Lee Chang-dong num oásis próximo da vida

Foto

A disponibilidade de um cineasta para nos inundar com vagas de quotidiano. Uma sexagenária perseguida pelo Alzheimer e em direcção ao seu oásis. "Poesia"

Violência, brutalidade e uma irónica, mesmo icónica, relação com os géneros cinematográficos - veja-se Park Chan-wook ou Bon Joon-ho. Pode ser esta uma imagem do cinema coreano? Lee Chang-dong, cineasta (e escritor), vai por outro lado. Fala, aqui, da capacidade de uma cinematografia explicitar o desejo de mudança de uma sociedade. Mas então esse "dinamismo", onde se plasma de forma feérica a aventura do indivíduo na História, tem de incorporar as diferenças. Por exemplo, uma imagem que não corresponda à oficial. Por exemplo, Lee Chang-dong, e a disponibilidade para abraçar serenamente as ondas do caos e deixar-se inundar.

É o que acontece em "Poesia", e na forma como olha, com olhos abertos, para a odisseia de uma sexagenária, em deslize devido ao Alzheimer. O neto, adolescente, e o seu grupo violaram continuadamente uma colega, e a rapariga suicidou-se; ela, Mija, ares de garota em corpo de idosa, concentra-se no seu oásis enquanto parece pairar acima da realidade: a poesia.

Suicídio: aparece no seus filmes, não apenas em "Poesia". Porquê? Nos últimos planos o sorriso de uma rapariga. Vê o suicídio como momento de clarividência?

Acho que todos os suicídios são outra forma de expressar o desejo urgente de vida. Será que as pessoas ganham paz no momento em que cometem suicídio? O seu corção não será, naquele momento, o inferno? Se for, com que motivo aquela menina terá cometido suicídio? O que será o sorriso desmaiado dela no último momento? Essa pergunta foi a que Mija, personagem principal do filme, não conseguiu dissipar. E ela decidiu escrever um poema que substitui o sofrimento da menina. Mija conseguiu escrever aquele poema depois de aceitar o sofrimento e o destino da menina como os dela.

Concorda que os seus filmes têm em comum a busca de um "oasis" - "Oasis" (2002) é um título de um filme seu -, mesmo se esse oásis for um lugar próximo da morte?

Acho que o "oásis" não é uma utopia que existe em algum lugar especial. O oásis tem que existir no nosso quotidiano. Neste filme ele é esquálido e sujo. Mas é um lugar onde um raio de sol secreto irradia. Ou seja, o meu oásis é próximo da vida, não próximo da morte.

As cenas das lições de poesia contêm ironia - a cena da maçã, por exemplo -, aquela coisa de haver um talento interior em nós à espera de desabrochar... ironia até em relação à obsessão da personagem...

É a ironia da vida. Aprender algo de novo para uma mulher com a idade dela mostra a ironia amarga da vida. Mas acho que se pode encontrar uma ironia mais assustadora se se entrar mais dentro da pele. Não há problemas em ver bem as coisas caso o objecto seja uma maçã. Mas como será se o objecto for a verdade da vida e a realidade? Pode ser fatal. Mija está a assistir a aulas de poesia como uma caloira excitada, mas confronta-se com uma verdade assustadora sem o saber.

As cenas de aulas de poesia poderiam ser concebidas pela necessidade narrativa da personagem aprender poemas. Mas não queria fazer dessa forma. Queria que os espectadores ouvissem directamente as aulas. Por isso confiei o papel de poeta a um verdadeiro poeta não a um actor. Como um documentário num filme de ficção. Queria que os espectadores ouvissem os poemas como se estivessem sentados numa sesssão de poesia. Não eram cenas previstas no argumento. Foram acrescentadas ao filme e são as cenas mais próximas do documentário.

De onde vêm esta personagem e este argumento?

O início foi o incidente de violação sexual em grupo por alguns jovens que ocorreu há anos na Coreia. Achei que é um problema que tem a ver com a ética do quotidiano e queria contá-lo através do filme. Não sabia como. Um dia, numa viagem ao Japão, vi num canal de televisão um programa sobre um viajante que não conseguia dormir num quarto de hotel. Quando estava a ver uma cena em que se ouvia música de meditação com cenário pacífico, surgiu-me o título "poema" e o enredo do filme em que a personagem, com 60 anos, se vê a escrever pela primeira vez um poema.

Tudo isto surgiu instintiva e intuitivamente. Mas talvez os sofrimentos e pensamentos que estavam guardados dentro de mim tivessem encontrado uma saída. Que sofrimentos? Os sofrimentos sobre a razão pela qual escrevo romances e produzo filmes. Ou: que influência tem a minha escrita no mundo. Uma pergunta de estilo da Thedor Adorno: serão possíveis poemas líricos após Auschwitz?

Mija está a fazer essas perguntas em meu lugar. Apesar de ser velha, ela é tão pura que pode fazer essas perguntas. Na verdade é como uma novata na vida tal como os principiantes são puros. Por outro lado está a perder a memória e as palavras. Ou seja, está a caminhar para a morte porque o esquecimento é uma das formas de morte. Isso faz tornar mais trágica a sua aventura de tentar escrever um poema pela primeira vez. Mas consegue-o.

