Manuela Tavares: "Elas acham que não é feminismo, mas é"

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Foto: Enric Vives-Rubio

O chavão de que não há feminismo em Portugal e o mito de que o feminismo é radical e contra os homens foram ambos desconstruídos por Manuela Tavares. Feminismos mostra os caminhos do futuro do feminismo e sistematiza pela primeira vez 60 anos de história de Portugal contada pelo lado que não costuma ser tido em conta.

Aos 60 anos, Manuela Tavares tem quatro décadas de activismo feminista, apesar de só nos últimos 20 anos se ter assumido como feminista. Fundadora da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), foi uma das mulheres que, em 1982, se mostraram nas galerias da Assembleia da República envergando T-shirts com "Eu abortei".

Aliando o activismo à reflexão teórica - uma das raríssimas feministas portuguesas a fazê-lo -, Manuela Tavares defendeu em Março de 2008 uma tese de doutoramento inédita e pioneira em Portugal: Feminismos em Portugal (1947-2007). Um trabalho de história e de reflexão que procura explicar por que razão em Portugal subsiste a ideia feita de que o feminismo é algo negativo. Um importante contributo para a compreensão do Portugal que somos e para a construção de uma sociedade mais democrática e mais igualitária nos direitos de todos, que agora surge nas livrarias sob o nome Feminismos.

Editado pela Texto/Leya, a obra será apresentada dia 15 de Março, às 18h30, na Livraria Ler Devagar, em Lisboa, pela historiadora Irene Pimentel e pela socióloga Anália Torres, que, com Anne Cova, orientou a tese.

O livro sai agora, a tese é de 2008. Quando começou a pensar neste projecto?

Tem-me acompanhado ao longo da vida. Quando decidi fazer primeiro o mestrado em estudos sobre as mulheres foi porque tive a necessidade de fazer uma reflexão sobre os movimentos de mulheres em Portugal e sobre os feminismos. Eu tinha participado nos movimentos sociais a seguir ao 25 de Abril.

Pertence desde a fundação à UMAR.

Quando a UMAR se formou, em 1976, por influência da UDP e do movimento de Otelo [Saraiva de Carvalho], fui para a UMAR com a experiência já prática de que era preciso um espaço para mulheres. A seguir ao 25 de Abril, estive na comissão de mulheres do meu bairro, no Pragal. Ocupámos um edifício e fizemos uma creche. A certa altura, a comissão de moradores votou em plenário que a comissão de mulheres não tinha razão de ser, já havia igualdade. Eram trinta e tal mulheres. Eu sabia que a comissão funcionava. Não sabia como defender, mas sabia que aquelas mulheres iam desistir. E assim foi. Ficou meia dúzia. Tomei consciência de que era preciso um espaço para as mulheres, para ganharem confiança e poderem estar, depois, em conjunto com os homens.

Mas não se assumia como feminista.

Não. Nem tinha consciência do que isso era.

É activista pelos direitos das mulheres desde 1974, assume-se como feminista há vinte anos e, na última década, casou esse activismo com o enquadramento teórico. Tem consciência de ser um caso raro em Portugal?

Feministas não haverá muitas, efectivamente.

A tese do seu doutoramento é que houve um corte de memória histórica do feminismo da Primeira República, fruto da pressão do modelo de família e do modelo de mulher do salazarismo. O problema hoje ainda é só esse corte de memória?

Não. Quando coloco o corte de memória histórica, falo realmente da carga ideológica do Estado Novo, mas falo também da oposição. Não existiram organizações de mulheres desde o encerramento do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, em 1947, e da Associação para a Paz, em 1952, até à fundação do Movimento Democrático das Mulheres (MDM), em 1968. Neste período, embora existissem mulheres nas comissões de candidatura de Norton de Matos e de Humberto Delgado, etc., as reivindicações estavam sempre sujeitas à luta geral.

O feminismo estava escondido no antifascismo.

Diluiu-se. Por outro lado, na oposição há também a influência do marxismo-leninismo. A oposição tem um modelo e não só em Portugal, vemos isso em França, na Resistência, as mulheres são sempre a retaguarda. Só na Guerra Civil de Espanha tiveram um papel mais activo.

