Com laranjas e flores se despedem

De Raimund Hoghe Grande auditório da Culturgest, Lisboa, 25 de Fevereiro, sala a um terço

Os recursos cénicos reduziam-se ao essencial: laranjas e ramos de flores contrastavam com a indumentária escura de nove corpos díspares. A banda sonora, em volume médio-baixo e a iluminação intermédia uniam a plateia e a cena. Com Hoghe, as atmosferas chegam primeiro. Por decantação, vem a delicadíssima teia: o ponto de partida, a obra de Dominique Bagouet (1951-1992), propulsor da nova dança francesa (NDF), cujo desaparecimento prematuro, vítima de sida, simboliza o fim de uma época - a do zénite da NDF e a emergência do novo mal, que poria termo a um período de festa e de utopia. Si muero... é um tributo à década de 1980, e também à chegada de Hoghe à colaboração com Pina Bausch.

Se de ausência se tratava, inevitável convocar a partida de figuras tutelares da dança da segunda metade do séc. XX: Bausch, Cunningam, Béjart ou Kazuo Ohno. Espectros cujo memória apareceria obsessivamente escoltada por palavras de Garcia Lorca: Si muero/ dejad el balcón abierto/El niño come naranjas/ (Desde mi balcón lo veo)/El segador siega el trigo/(Desde mi balcón lo siento)/¡Si muero,/dejad el balcón abierto!. O poema ajusta-se à contenção germânica de Hoghe; retém, todavia, uma hispanidade, intensa e solar, mesmo na forma de morrer.

A Espanha, que fascinava Bagouet, é subliminar na peça: um Sul, hedónico e mítico, ressoa nas canções ou na voz off de Anna Magnani. Os trechos de dança furtam-se ao autodeslumbramento; a introdução cénica da cor; o som lendário dos The Doors; é ainda o Bagouet de So Schnell ou de Jours Etranges (ambas de 1990) que divisamos.

A sombra de Bausch em Caffe Muller avista-se, quando Hoghe surge num negligé de seda cru; ou Kontakthof, e a inesquecível figura feminina de braços invisíveis sob o vestido vermelho. Há outros passageiros furtivos (Callas, Michael Jackson, Violeta Parra...) em autocitações: um esfíngico Eggermont devolve-nos as visitas de Hoghe aos clássicos da dança.

Si muero... difere de outras peças de Hoghe. A sua figura é catalisadora de referências e acções, uma assinatura de autor menos centrada nos habituais desafios: trazer para a ribalta o que ninguém quer ver; escrutinar poéticas que vêm das margens; esgravatar feridas, afinal, transversais porque a fragilidade sempre fará de nós minoritários; escancarar o corpo aleijado ainda como suma provocação póstuma ao mito da supremacia germânica. Um projecto de vida, mais do que um programa artístico.

Si muero..., a mais celebratória e baushiana das suas peças, requiem para onde se levam flores mas saboreiam-se laranjas, reencontra a coreógrafa na sua última fase. Poderemos debater se Hohge resiste à descentração temática; alegar que as três horas de duração da peça se sustentam numa dramaturgia, algo redundante, porventura refém da música, e que tal se pode confundir com ligeireza (óbvia, mas linda, a alegoria ao tempo contida na mulher que caminha deixando atrás de si o rasto das laranjas); que não arrisca a acutilância, no limiar do tolerável. Mas a tudo isso Si muero... sobrevive bem.

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