No Museu do Côa a pré-história é hoje

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Primeiro, foi o parque arqueológico para salvar as gravuras que não sabiam nadar. Agora, é o Museu do Côa, que numa encosta sobranceira ao rio ajuda a perceber melhor a arte rupestre e os homens que a criaram. Ali, em Vila Nova de Foz Côa, onde Andreia Marques Pereira (texto) e Nelson Garrido (fotos) se viram em pleno Paleolítico Superior

Maria, oito anos desembaraçados, fala de arte rupestre com autoridade. "São pinturas que os homens pré-históricos fizeram na rocha", explica, recordando o que aprendeu em Estudo do Meio (são pinturas ou gravuras, emendamos agora), no parque de estacionamento do Museu do Côa, onde os pais atendem a uma "emergência familiar", brincam, ditada pelo pequeno Henrique. Acabámos de sair do carro e já sabemos algumas coisas do museu: por exemplo, tem "uma figura esquisita", que assustou Maria, as paredes são "pretas" e há pinturas rupestres fluorescentes (que, claramente, a entusiasmaram). Agora, Maria gostava mesmo era de ir ao vale, onde os pais já estiveram, há dez anos. "Não temos qualquer formação", avisa Ilídio Costa, o pai, "mas percebemos que tem importância à escala mundial e que é património mundial". Por isso, voltarão, de Braga, onde vivem, para que Maria as veja.

Parece ser comum esta vontade de conhecer o "verdadeiro" museu, o Parque Arqueológico do Vale do Côa, depois de terminada a visita ao Museu do Côa. O primeiro vai fazer 15 anos, salvou as gravuras rupestres das águas "eternas" da barragem que não o chegou a ser, o segundo ainda não completou um ano de vida (abriu no final de Julho passado) e é também um "verdadeiro Museu de Arte e Arqueologia e até um Museu do Território", afirma o director, António Martinho Baptista. Que, simultaneamente, "se apresenta e pode ser encarado como um grande Centro de Interpretação por oposição ao "verdadeiro" museu que é a arte rupestre nos seus lugares de implantação originais, que estão no vale". O ideal, portanto, é que os visitantes do museu se desloquem pelo menos a um dos sítios com gravuras visitáveis - Penascosa (o mais visitado) ou a Canada do Inferno e a Ribeira de Piscos.

Era esse o plano da família que veio de Guimarães e Braga. "Marquem com alguma antecedência", ouvem na recepção. Não o sabiam, mas as visitas ao parque apenas se fazem mediante marcação - em jipes que levam oito pessoas numa viagem no tempo. E a um Património da Humanidade (1998): "A arte rupestre do Paleolítico Superior do Vale do Côa é uma ilustração excepcional do desenvolvimento repentino do génio criador, na alvorada do desenvolvimento cultural humano (...) [e] demonstra, de forma excepcional, a vida social, económica e espiritual do primeiro antepassado da humanidade."

Estamos no topo (que é o parque de estacionamento) do Museu do Côa (projecto de Tiago Pimentel e Camilo Rebelo), que se desenvolve por baixo dos nossos pés, incrustado na paisagem que se exibe descarada do terraço das traseiras: o rio a correr lá no fundo, os socalcos dos montes agrestes que se multiplicam no horizonte. Há um elevador num dos cantos do estacionamento para as entranhas do museu; nós escolhemos a entrada principal: uma espécie de estreito canyon de volumetria "desarranjada" que desce até µ

±uma pequena ágora em torno da qual se organiza o museu. É o piso 0 - o da recepção, do museu, da loja, do auditório, do serviço educativo; há uma escada que desce para o restaurante e cafetaria (ambos ainda sem exploração) e outra que sobe para os vários serviços internos do museu (e ainda se sobe ao parque de estacionamento).

Enquanto esperamos a excursão que vamos acompanhar, percorremos a loja do museu (colorida e bem recheada) e fazemos uma incursão pelas salas de exposição temporária - por estes dias, Gesto e Inscrição, cortesia da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Arte contemporânea, que entretém José Norberto e David Santos, pai e filho (12 anos) vindos da Marinha Grande, com passagem matinal pelo parque arqueológico e visita ao museu quase a terminar. "[Estas pinturas] Deixam uma pessoa a pensar. Fico à volta para ver [se há] algum segredo". Das gravuras rupestres não esperava muitos segredos: já as conhecia da escola. Porém, aqui, "as pessoas ficam mais informadas sobre como era a terra há milhares de anos", considera David.