O marxismo-leninismo dilui o feminismo na luta de classes.

Exactamente. E mesmo quando essas organizações existiam, estavam sempre numa perspectiva de frente, para captar as mulheres para a luta geral. A UMAR também foi isso durante algum tempo.

A luta pela libertação de todos os oprimidos libertará um dia as mulheres.

Exactamente. O feminismo tinha um carácter burguês.

Essa concepção em Portugal influencia a UMAR, mas também o MDM. Uma nasce com a UDP, o outro com o PCP.

Sim. Eu, por exemplo, só começo a pensar no feminismo quando a UMAR começa a ter a sua autonomia política. Os estudos académicos também tiveram muita importância. Ajudaram-me a percorrer esse caminho. Foi a necessidade de perceber como é que era.

Ainda há hoje uma concepção salazarista da função social da mulher?

Penso que sim. Quando falo do feminismo neoconservador na tese, não é mais do que isso. Em Portugal, houve uma grande evolução do estatuto das mulheres. Mas ainda escorrega nalgumas situações. São minoritárias. Não nos devemos preocupar demasiado.Mas são situações em que o feminismo neoconservador pode entrar muito bem, defendendo: deixemos que as mulheres ocupem o seu papel, que é a maternidade, a essência da mulher, e deixemos aos homens o que eles podem fazer. É a ideia das tarefas complementares, que retira poder às mulheres.

Mantém uma visão de submissão da mulher à família.

Absolutamente. Embora lhe queiram dar uma outra cara.

No livro cita Maria Antónia Fiadeiro a defender, em relação aos anos 60, que a liberdade do homem era pensada enquanto cidadão com direitos, mas a mulher livre era a libertina. Hoje já não se diz muito que a mulher livre é libertina, mas há ainda a famosa frase: "Não, eu não sou feminista, sou feminina."

Sim. Ou a frase: "Eu não sou feminista, mas defendo os direitos das mulheres. Eu não quero esse rótulo." Ainda é muito estigmatizado.

Ainda queima?

Ainda queima. Num inquérito sobre as novas gerações de estudantes, feito para a minha tese a oitocentos e tal alunos do secundário, do concelho de Almada, esperava encontrar muito essa questão, mas não. Fiquei surpreendida.

Já há uma evolução?

Nas novas gerações há uma evolução. A palavra feminismo já não faz confusão, identifica-se o feminismo com os direitos das mulheres. Mas há outra visão preocupante. Há ainda uma visão do modelo maternalista.

A mulher continua a ser a cuidadora?

Exactamente. Quando perguntamos, no caso das raparigas, "se fosses casada e tivesses um filho, entregarias o teu filho, nos primeiros meses, ao cuidado do teu marido?", a maior parte delas diz que não. Isto tem a ver com a concepção, que existe na sociedade, de que as mulheres tratam melhor dos filhos do que os homens. Há um estudo do ISCTE, comparativo com a Europa, que mostra que em Portugal há a ideia de que as mulheres são as melhores cuidadoras.

A sua tese confirma que a ideia que há hoje em Portugal sobre o que é a luta pelos direitos das mulheres quase que cola no fim da República. A luta pelo direito das mulheres a serem cidadãs e a serem cuidadoras. E que é subsidiária da concepção burguesa da mulher-mãe do final do século XIX.

Elas tinham que ser mães e educadoras e para serem educadoras tinham que ter educação. É uma perspectiva de todo o feminismo de primeira vaga, tirando as sufragistas, que eram mais radicais. Ora, a ruptura que existiu com o feminismo de segunda vaga, que foi extremamente importante, foi a de que as mulheres não são determinadas biologicamente para serem mães. São mães se quiserem e quando quiserem.

É a defesa dos direitos individuais.

De se afirmarem por elas próprias e pelo direito ao seu corpo. Em Portugal, com as fragilidades do feminismo de segunda vaga, essa mentalidade não chegou à sociedade. Eram grupos que tinham pouco poder, embora tenham feito acções importantes. O 25 de Abril não lhes deu espaço para crescer. Enquanto, noutros países, o direito ao nosso corpo, o sermos mães se quisermos, são causas reais, estas ideias ficaram sempre muito cortadas no nosso país.