Como convenceu a actriz Yoon Jeong-hee a regressar ao cinema? Na forma como a personagem existe, o seu aspecto, é "design" seu ou a actriz teve participação nisso?

Yoon Jeong-hee é uma actriz lendária que participou em mais de 300 filmes. Quando tinha 10 anos sentia-a como uma estrela que brilha no céu, que não vive no mundo terrestre. Como poderia imaginar que podia fazer um filme com ela? Ainda por cima ela deixou a Coreia após o casamento e entretanto passaram 16 anos após ter-se retirado. Mesmo assim pensei logo nela como Mija.

Contei-lhe o enredo, num jantar, ainda antes de escrever o argumento. Não precisei de nada para a convencer, porque ela quis muito ficar com o papel. No filme anda com um lenço e um chapéu como uma menina. Parece-nos que ela é uma mulher um ou dois passos afastada da realidade. Mas encontro frequentemente pessoas como ela. As pessoas que possuem pureza independentemente da idade. Especialmente em mulheres. A Yoon Jeong-hee também é uma delas. Claro que tem um sentido de vestuário muito mais refinado do que a Mija.

Nasceu na cidade de Daegu, considerada o "habitat" do conservadorismo coreano. Influenciou-o como cidadão e cineasta?

A minha cidade natal, Daegu, era uma cidade onde o movimento progressista era intenso quando era criança. Mas enquanto Park Jung-hee, um militar oriundo da cidade, governou a Coreia durante 20 anos como ditador após golpe de estado, a cidade transformou-se na sua base política. Após mais duas pessoas pertencentes às forças armadas se terem tornado presidentes, a cidade tornou-se a mais conservadora da Coreia. Eu tinha complexos por ser daquela cidade. Esse facto funcionou como a consciência do pecado original e é natural que tenha inflenciado os meus romances e filmes.

"Peppermint Candy" (1999) tem uma relação directa com isso, com a história política do seu país.

Não tenho a intenção de tratar assuntos políticos nos meus filmes. Quero apenas falar do ser humano e da sua vida. Se sentirem os meus filmes como políticos, isso deve-se ao facto de a vida e a realidade do ser humano terem algo a ver com a política. "Peppermint Candy" conta uma história de 20 anos, passada entre 1979 e 1999. E 1979 foi o ano em que foi assassinado um ditador que esteve no poder durante 20 anos e o ano em que a sociedade coreana recebeu isso com novas esperanças e possibilidades. Mas, no ano seguinte, aconteceu uma tragédia quando o poder militar massacrou impiedosamente os cidadãos que exigiram a democratização, e a história da Coreia teve que entrar no caminho de auto-traição mais uma vez. Os coreanos não podiam escapar às circunstâncias políticas da sociedade coreana na sua vida quotidiana. Relatei isso.

"Oasis", "Secret Sunshine" (2007) e "Poetry" mostram uma aproximação diferente às personagens e narrativa. "Peppermint Candy" é um "tour de force" narrativo, os filmes posteriores parecem mais disponíveis, até mais compreensivos perante o turbilhão da vida. Os diálogos em "Poesia" sobre "ver" as coisas são um "statement" sobre o que faz?

O poeta diz que tem que se ver bem para escrever poemas. Isso representa aquilo que quero dizer sobre os poemas ou sobre os filmes. O que mostrar aos espectadores? Além disso: com que olhos deixo os espectadores olhar para o mundo? Isso é o essencial do filme. Nesse sentido, os meus filmes não mudaram muito. Quero que os espectadores possam ver as suas próprias vidas quando vêem os meus filmes. E quero que tenham uma visão diferente do mundo ao sair da sala.

Ter sido ministro da Cultura [entre 2003 e 2004] teve consequências no seu cinema?

No início o que me preocupou foi perder a visão como "outsider" porque quando escrevo e quando filmo o meu lugar é o de "outsider". O autor tem que estar à volta e não no centro. Mas, após deixar o cargo percebi que continuo a ser "outsider". Por isso, não houve mudança.

Sente-se próximo do trabalho de Park Chan-wook ("Old Boy"; a trilogia "Vingança") ou Bong Joon-ho ("The Host")?

Sinto que os filmes deles são diferentes dos meus, mas é difícil dizer em que sentido. Parece-me que eles produzem filmes só por produzir. Eu? Produzo filmes para a nossa vida ou realidade não só por produzir. Isto não é uma questão de quem é melhor mas uma questão de atitude.

O cinema coreano tem uma imagem? Como a descreveria?

A característica dos filmes coreanos não será o dinamismo? Talvez a Coreia tivesse sido, durante várias décadas, o país que sofreu mais mudanças, interna e externamente. E os coreanos ainda agora são perseguidos por desejos fervorosos de mudanças. Esse, seja no bom ou mau sentido, é o dinamismo da sociedade coreana e também é a característica que se pode sentir nos filmes coreanos.

Sugerir correcção
Comentar