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Os mercenários, "tropas certas para o trabalho mais sujo" mas as "menos fiáveis", são a última cartada do ditador

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Alegados mercenários capturados em Bengasi ASMAA WAGUIH/REUTERS

Ninguém sabe ao certo quantos são. Há notícias de mortos com documentos estrangeiros nas fardas líbias. O recurso a mercenários é uma tradição de Khadafi

O retrato que deles é feito nada tem a ver com a imagem romântica com que o britânico Frederick Forsyth descreveu os mercenários no seu romance Os Cães de Guarda. "São mercenários no sentido mais repugnante do termo, desesperados sem outra missão que a de defender a cadeira do ditador", escreveu o enviado do diá_ rio italiano La Repubblica à Líbia, Giampaolo Cadalanu.

"São as tropas certas para o trabalho mais sujo, mas também, segundo um observador militar, "os menos fiáveis, prontos a fugir se a situação se precipitar", referia no início da sema- na o jornalista, num contraponto às figuras imortalizadas por Forsyth, numa obra editada em português pela Livros do Brasil.

Os mercenários, principalmente provenientes de países com que Khadafi foi tecendo laços, serão ainda, para o também italiano diário Il Sole, a "última cartada" e o "trunfo mais forte" do ditador.

Qual o prémio por matar um opositor do regime? Dez a 12 mil dólares [7300 a 8800 euros]? E quanto se ganha por dia para fazer frente aos manifestantes? Mil dólares? Os valores, que correm nas redes sociais, e foram também referidos por Cadalanu, são tidos como improváveis pelo Il Sole, que considera mais credíveis fontes que referem 500 dólares por dia ou contratos de 18 mil dólares. A televisão árabe Al-Jazira noticiou que na Guiné-Conacri e na Nigéria surgiram anúncios a oferecer até dois mil dólares a quem estivesse disposto a ir em socorro de Khadafi.

O Washington Post referia-se ontem a informações provenientes de Trípoli, segundo as quais os mercenários estariam entre as forças mais brutais na repressão e que documentos de identificação de naturais da Guiné-Conacri, Níger, Chade, Mauritânia e Sudão foram encontrados em combatentes envergando fardas líbias mortos em Bengasi e noutras cidades.

As denúncias de envolvimento de mercenários na repressão surgiram de exilados, de antigos colaboradores do regime, designadamente do até há dias embaixador na Índia, Ali al-Essawi, e de sublevados. Um advogado de Bengasi, citado pela Reuters, disse ontem que um comité de segurança local, formado por civis, deteve 36 combatentes do Chade, do Níger e do Sudão.

A organização não-governamental Human Rights Solidarity calculou há dias em cerca de 30 mil o número de mercenários, mas a International Federation for Human Rights referia ontem até seis mil, metade em Trípoli. Mais contido, Jose Luis Gomez del Prado, responsável do grupo de trabalho para os mercenários da Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas, disse à Reuters que as provas de envolvimento de mercenários são cada vez mais convincentes. "Não [há uma certeza] a cem por cento, mas quase."

O alto comissário das Nações Unidas para os Refugiados tem outra preocupação: que residentes estrangeiros sejam confundidos com mercenários. "Disseram-nos que ter pele negra é neste momento um perigo na Líbia", disse a porta-voz Sybella Wilkes à Reuters.

O enviado do La Repubblica referiu que os contratados serão, na sua maior parte, oriundos de Chade, Mau-ritânia, Nigéria, Argélia, Uganda e de outros países da África Central. Entre os africanos estariam igualmente veteranos que serviram o regime sudanês de Omar-al-Bashir na guerra contra o Sul. A Reuters referia-se ontem a mercenários de Chade, Mali, Nigéria e Zimbabwe, bem como a liberianos que combateram por Charles Taylor.

A estação Al-Arabiya noticiou há dias a chegada a Bengasi de quatro aviões do Benim. E informou que quando a revolta irrompeu em Trípoli terão sido vistos estrangeiros a desembarcar, envergando uniformes líbios. Informações dispersas e não confirmadas referem mercenários de outras origens, do Benim, do Mali, da Tunísia, da Guiné-Conacri. E mesmo a presença de pilotos angolanos e ucranianos. A estação árabe referiu-se aos estrangeiros como maioritariamente negros e falantes de francês. O Il Sole refere que os escassos dados disponíveis indiciam que seriam na maioria mais "bandidos" do que militares.

Khadafi teria igualmente ao seu lado mercenários dos Balcãs - sérvios que terão colaborado na estruturação militar dos comités populares - e talvez bósnios. O jornalista italiano não exclui a presença de alemães que trabalharam na instrução de forças de elite.

Muitos dos estrangeiros já estariam no país, em funções de enquadramento militar das forças do regime. Outros chegaram ainda antes da fase mais violenta dos protestos. Mal preparados, alguns foram capturados por manifestantes e, segundo a estação Al-Arabiya, terão admitido terem sido contratados por Khamis, um dos filhos de Khadafi, comandante de uma unidade especial de segurança interna.

A passividade dos militares, que pretenderão libertar-se da influência da família Khadafi - e na semana passada foram acusadas de corrupção por Saif Al-Islam, outro filho do líder -, tornou o regime ainda mais dependente dos mercenários.

O recurso a uma "legião estrangeira" não é, contudo, de hoje. O Il Sole lembrou que já nos anos 1970 o país dispunha de milhares de conselheiros militares e instrutores dos países do Pacto de Varsóvia, Coreia do Norte, China e Paquistão. A guarda especial de Khadafi teria também sido organizada por forças especiais da Alemanha de Leste e pela polícia política desta, a Stasi. Ainda agora, muitos dos aviões de combate são pilotados por estrangeiros e há indicações de que o líder e os seus filhos são protegidos por russos e alemães. O Post recorda também a Legião Pan Africana criada por Khadafi, composta por combatentes de diversas origens e que se envolveu em alguns conflitos na região durante a Guerra Fria.

Esta não é também a primeira vez que o regime recorre a mercenários para travar revoltas internas: nos anos 1990, teriam sido usados em acções de repressão na região da Cirenaica e o assalto à praça forte islâmica em Gebel el-Akhdar terá sido confiado a sérvios devido à recusa de líbios em bombardearem civis.

Mesmo com mercenários do seu lado, Khadafi não terá razões para se sentir confiante. A Reuters citava ontem Adam Roberts, autor de um livro sobre uma tentativa de golpe na Guiné Equatorial, em 2004, que mostra que, se depender dos mercenários, o líder não tem razões para optimismo. "Tendem a preocupar-se com duas coisas. A primeira é se vão ser mortos e a segunda se vão ser pagos". Uma caracterização pouco romântica.

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