Estamos a falar do que foi em Portugal a agenda do Movimento de Libertação das Mulheres (MLM), que nasce em 1974 e que ainda hoje é visto como um bando de doidas. Ou não?

Já não.

As causas que os movimentos de defesa dos direitos da mulher vêm a defender depois, incluindo a violência doméstica, são no fundo a agenda do MLM em 1974.

E depois do IDM (Informação/Documentação/Mulheres), que é o seguimento do MLM. O primeiro seminário que se realizou em Portugal sobre violência foi por iniciativa do IDM. Foi em 1987 e não foi a Comissão da Condição Feminina da altura que trouxe o tema. Foram elas. E trouxeram europeias cá para falar. Dou muito valor ao feminismo radical. Apesar de serem poucas, de serem grupos limitados na sua acção, trouxeram as principais ideias. E a violência ficou fora da agenda política, porque a luta pela despenalização do aborto absorveu tudo.

Mesmo no aborto houve um retrocesso em relação ao MLM. Os movimentos pelo "sim" apostaram na defesa da saúde pública em 1998 e da injustiça dos julgamentos em 2007. Nunca é um discurso assumido de defesa de direitos individuais das mulheres.

Quando inicialmente o MLM coloca a questão do aborto, em 1974, é como direito individual e como direito ao corpo, de uma forma extremamente clara. A CNAC [Campanha Nacional pelo Aborto e Contracepção] de início também. Mas entretanto, na CNAC, pela entrada de outras organizações, as questões da morte das mulheres e da saúde pública começaram a ter muito peso.

Por influência das organizações marxistas-leninistas.

Sim. Uma das frases era: "Direito à contracepção para não abortar, direito ao aborto para não morrer". E dizia-se que por ano morriam 2000 mulheres em Portugal. Isso começa na CNAC, por volta de 1984. Por outro lado, quando o PCP apresenta o primeiro projecto, em 1982, introduz as questões económico-sociais. No movimento "Sim, pela Tolerância" [1998], lembro-me de reuniões onde a simples introdução dos direitos das mulheres de escolha, de opção, foi posto em causa. Nas reuniões para fazer o argumentário, por exemplo, houve até jovens que recusaram o direito de escolha, porque era o discurso feminista.

No fundo, em Portugal até se conquistam direitos para as mulheres, mas desde que seja com um discurso asséptico. Só que na prática esse discurso asséptico é tão ideológico como outro qualquer. Há sempre uma condenação ideológica do feminismo, de tal forma que os direitos que são dados às mulheres, são-no por via institucional e porque a União Europeia a isso obriga.

Antes do Governo pegar nas questões da violência já estávamos a reclamar as casas de abrigo. Apesar das debilidades do movimento feminista em Portugal, não se pode dizer que não houve reivindicação concreta. Houve. E isso forçou o poder.

No aborto e na violência, mas a paridade é dada.

É dada e até muito mal interpretada. Aí a Europa teve muita influência. E tem em relação às outras questões, tanto em Portugal como noutros países. Porque se os movimentos de mulheres têm debilidades e não têm uma agenda própria, o seu discurso é tomado pelos poderes. E isso a partir das conferências das Nações Unidas, logo nos anos noventa. Não devemos estar contra. O problema é se não existe movimento feminista próprio, a ter uma reflexão crítica sobre as próprias políticas institucionais. Quando se fala da institucionalização das organizações não-governamentais (ONG), porque recebem subsídios, penso que isso só acontece se as ONG se deixarem institucionalizar. Se a sua agenda política for marcada pela governamental. Não nos podemos opor ao feminismo institucional. O problema é se as organizações ficam apáticas.

As novas causas do feminismo não estão presentes em Portugal. Há um debate sobre prostituição que esteve muito presente na Primeira República, com o congresso sobre o abolicionismo organizado por Adelaide Cabete, mas não se ouve hoje. Sei que há associações como a UMAR e as Panteras Rosa que fazem trabalho com prostitutas, mas não há debate.

A questão da prostituição é algo que divide o movimento feminista. Temos de desconstruir a visão abolicionista que o movimento ainda tem com muita força, mesmo a nível internacional. Isso faz-se com o debate, mostrando que o abolicionismo não resolveu o problema das mulheres que vivem da prostituição. Antes pelo contrário.

