Sabemos onde estávamos há 21 anos?

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Videodiscos; som e imagem na época do VHS. E David Cronenberg: figura marcante de uma década de transformações

21 anos são muito tempo? Olhámos para trás, passando em revista os suplementos culturais de 1990 do PÚBLICO, e tudo parece distante. Um muro que caíra em Berlim, a Lambada em destaque, cassetes VHS a pulular por todo o lado, Kathleen Turner como sucessora de Marilyn. A sida era pesadelo no subconsciente e só tínhamos dois canais de televisão. Mas não sobrestimemos o presente: estamos parecidos

1990. Um ano de convulsões, entre a queda do Muro de Berlim e anúncios precipitados do "Fim da História", proclamados por Francis Fukuyama no Outuno de 1989. Em Portugal, o governo de Cavaco Silva recebia o dinheiro que fluía em abundância da então CEE. Era o primeiro ano de existência do PÚBLICO e fomos ver o que esse ano nos disse. Mergulhar no passado, folheando os suplementos culturais do jornal ("Leituras", "Videodiscos", que deu lugar ao "Pop Rock", "Semana" e "Fim-de-Semana" que se lhe seguiu), revelou-se um exercício curioso. Viajemos.

Em 1990, a agenda de televisão do "Vídeodiscos" anunciava com destaque um ciclo de Buñuel na RTP2 - em tempos de dois canais apenas, era um acontecimento. Kathleen Turner, a actriz de "Jóia do Nilo" ou "Quem Tramou Roger Rabbit?", de "voz rouca e quente" que se harmoniza "com um corpo saído de uma tela de Rubens", não sobreviveu à passagem do tempo como "símbolo sexual na mesma dimensão" de "[Jean] Harlow e Marilyn [Monroe]", como descrita pelo histórico crítico Manuel Cintra Ferreira, falecido em Novembro. E não, a Tanita Tikaram de fato casaco yuppie sofisticado não foi "a digna herdeira de Joni Mitchell".
Vinte e um anos depois, dir-se-á que tudo mudou. Mas olhamos e o que vemos, pondo de lado o fax, a tecnologia que vinha para ficar e que dentro em breve seria indispensável em todas as casas?

Portugal, 1990. Santana Lopes, Secretário de Estado da Cultura, projectava-o grandioso. Citamo-lo citado por António Barreto, num longo artigo de opinião. "É obrigatório reiterar que 'não temos outra hora como esta para projectarmos a perenidade da Cultura de uma nação com oito séculos, no dealbar do milénio da comunicação globalizada'." Mas o que era a nação? Talvez a encontrássemos espelhada numa reportagem que levou Vasco Câmara às bibliotecas do Santuário de Fátima. "Na montra, ao lado de 'Memorias de La Hermana Lúcia' estão livros de Richard Bach, o autor de 'Fernão Capelo Gaivota', 'A Era do Vazio' de Giles Lipovetsky, 'Anedotas de Sala' e discos de Dino Meira e do Padre Zezinho". Ou será que o país se espelharia melhor numa frase como esta, recorrente: "a Portugal, obviamente, chegou mais tarde". Perguntava-se como era possível que não houvesse um único livro traduzido de Philip Roth e falava-se de Paul Auster como um escritor a descobrir. Na música, o atraso estava prestes a acabar. Preparávamo-nos para inaugurar a década das mega estrelas em concertos de estádio. Três de uma vez: Rolling Stones, David Bowie e Tina Turner - e, sensação de déja-vu, Lloyd Cole regressava para tocar no Estádio das Antas e no Dramático de Cascais. Como Lloyd Cole, há coisas que nunca mudam. Exemplo: diz-nos a memória que vivíamos então animados pelo futuro risonho da integração europeia, contraste absoluto com a crise imobilizadora e total descrença na classe política do presente. Atentemos então na crítica a "Vitória! Vitória!", de Henrique Santana, que inaugurou o "recuperado" Maria Vitória. Na revista, satirizavam-se o ministro Miguel Cadilhe ou Marcelo Rebelo de Sousa.

Escrevia o crítico Manuel João Gomes: "recai [sobre eles] o generalizado enjoo da política que hoje em dia, do Minho ao Algarve, já ninguém disfarça". Acrescentava: "Cavaco e Abecassis estão omnipresentes, embora nenhum deles se materialize em cena. Não lhes é dada essa honra." Aqui chegados, alarguemos o olhar. De Portugal para o mundo.

De Miss Daisy ao Leste

No cinema, destacava-se o regresso ao sentimento com Jessica Tandy em "Miss Daisy", mas não devíamos perder tempo com ela quando tínhamos Danny de Vito e a sua "Guerra das Rosas" ("mais uma vez, a influência de Hitchcock"), ou quando Woody Allen estreava "Crimes e Escapadelas", que Manuel Cintra Ferreira classificou como "o momento maior da sua carreira". A par de "Sonhos", a penúltima obra do mestre Akira Kurosawa, foram aqueles os filmes mais estrelados pelos críticos do PÚBLICO em 1990. E quando chegou "Dick Tracy", de Warren Beatty e Madonna, o crítico Augusto Seabra tornou-se presciente. "Constituirão os filmes baseados nos 'comic strips' uma fórmula de produção?" Uma fórmula? Venha a 2011: é que são uma mina sem fim. Augusto Seabra, questionando, entreviu o futuro. Ali ao lado, Luís Maio, assertivo, fez o mesmo. Objecto em questão, o VHS "Live Zabor", vídeo concerto dos Sugarcubes. Segundo a crítica, nele, tudo é "infame algazarra". Tudo, com a excepção de um pormenor, "a pequena Björk": "Ela precisa de encontrar novas companhias e os seus admiradores necessitam de qualquer engenhoca electrónica que permita isolar esta demonstração dos seus talentos da mediocridade reinante" (três anos depois chegaria "Debut", a estreia a solo).