Quando chega o grupo, vindo da zona do Grande Porto, falta pouco para o museu fechar - 45 minutos, outros tantos de atraso. A guia, Cristina Rebelo (o museu tem também serviços de áudio-guia), avisa: a visita vai ser em versão acelerada. As salas estão marcadas: vamos de A a G e viajamos milhares de anos em percurso linear, entre instalações multimédia e muito apelo visual de fotografias e desenhos.

Começamos na A (Côa - Património Mundial da Humanidade) e começamos em casa. "Já alguém foi ao vale?", pergunta a guia. A negativa geral não assusta: aqui temos a viagem virtual e interactiva sobre o vale, "percorrendo" os locais mais paradigmáticos. São assim as três primeiras salas, apresentação e contextualização do Vale de Foz Côa. Por isso lembra-se a polémica da datação das gravuras. "Hoje temos provas que são do Paleolítico Superior", diz a guia, o que significa que "têm entre 30 mil a 10 mil anos" - são os números que impressionam a plateia.

Estamos frente a um mosaico de ecrãs de onde saem fotos que se transformam em desenhos coloridos, como se fossem gigantescos álbuns de "fotografias" - são as gravuras "deslocalizadas". A guia aproveita para uma introdução (a desenvolver nas salas seguintes): no Paleolítico Superior já era o Homo Sapiens Sapiens, "como nós", que caminhava por estes caminhos, mas ainda lhe faltava dominar algo importante: a produção do seu próprio alimento. Dependia da natureza, portanto, e dos instrumentos para a submeter - e estamos na Idade da Pedra, esclarece a guia, a pedra lascada é a matéria-prima principal.

Auroques e cavalos de duas cabeças

Em poucos minutos deixamos o século XXI, conhecemos os nossos antepassados e já estamos a ter um primeiro contacto com a sua expressão artística: aí está uma rocha-tela de contornos indisciplinados como a verdadeira - esta é uma cópia feita de um composto de resinas e colas, mas os contornos são os mesmos que se vêem no vale. Com um ponteiro luminoso lilás, a guia ensina-nos a ler a cabeça, a linha do peito, a barriga: são dois caprinos, os corpos surgem apenas de perfil - "quase como os desenhos das crianças de hoje". E na mesma rocha uma espécie de "desenhos animados da pré-história", um bode com duas cabeças, uma olha para a frente, a outra para trás.

Seguimos para a sala B, O território, o homem e o tempo, e estamos quase com as mãos na terra, a desvendar a história que pisamos hoje em Foz Côa. Há uma estante de vidro, dividida em colunas, com várias camadas de terra: cada coluna é um sítio arqueológico, cada camada significa milhares de anos e características próprias que permitem datar ("com uma margem de erro" - cerca de dois mil anos, "que em pré-história equivale a dias") os achados (e a certeza vem com as análises de Carbono 14, ouviremos depois). Como os instrumentos e armas usados que vemos na bancada-vitrina de vidro iluminada, que no centro da sala exibe as descobertas arqueológicas. Temos a matéria-prima fundamental, as pedras - aí estão algumas peças arrumadas, como o sílex, "pedra que parece um presunto" (clara por fora, escura por dentro); temos exemplares de "arqueologia experimental" - "Nas escavações, nunca se encontram peças inteiras", explica a guia: o que vemos aqui são reconstruções, como as "zagaias", de ponta de pedra bem aguçada, algumas com dentes, "tipo arpão", algumas com "penas", para manter a direcção. E nas paredes as "gravuras-pinturas" com os animais que essas armas abatiam: cavalo, cerdo, bode, boi, auroque (antepassado da vaca, extinto), que podia ter "dois metros de garrote e tonelada e meia de peso". Não bastavam as armas ("Fazíamos isto a brincar", comenta um visitante apontando para um conjunto de arco e seta), era necessária organização - armadilhas ou emboscadas com fogo.

Entramos na sala C (Contextualização geográfica e cultural da Arte do Côa) para mergulhar plenamente na arte do Paleolítico Superior - e para perceber que os grupos não viviam isolados. Já tínhamos visto indícios de trocas, provas de nomadismo, agora detemo-nos nas formas artísticas. Em cima, gravuras do Côa, em baixo, de outras localizações. "Os chifres, não são iguais?", pergunta Cristina Rebelo. O não é quase unânime. "Bem, se calhar este não é um bom exemplo", dá-se a guia por vencida. "E estes cavalos?" São parecidos, dita a audiência a permitir finalmente a explicação. Um do Côa, outro do Sul de França - "soluções estilísticas" semelhantes, o que reforça a ideia de intercâmbios regulares na Europa.

