Entrevista René Pelissier"Ninguém ganhou nada na explosão de violência"

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Rui GaudÊncio

Em Angola, os massacres tiveram um cariz tribal e de "limpeza étnica", quem o diz é o historiador francês que se doutorou com estudo sobre as revoltas de 1961. A violência dos sublevados tocou em "valores morais" da sociedade patriarcal portuguesa

As revoltas em Angola "eram previsíveis". "Havia um capital de ódio entre os africanos locais, que consideravam ter sido espoliados e ferozmente explorados pelos colonos", mas os levantamentos foram provocados por uma série de outros factores", considera o historiador francês René Pelissier, que se doutorou com uma tese sobre os acontecimentos de há 50 anos naquela que era então uma colónia portuguesa.

"O maior erro dos cabecilhas da União das Populações de Angola (UPA), ou daqueles que pretendiam obedecer, foi massacrarem mestiços e outros trabalhadores locais ou contratados pelos colonos (nomeadamente ovimbundos). A isso chama-se "tribalismo" e equivaleu a uma limpeza étnica", considera o também autor, com Douglas Wheeler, de uma História de Angola, editado pela Tinta-da-China.

Para René Pelissier- que respondeu por escrito ao P2 - os massacres "exacerbaram as paixões dos extremistas de todos os lados. Ninguém ganhou nada nessa explosão de violência".

A "guerra colonial talvez pudesse ser evitada, se, no final da II Guerra Mundial, Salazar tivesse reformado gradualmente o sistema colonial que tinha instaurado nos anos 1930-1950 e que não era substancialmente pior do que outros regimes coloniais de antes da guerra", disse ainda.

Os acontecimentos de 15 de Março de 1961 eram previsíveis? Sim, e foram mesmo previstos a diferentes níveis da administração portuguesa, especialmente graças às informações da PIDE. Vários governos estrangeiros haviam alertado as autoridades portuguesas, o que levanta a questão de saber porque não responderam elas mais depressa. Falta de coordenação? De meios? De vontade? Relutância dos militares? Receio de colapso da euforia propagandística multirracial? Um pouco de tudo. Não se deve esquecer que os regimes autoritários e arcaicos acabam muitas vezes por acreditar nas suas próprias mentiras, quando elas lhes prometem futuro.

A guerra em Angola era inevitável?

A guerra talvez pudesse ser evitada, se, no final da II Guerra Mundial, Salazar tivesse reformado gradualmente o sistema colonial. No entanto, endureceu-o e isso interessava a determinados interesses financeiros e económicos, e mesmo aos pequenos e médios colonos que tinham ido para África para fugir da miséria na metrópole. Além disso, deve considerar-se um factor especificamente português, não exclusivo delas, mas muito presente nas elites: a síndrome do planisfério, síndrome dos regimes ultranacionalistas que tiveram uma longa história expansionista.

Existe a tese de que foi uma revolta bacongo, sem uma "perspectiva nacional". Qual a sua opinião? Que factores explicam a sublevação? As missões evangélicas foram acusadas de serem focos de subversão. Isso tinha algum fundamento?

Penso que os participantes no 4 de Fevereiro de 1961, como os que desencadearam os massacres a partir de 14/15 de Março no Congo e nos Dembos, tinham uma perspectiva nacional mais ou menos elaborada e um objectivo comum, a independência. No Noroeste rural, expulsar os brancos e ficar com as suas riquezas e o seu poder, como no Congo belga, era o objectivo imediato.

As descolonizações-relâmpago e fáceis de 1960 e o caos belga não foram o único factor. Vejo pelo menos outros cinco [factores] que desenvolvi no meu livro consagrado às três revoltas angolanas de 1961 [La Colonie du Minotaure, 1978, esgotado, nunca traduzido]: o mito de um todo-poderoso e ultracivilizado reino do Congo, glorificado pelas tradições orais e alguns intelectuais ocidentais; segundo, o número de bacongos angolanos exilados (130 mil a 150 mil aproximadamente em 1960) no Congo belga - e não o inverso, porque dos países vizinhos não se emigrava para Angola em 1960 - era uma base populacional significativa para recrutar militantes e pequenos quadros.

