora, à pergunta sobre o ponto em que está este projecto.

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