Explique o que é.

O abolicionismo é o movimento que coloca as mulheres como vítimas e que não as condena na lei. Elas têm que ser recuperadas. A prostituição é um desvio por questões económicas, sociais.

Esse debate não é feito porquê? Porque as prostitutas são pobres e, portanto, não interessam? Estou a fazer-lhe uma provocação, mas as causas que preocuparam o feminismo em Portugal são as causas que preocupam a burguesia. Ou, actualizando a terminologia, são as causas que preocupam a classe média. Não quer dizer que a prostituição não atinja a classe média. Mas aquilo que não se concebe como sendo uma preocupação de classe média não está presente no discurso feminista.

O problema é o conservadorismo que ainda existe. E em alguns sectores feministas existe uma visão moralista. E há também a visão do feminismo de segunda vaga de que a prostituição representa uma dominação dos homens sobre as mulheres. E é como diz, as prostitutas estão "guetizadas". Tem de haver coragem de colocar este problema. Mas não é fácil. Uma coisa já se conseguiu em debates foi concluir que o abolicionismo não serve. As mulheres prostitutas têm direitos e esses direitos não podem ser ignorados. Ainda não se avançou para o "empoderamento" das mulheres prostitutas e para uma visão não-estigmatizante da prostituição.

A UMAR faz trabalho com mulheres imigrantes, mas o assunto continua a ser tabu em Portugal? São as novas empregadas domésticas, que estão isoladas, sem rede. É por não ser uma questão das patroas, mas sim das empregadas, que ninguém fala nisso?

Durante muitos anos o feminismo foi o da mulher de classe média, branca. Os feminismos começam a ter outros contornos. Nós, por exemplo, temo-nos preocupado com a dignificação do trabalho doméstico. Os próprios sindicatos falam do trabalho, mas não falam do trabalho doméstico. Até o papel das mulheres dentro das associações de imigrantes tem que ser pensado. Elas têm um papel muito limitado.

E o tráfico das mulheres?

Tem sido encarado muito como o tráfico para fins de prostituição. Mas não é só para isso. Mesmo em França, o tráfico faz-se para serviço doméstico. Não se pode fazer a abordagem do tráfico só para fins sexuais. Isto tem que ver com os direitos dos imigrantes. E cada vez mais os movimentos feministas têm de integrar agendas sociais.

Por que é que em Portugal, em relação à violência doméstica, não se avança para a detenção do agressor?

Em relação ao homicídios, o que acontece é que grande parte das mulheres já tinha feito a sua sinalização junto das polícias. E como a avaliação do risco não é feita de forma a tomarem-se medidas para que o agressor seja preso, a situação vai dar à morte.

Mas por que é que todos os anos se fazem campanhas, se fazem planos e as mulheres continuam a morrer e não há prisões de agressores? O crime compensa.

Exactamente: as mulheres são mortas, mas não se anuncia que os criminosos são presos. O problema é que não há tribunais para estes casos. Devia haver tribunais especializados.

Quando se chega ao fim do seu livro há uma espécie de desilusão. A sua tese confirma que há um caminho percorrido, apesar de tudo, que as gerações mais novas começam a ter uma outra mentalidade, mais igualitária. Mas o que é facto é que em Portugal, apesar das mulheres serem a maioria ao nível da formação universitária, continuam a ser as mais mal pagas. Dá a ideia de que se percorreu tanto para tão pouco. Como é que se faz para dar às mulheres consciência da sua individualidade da sua autonomia?

Não há uma receita. Mas é importante que o movimento feminista se alargue de modo a que ganhe força para impor transformações. Por que é que o aborto levou tantos anos? Porque o feminismo não teve força para impor a questão na agenda política. Em relação à prostituição, ainda não há força para a impor na agenda política. Penso que a consciência feminista vai crescendo entre as jovens. Elas julgam que não é feminismo, mas é. É a consciência dos seus direitos e das discriminações. Para que a não-discriminação ganhe força na sociedade portuguesa, é preciso uma maior visibilidade dos feminismos. E temos noção de que isso está a alargar-se.

Este livro vai ajudar.

De certo modo, este livro vai cumprir um papel.

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