Num placard, exibem-se os "sítios" da arte rupestre ao ar livre da Península Ibérica (maior concentração no Norte); numa parede vemos um dos raros exemplos de imagens humanas do Côa (só há 18): homem ou mulher? Mulher parece consensual, "muito feia". E porque faziam os desenhos?, pergunta a guia, pergunta (e tenta explicar) a sala. Alguém arrisca: "Para registar os tipos de animais de uma zona." É uma hipótese entre algumas que ali se exibem: "A arte pela arte", "A magia simpática e os cultos da fecundidade", "O xamanismo", por exemplo. Mais tarde, Adelino Freitas há-de confidenciar-nos: "Quando vamos à pesca tiramos fotos quando apanhamos um peixe grande. Eles, provavelmente, se apanhavam um animal grande desenhavam"; agora, ouve a guia resumir: "Não sabíamos como pensavam, e isso é frustrante".

Por exemplo, por que é que há uma só rocha com 94 gravuras? Será por motivos pragmáticos como estar num "local especial" ou ser uma "rocha mais macia"? Já estamos na sala E defronte da réplica da Rocha 1 do Fariseu, actualmente coberta pelas águas alteadas pela barragem do Pocinho, lemos na nota explicativa. Um emaranhado aparentemente caótico de gravuras de há 20 mil anos - e já há quem consiga distinguir figuras: lá está o cavalo de duas cabeças mencionado antes.

(Avançámos a sala D: está fechada para manutenção. "Temos tido problemas técnicos com as apresentações multimédia", justifica António Martinho Baptista, e ali, no Santuário Arcaico, os ex-líbris são duas projecções interactivas de alguns dos conjuntos mais significativos entre a Penascosa e a Quinta da Barca, que demonstram algumas das marcas mais originais da arte do Côa - a saber: a invenção do movimento numa única figura, a sobreposição intencional de figuras e o uso das partes mais elevadas dos painéis verticais.)

Da Idade da Pedra à Idade do Ferro

Como a sala E é O Paleolítico no quotidiano, depois de vista e revista a réplica a laser das 94 gravuras é a cabana de peles que atrai atenções. Há uma pequena cerca em volta do habitat, com tudo o que o imaginamos que o homem paleolítico necessitava de ter à mão: a "grelha" onde se seca peixe (e se secavam outros alimentos que era necessário conservar), pedras e ossos espalhados, "para melhorar a técnica de criar instrumentos" e, claro, a fogueira, para aquecer, cozinhar, afugentar animais e importante elemento de socialização - "achamos que começaram a desenvolver a comunicação em torno da fogueira". Há ainda tempo para espreitar o que se chama de "arte móvel", exposta numa enorme bancada de vidro. Parece um laboratório, com os microscópios alinhados para revelarem pequenas placas com pequenas incisões de animais ou simples linhas. "Isto é muito bonito...".

Um corredor "fluorescente", gravuras vermelhas e azuis, conduz à História interminável do Côa (a sala F). É a mais vertiginosa viagem no tempo da visita: começamos há 25 mil anos e terminamos há 3500, o percurso essencial para compreender a evolução da arte nas margens Côa, de onde nunca saímos. Da Idade da Pedra até à Idade do Ferro. Numa sucessão de painéis observamos essa evolução num ápice: de um grande herbívoro, com traços bastante profundos, vamos até gravuras mais pequenas, filiformes. Depois passamos às réplicas: a primeira, "vinda" da Canada do Inferno (também submersa), tem uma particularidade - noutras rochas há animais de várias espécies misturados, aqui só há auroques, e isso é raro.

Uma outra réplica já tem traços finos (já estamos a sair do Paleolítico) e vista distraidamente parece uma grande rocha com riscos acidentais. Porém, nada há de acidental: o ponteiro fluorescente guia-nos pelas linhas que continuam a representar animais ("99 por cento das representações deste período"). Mas isso está prestes a mudar: o clima frio do Paleolítico termina, definem-se as estações do ano, começa a produzir-se alimento, há sedentarização. E reflexos na arte.