Por seu lado, as Igrejas protestantes não eram favoráveis à situação colonial em que pregavam a igualdade racial. Se não fomentaram directamente as revoltas, prepararam o espírito dos revoltosos.

Havia também um capital de ódio entre os africanos locais, que consideravam ter sido espoliados e ferozmente explorados pelos colonos: não devemos esquecer as questões de posse da terra e os problemas humanos gerados pela corrida ao café dos anos 1945-1960.

Por fim, as pressões internacionais que pesam sobre a política colonial de Salazar e os sistemas utilizados secularmente para incentivar os colonos (o estatuto do indigenato e o trabalho forçado são os exemplos mais visíveis). Os "ventos de mudança" da época não eram favoráveis à manutenção da colonização, mesmo que disfarçada com outro nome.

O que explica um levantamento tão bárbaro?

Não podemos minimizar a violência e a barbárie de uma revolta que teve como embrião organizativo exilados bacongos e como exemplo o Congo-Leopoldville. A UPA esperava dos pequenos colonos portugueses reacções semelhantes às dos colonos belgas, essencialmente urbanos oriundos ou com aspirações a pertencerem a uma classe média? Se sim, isso foi um erro grave, porque a maioria dos colonos portugueses no Noroeste de Angola eram pobres, e muitas vezes endividados, e quase todos oriundos de um Portugal rural onde o "mais forte" se sobrepõe ao "mais fraco".

Os emissários da UPA também desempenharam o papel de aprendiz de feiticeiro num meio tribal, que era - e continua a ser - sensível à influência da feitiçaria, como reconhecem alguns missionários, tanto católicos como protestantes. Não vou entrar em pormenores, mas o uso de drogas e o ressentimento explosivo - justificado ou exagerado - contra muitos proprietários portugueses e seus empregados, bem como a rusticidade das armas utilizadas (catanas, no início) podem explicar uma parte da barbárie dos massacres. Ao torturarem e matarem mulheres e crianças brancas, os revoltosos bacongos violaram os valores familiares mais profundos de uma sociedade que continuava a ser patriarcal, de camponeses que em 1960 não eram conhecidos pela sua ternura para com os africanos, que consideravam parasitas incómodos. O resultado de terem atingido os valores morais dos próximos das vítimas fizeram atrair sobre si a vingança cega que as milícias, alguns militares e polícias desencadearam em seguida contra os aldeões que não se tinham revoltado. O terror branco vai suceder à explosão inicial: "Preto visto, preto morto."

Como entender que os alvos não fossem apenas brancos, mas também negros?

O maior erro dos cabecilhas da UPA, ou daqueles que pretendiam obedecer, foi massacrarem mestiços e outros trabalhadores locais ou contratados pelos colonos (nomeadamente ovimbundos). A isso chama-se "tribalismo" e equivaleu a uma limpeza étnica. Tratava-se de saber se Angola seria um país tutelado, independente apenas para os bacongos, com os mbundu a obedecerem, ou se queriam a independência para todos os seus habitantes.

O número de mortos que calcula é inferior ao de outros investigadores. O que explica essa diferença?

O que mais me surpreende é que as autoridades portuguesas, tanto quanto sei, nunca quiseram ou puderam publicar uma lista de mortos por raça, posto por posto. Houve talvez, em algum momento, uma lista nominativa de brancos (e mestiços) mortos ou desaparecidos e se for encontrada um dia estou disposto a corrigir a minha estimativa, que, 50 anos após os factos, mantenho em menos de 500 brancos (militares incluídos), até 7 Outubro de 1961. Para os africanos negros não ouso dar números, tenho a certeza que é impossível estabelecer números fiáveis.

A situação em Angola, e também em Portugal teria sido diferente sem o 15 de Março?

Entramos na conjectura. Só sei uma coisa. Esses massacres exacerbaram as paixões dos extremistas de todos os lados. Ninguém ganhou nada nessa explosão de violência.

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