Todos sabemos como acaba a história dos dois adolescentes da ficcional cidade de Verona que, vindos de famílias rivais, os Montéquio e os Capuleto, se tornam amantes e acabam por morrer. Escrito entre 1591 e 1595 pelo dramaturgo inglês William Shakespeare, então em início da carreira, Romeu e Julieta é um dos mais famosos textos de teatro, e o modelo do par amoroso serviu para alimentar as mais diversas interpretações, da pintura ao cinema. A versão que a Companhia Nacional de Bailado (CNB) estreia hoje, às 21h, e apresenta até 3 de Abril (para já com música gravada e, em Dezembro, no Teatro São Carlos, com a Orquestra Sinfónica Portuguesa), é assinada pelo sul-africano John Cranko (1927-1973), que a fez para a sua companhia, o Stuttgart Ballet, em 1962.
É a segunda vez que a CNB a apresenta, mantendo os mesmos figurinos de António Lagarto e cenários de João Mendes Ribeiro de 2001, aos quais acrescenta fotografias em telões de Daniel Blaufuks.
Ivan Cavallari é hoje responsável pelas remontagens das coreografias de Cranko, depois de ter sido bailarino da sua companhia, tendo dançado o papel principal desta coreografia. Diz que a peça "exige uma técnica que se sobreponha à história, evidenciado-a mais do que ao próprio bailarino". É nesta dualidade, nesta "coreografia aberta", que reside "o interesse e a actualidade" deste bailado, presente no repertório de várias companhias de todo o mundo.
A sua é apenas uma entre as muitas versões baléticas, numa tradição apesar de tudo recente para a dança. A primeira estreou-se em 1940, na Rússia, sob proposta de Serguei Radlov, director artístico do Kirov, hoje Teatro Mariinsky. A ideia vinha de 1934. O argumento, a partir de Shakespeare, foi desenvolvido em colaboração entre Radlov e o crítico de teatro Adrian Piotrovsky, a música foi encomendada ao parceiro de xadrez favorito dos dois, Serguei Prokofiev, que assinaria aqui o seu primeiro bailado de longa duração. Prokofiev acabou a partitura um ano depois, mas a produção foi suspensa: o regime comunista exigia um final feliz. Só cinco anos depois é que a peça se estreou, coreografada por Leonid Lavrovsky, tornando-se a lendária Galina Ulanova na Julieta original. A peça é famosa pelo "forte sentido teatral, mas acusada por alguns espectadores de ser coreograficamente insatisfatória", conta Susan Au no livro Ballet and Modern Dance.
Foi este bailado que chegou a Londres, primeiro em filme, em 1954 e, dois anos depois aos palcos, na versão que todos os bailarinos e coreógrafos de então viram, incluindo Cranko, que, em 1962 assinaria a sua própria leitura da peça. Romeu e Julieta foi o seu primeiro bailado de longa duração e também o seu primeiro grande sucesso - de curta duração, porém.
Depois da estreia do filme de Franco Zeffirelli, em 1963, e da inspiração que este deu ao coreógrafo Keneth MacMillan, que fez a sua versão em 1965, a história da dança dividiu-se e, durante anos eclipsou-se "uma coreografia muito clara", diz Cavalllari. Tanto que, na noite de estreia de MacMillan, quando um crítico perguntou a Cranko como era a sua versão, que não tinha visto, ele respondeu impetuosamente: "Acabou de a ver."
Ao contrário de Cranko, que construiu uma coreografia "quase invisível", "para bailarinos que soubessem interpretar personagens novas e enérgicas" - Romeu e Julieta deveriam ter 14 ou 15 anos quando se apaixonaram -, MacMillan procurou, numa leitura igualmente realista, densificar a coreografia. "Para tornar a história moderna, focou-se no drama familiar e fez de Julieta o seu cataclismo", explica Diane Solway numa biografia do bailarino Rudolf Nureyev, que interpretou Romeu contra as indicações de MacMillan.
"Romeu é um tipo normal, mas é a personalidade decisiva de Julieta, bem como o seu temperamento rebelde, que provoca o romance", disse MacMillan a Lynn Seymour, para quem criou o bailado (em par com Christopher Gable), mas que o Royal Ballet de Londres substituiria pelas estrelas Margot Fonteyn, na altura com 46 anos, e Nureyev. "Ele via-os não como "amantes etéreos, mimetizando votos exaltados", mas como exaltados adolescentes apanhados no tumulto da primeira paixão", diz Solway. Clive Barnes, crítico, descreveu o Romeu de MacMillan "não como um herói abstracto nem como um príncipe de marioneta, mas simplesmente como um ser humano".
"Enquanto o Romeu de Nureyev era um malicioso playboy renascentista, apenas atraído por sentimentos mais profundos após o encontro com Julieta, Gable decidiu representá-lo como um jovem vigoroso, determinado e terra a terra. A Julieta de Seymour era persistente e impetuosa, enquanto a de Fonteyn era mais romântica e reservada", conta Solway.
Na versão de Cranko há um crescendo de tensão que "se sustenta nos detalhes", explica Cavallari. "Ele nunca põe as personagens numa gaiola, nem diz aos bailarinos o que fazer. Pede que se envolvam. Nunca lhes disse para onde levar os braços. Tinha uma visão geral da coreografia, feita de uma incrível musicalidade." É nas cenas de grupo que essa leitura mais se expõe. "Os bailarinos não devem ilustrar a intensidade da música, devem usá-la como fonte de expressão." "Têm que ser musicais", "o resultado final deveria apresentar espontaneidade", sublinha. E o par romântico, ao longo da coreografia, vai perdendo a inocência e evidenciando a gravidade dos acontecimentos.