Numa parede já observamos figuras esguias: humanas. "É uma nova forma de encarar a vida. O homem deixa de representar tantos animais porque percebe que eles já não são a fonte de tudo". Mulher ou homem? Serão um homem e uma mulher, estes representantes da "arte da pré-história recente". Quando chegamos à Idade do Ferro já vemos figuras humanas e animais nos desenhos das paredes. Um homem em cima de um cavalo (ou cão), mas o animal é quase secundário; há armas (lanças, escudos - inclusive um côncavo) porque já começaram as lutas territoriais.

E, sem darmos conta, já percorremos a arte Magdalenense, ainda do Paleolítico Superior, passámos pelo pós-Paleolítico com a arte do homem de Vale de Canivães, pelas sociedades guerreiras da Idade do Ferro e só terminamos no século XX, nas décadas de 40 e 50, com a arte dos moleiros e pastores que viviam no fundo do vale. Não é à toa que Cristina Rebelo o diz: "Os fozcoenses são artistas há 25 mil anos".

Resta uma sala que é "intemporal". A arte sem tempo da sala G é uma homenagem de Alberto Carneiro em forma de mandala sobre um castanheiro ao enigma da arte. No centro, o tronco, a mandala em redor e quatro placas de xisto gravadas em cada quadrante: Arte-Vida, Natureza-Cultura. É uma súmula do Museu do Côa, da arte rupestre e da arte de sempre.

uma rocha-tela de contornos indisciplinados como a verdadeira - esta é uma cópia feita de um composto de resinas e colas, mas os contornos são os mesmos que se vêem no vale. Com um ponteiro luminoso lilás, a guia ensina-nos a ler a cabeça, a linha do peito, a barriga: são dois caprinos, os corpos surgem apenas de perfil - "quase como os desenhos das crianças de hoje". E na mesma rocha uma espécie de "desenhos animados da pré-história", um bode com duas cabeças, uma olha para a frente, a outra para trás.

Seguimos para a sala B, O território, o homem e o tempo, e estamos quase com as mãos na terra, a desvendar a história que pisamos hoje em Foz Côa. Há uma estante de vidro, dividida em colunas, com várias camadas de terra: cada coluna é um sítio arqueológico, cada camada significa milhares de anos e características próprias que permitem datar ("com uma margem de erro" - cerca de dois mil anos, "que em pré-história equivale a dias") os achados (e a certeza vem com as análises de Carbono 14, ouviremos depois). Como os instrumentos e armas usados que vemos na bancada-vitrina de vidro iluminada, que no centro da sala exibe as descobertas arqueológicas. Temos a matéria-prima fundamental, as pedras - aí estão algumas peças arrumadas, como o sílex, "pedra que parece um presunto" (clara por fora, escura por dentro); temos exemplares de "arqueologia experimental" - "Nas escavações, nunca se encontram peças inteiras", explica a guia: o que vemos aqui são reconstruções, como as "zagaias", de ponta de pedra bem aguçada, algumas com dentes, "tipo arpão", algumas com "penas", para manter a direcção. E nas paredes as "gravuras-pinturas" com os animais que essas armas abatiam: cavalo, cerdo, bode, boi, auroque (antepassado da vaca, extinto), que podia ter "dois metros de garrote e tonelada e meia de peso". Não bastavam as armas ("Fazíamos isto a brincar", comenta um visitante apontando para um conjunto de arco e seta), era necessária organização - armadilhas ou emboscadas com fogo.

Entramos na sala C (Contextualização geográfica e cultural da Arte do Côa) para mergulhar plenamente na arte do Paleolítico Superior - e para perceber que os grupos não viviam isolados. Já tínhamos visto indícios de trocas, provas de nomadismo, agora detemo-nos nas formas artísticas. Em cima, gravuras do Côa, em baixo, de outras localizações. "Os chifres, não são iguais?", pergunta Cristina Rebelo. O não é quase unânime. "Bem, se calhar este não é um bom exemplo", dá-se a guia por vencida. "E estes cavalos?" São parecidos, dita a audiência a permitir finalmente a explicação. Um do Côa, outro do Sul de França - "soluções estilísticas" semelhantes, o que reforça a ideia de intercâmbios regulares na Europa.

Num placard, exibem-se os "sítios" da arte rupestre ao ar livre da Península Ibérica (maior concentração no Norte); numa parede vemos um dos raros exemplos de imagens humanas

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