Na música, entre o que permanece e o que se desvaneceu, o equilíbrio é precário. Procuravam-se os sinais de futuro na electrónica, agora datada, dos KLF ("Chill Out" foi álbum do ano do PÚBLICO) e falava-se de géneros com nomes como "swe-beat", "new beat" ou "spaghetti house" para chegar aos Technotronic. Descobrimos agora - ou nunca soubemos ou já esquecemos - que a Lambada (essa mesma) foi "escolhida pelos grevistas da Peugeot, foi o que se ouviu quando caiu o Muro de Berlim e na passagem de ano em Bucareste, o que a Igreja mexicana mandou proibir um mês depois". Recuperados do choque, temos sempre porto seguro: Nick Cave renascido com a Bíblia por perto em "The Good Son", os Sonic Youth a lançar o magistral "Goo", os Mão Morta de "Corações Felpudos" ou os Madredeus de "Existir". Já do espectáculo de Roger Waters em Berlim, recriando "The Wall", melhor seria não falar, que era coisa velha e requentada. Mas falámos, tínhamos que falar - porque, em 1990, tudo apontava a Leste. Foi a obsessão do ano.

Descobriam-se aprofundadamente compositoras como Sofia Gubaidulina e dava-se a capa do primeiro "Leituras" à chegada dos checos: Milan Kundera com o novíssimo "A Imortalidade", Bohumil Hrabal com "Comboios Rigorosamente Vigiados", Skvorecky, o "enfant-terrible" da literatura checa, com o seu "Engenheiro das Almas".

Este era então, 1990. A Sida, a "monstruosidade do século", como sombra omnipresente, e uma pergunta a soltar-se, "o que é isso da obscenidade?": o fotógrafo Robert Mapplethorne envolto em polémica nos EUA pelo teor "obsceno" das suas fotos e "Henry & June", o filme de Philip Kaufman com Maria de Medeiros, a chegar embrulhado em escândalo - quando chega, não impressiona: "Sexus sem Nexus", assim titulou Mário Jorge Torres a crítica ao mesmo.

No ano do histórico "Songs For Drella", de Lou Reed e John Cale, Juan Miró e Gilberto Zorio foram o destaque nas exposições internacionais. Fez-se o elogio dos jovens artistas plásticos Rui Chafes, Ana Jotta ou José Pedro Croft, elegeu-se "O Sangue", de Pedro Costa, como "a mais bela obra da mais recente geração do cinema português" e Vasco Câmara desenhou um "retrato de artistas enquanto jovens" - eram Miguel Guilherme, Diogo Dória, Rita Blanco, José Wallenstein, Mário Carneiro e Alexandra Lencastre. No Teatro, vivemos sob o signo de Shakespeare.

Porque passou por cá a Royal Shakespeare Company com Kenneth Brannagh e porque "Muito Barulho Por Nada", também de Shakespeare, pela Cornucópia, foi elogiado em êxtase pelo crítico Manuel João Gomes: "Ir ao Teatro do Bairro Alto vale por doze meses no Teatro Nacional, por três meses no São Carlos, por trinta dias na Biblioteca Nacional, por uma semana na Cinemateca e por 25 anos de comemorações dos Descobrimentos".

São tudo memórias distantes, marcas do passado. Mas agarremos o pulsar desses tempos e foquemos a objectiva. Que vemos? Vemos os patrões da indústria musical a queixar-se da rádio "que está uma desgraça", da televisão que é "o maior cancro", da pirataria nas feiras e da imprensa que é elitista - mais coisa menos coisa, é exactamente aquilo que ouvimos hoje, em tempos de internet e MP3.

Que vemos, para além disto? Uma reflexão de Paulo Varela Gomes anunciando o fim da era da pop. Foram-se os adolescentes, escrevia, bem-vindos a "um novo século XX". Gente do século XXI, a pop ainda existe, mas vejam como é similar este mundo ao moderníssimo de há vinte anos: "Na moda, na música, nos media, misturam-se todos os géneros e estilos, e a coisa funciona numa 'rede' onde passado e presente, longe e perto, culto e inculto, étnico e mainstream são infinitamente intermutáveis. Ora a miscigenação é também um dos traços essenciais da vida urbana contemporânea em todo o mundo." Exactamente: tão possível de ser impresso em página em 2011 quanto no 1990 de que é originário. Ao longo de páginas e páginas, tal sensação é recorrente.

Caiu um muro em 1989 e outros muros, não desenhados na paisagem, começam a cair no Magrebe de 2011. Hoje, ninguém se lembra da Lambada e o VHS, tal como o fax, é objecto arqueológico. Philip Roth já está traduzido e todos conhecem Paul Auster. Muito mudou? Certamente. Mas não tanto quanto julgávamos inevitável.

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